segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Lido: Palha, Carvão e Feijão

Embora alguns dos contos dos Irmãos Grimm sejam bastante elaborados, Palha, Carvão e Feijão está bem longe disso, não passando de um sumário continho de pouco mais de uma página sobre as desventuras de uma palha, um carvão e um feijão (obviamente) que se salvam quase milagrosamente da cozinha de uma velha e decidem partir juntos pelo mundo. E digamos que não vão longe.

O mais interessante nesta história, mais do que a antropomorfização típica das fábulas, talvez seja o seu caráter de lenda de origem, pois se explica através dele uma certa característica dos grãos de feijão. Mas o interesse é escasso, no que toca à história em si. Mais interessantes, ou pelo menos mais curiosas, são as ligações com histórias das mais variadas origens que os Grimm estabelecem na nota que acompanha o conto, que levam a supor que estamos perante uma variante teutónica de uma história antiquíssima e proveniente de paragens longínquas.

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segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Lido: Saudações, e Adeus

Saudações, e Adeus (bibliografia) é um conto fantástico de Ray Bradbury sobre um homem de quarenta e três anos que não envelhece, mantendo-se inalteravelmente amarrado a um corpo pré-pubescente. Para escapar à curiosidade dos outros, e a coisas piores, vive uma vida nómada, disfarçado da criança que é, não sendo, saltando de família em família e de cidade em cidade e ficando junto de cada uma até começar a notar-se que o tempo não passa por ele.

É mais um bom conto, com uma pegada muito próxima do realismo mágico (embora este movimento tenha surgido mais tarde e noutras paragens), mas que por outro lado mantém alguns dos temas típicos de Bradbury: a cidadezinha americana como ambiente, e a infância, ou neste caso a pré-adolescência, como momento. Mas é também uma exploração, pouco importa se consciente ou não, da dificuldade inerente a ser-se diferente numa região em que o conformismo é um valor social forte e a xenofobia violenta nunca anda por longe.

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Lido: O Colhereiro

O Colhereiro é um conto tradicional português que parece não ter sido recolhido por Adolfo Coelho em Coimbra, como vem indicado neste livro, mas nalguma versão das Mil e Uma Noites. E se calhar até é daí que ele vem — As Mil e Uma Noites são uma das lacunas centrais na minha cultura geral literária, que terá de ser colmatada um destes dias.

O colhereiro do título, que não é a ave do mesmo nome mas fabricante de colheres de madeira, é um homem humilde com três filhas que tem a desdita de ser curioso e de essa curiosidade o levar a tomar contacto com um mouro encantado. Um mouro encantado com palácio e exigências e castigos cruéis a quem se deixar vencer pela curiosidade. Acontece que, pelas reviravoltas típicas destas histórias, as filhas do colhereiro vão sendo sucessivamente acolhidas no palácio do mouro e, sendo filhas de quem são, e porque quem aos seus sai não degenera, são umas criaturinhas curiosas. A mais nova, contudo, além de curiosa é inteligente, e daí vem o desfecho da história.

Este é dos contos mais bem amarrados que esta coletânea apresentou até aqui, com princípio, meio e fim bastante sólidos. Uma história com moral clara mas também algo ambígua: a curiosidade matou o gato... mas se tiveres uma boa cabeça em cima dos ombros és capaz de te conseguires desenrascar. Sherazade não o diria melhor, suponho.

Um bom conto.

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Lido: O Pedestre

Sabem como é quando lemos a obra Xis do autor Ipsilon, de que gostamos imenso, e depois vamos ler textos anteriores do mesmo autor e neles encontramos como que sinais percursores dessa obra? Quem lê A Guerra dos Tronos, de Martin, e depois vai ler os seus contos anteriores certamente conhece a sensação. E quem lê este O Pedestre (bibliografia) depois de ler uma das mais marcantes obras de Ray Bradbury, e na verdade de toda a ficção científica, Farenheit 451, também a deverá reconhecer.

Não é nada demasiado óbvio. Aqui não temos nem bombeiros incendiários nem uma resistência organizada. Mas os sinais estão todos lá. Estamos em 2053 e um homem anda a pé, à noite, por uma cidade vazia. Porquê? Porque é um escritor (é o quê?, perguntaria quem com ele se encontrasse, se alguém com ele se encontrasse, sem reconhecer a palavra) e andar à noite dá-lhe prazer. E porque ninguém mais o faz, entretidos que estão todos em casa com os seus écrans.

Portanto estamos na presença de um desviante, o único homem não alienado no meio de um mundo ambiguamente utópico, cuja população está demasiado entretida para fazer seja o que for. E claro que acaba por ter problemas com a polícia — com o único carro de polícia que resta na cidade inteira —, pois numa sociedade perfeita tendências atávicas como andar em pé, sozinho, à noite, são perigosas. Ainda mais se enquanto o faz deixa a imaginação correr solta. Trata-se, claramente, de um elemento perturbador.

Soa-vos familiar, leitores do F451? Soa, não soa?

Mas não se entusiasmem demasiado. O conto, embora bom, está longe de causar o impacto do romance, está muito longe de ser tão bom como ele. É apenas uma primeira exploração de algumas das suas ideias. Uma primeira tentativa, que tem com o romance uma ligação temática mas não de enredo. Não temos aqui propriamente uma prequela; temos um conjunto de ideias idênticas exploradas de forma diferente. Mas interessante, francamente interessante.

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domingo, 20 de novembro de 2016

Lido: Cabeças Cortadas

Há histórias que exigem a leitura prévia de outras histórias para o seu pleno desfrute. É o que acontece com Cabeças Cortadas, uma vinheta de Luiz Bras que homenageia o romance Macunaíma, de Mário de Andrade. Tendo ouvido falar deste último livro, localizei facilmente a referência, mas, não o tendo lido, não posso avaliar em que grau, ou até de que modo, o conto de Bras lhe presta homenagem.

Assim coxo, só posso dizer que apesar da coxeadura achei a vinheta bastante interessante. Macunaíma, o herói, causa a inveja do pajé da tribo, que por isso lhe corta uma perna, que ele substitui por uma outra perna, biónica. Não satisfeito, o pajé continua a cortar-lhe bocados, depressa substituídos por equivalentes biónicos, e do desfecho da história não falarei porque não me apetece.

É uma espécie de mistura entre conto tradicional, com a sua estrutura simples e repetitiva, e ficção científica, com as suas soluções tecnológicas para os problemas criados pela narrativa. Uma fantasia científica bem apanhada.

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sábado, 19 de novembro de 2016

Lido: Um Erro do Sol

Um Erro do Sol (bibliografia), noveleta de horror de David Soares, leva os leitores a uma ilhota ficcional na Islândia onde, como os protagonistas da história — uma família em férias, cujo pai é presidente de uma empresa dinamarquesa concorrente da Lego — descobrem, são produzidos uns bonecos francamente estranhos. Feitos de plástico, aparentemente, os brinquedos têm a peculiaridade de se moverem autonomamente quando contactam com alguém. Mas quando o olho para o negócio do pai de família o leva a partir um, para ver como é feito, descobre com surpresa que o sistema mecânico que esperava encontrar não existe e o boneco é uma peça única. Espanto: como se move isto?

Segue-se a decisão de ir visitar a tal ilhota e uma aventura por um território misterioso, habitado por um povo conhecido como "os Esquivos," onde o terror acontece.

Quer dizer...

OK, o conto está razoavelmente bem concebido e bem escrito, percebe-se que procura causar algum impacto mais ou menos terrorífico no leitor, mas, nisso, falha por completo. Ou por outra, talvez não falhe com alguém, talvez haja alguém, algures, que se assuste ao lê-lo, mas comigo certamente falhou. Pelo menos este leitor que aqui escreve não sentiu a mais pequena inquietação, nem um vestígio de susto, nem o mais leve incómodo, nada.

É um conto entre o razoável e o bom. Um conto bonzinho.

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Lido: Fuga no Tempo

Poucas coisas há mais adequadas para histórias nostálgicas de um tempo idealizado do que as viagens no tempo. Fuga no Tempo (bibliografia), conto curto de Ray Bradbury, é uma dessas histórias, regressando a vários temas recorrentes na sua obra: a cidadezinha quintessencialmente americana, a nostalgia da infância, o apelo ao deslumbramento e o elogio do folclore relacionado com as histórias de horror e o Halloween, em oposição a uma atitude mais racional perante a vida e o mundo, um passado feito de doçura por oposição a um futuro frio e deprimente, por aí fora.

Aqui vamos encontrar um futuro desprovido de toda a poesia do passado mas possuidor de tecnologias avançadas como a da máquina do tempo. De facto, estas máquinas não só existem como são banais o suficiente para serem até usadas na escola para visitas de estudo. E é precisamente o que aqui temos, uma visita de estudo ao ano longínquo de 1928, ano em que, não por coincidência, Bradbury tinha 8 anos, mais ou menos a idade dos seus protagonistas. Uma visita de estudo em que os miúdos deparam primeiro com um circo — outra aparição frequente nos contos de Bradbury —, depois com os fogos de artifício do 4 de Julho e por fim com as brincadeiras macabras do Dia das Bruxas, ficando tão fascinados com tudo que fogem do professor e da máquina do tempo, preferindo ficar no passado longínquo a voltar para casa.

A história, como é costume, está muito bem escrita. Também está bastante bem elaborada, embora depressa se torne previsível para quem já conhecer razoavelmente bem Bradbury. E é este o seu principal ponto fraco: quem depressa percebe o que vai aqui encontrar não só perde parte do interesse na leitura como também percebe depressa que o autor tem outras histórias bastante melhores sobre os mesmos temas. É o lado mau de se ter escrito obras primas: o que é meramente razoável, ou até bom, acaba por parecer insuficiente.

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Lido: A Viagem de Inverno

Ao ler A Viagem de Inverno, conto do francês George Perec publicado originalmente em 1980, senti-me a caminhar por territórios não apenas conhecidos mas percorridos há muito pouco tempo. Não que já o tivesse lido, entenda-se. Mas este conto é de tal forma borgesiano, e eu tenho o Ficções de Borges tão fresco na memória, que foi quase como regressar a um lugar onde tinha estado não muito antes.

Trata-se de um conto pseudofactual centrado em questões literárias, cujo protagonista, Vincent Degraël, professor de literatura, descobre por acaso um livro de um autor que até aí desconhecia e que lhe vai alterar a vida. É que, ao lê-lo, descobre citações textuais de autores que conhece bem. E depois de um estudo mais detalhado conclui que todo o livro é composto por citações de nomes maiores, ou não tanto, das literaturas francófonas. Pastiche genial, conclui. Mas quando vai aprofundar a investigação sobre autor e obra, descobre, assombrado, que esta tinha sido publicada antes de qualquer das obras que inicialmente suposera terem sido copiadas. Depois vem a II Guerra Mundial e estraga tudo.

Fantástico borgesiano puro, como se percebe. E eu, que não gosto particularmente de histórias pseudofactuais e geralmente acho os escritores que Borges influenciou bem piores do que o original, até gostei bastante desta história. Ponto para Perec.

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domingo, 13 de novembro de 2016

Lido: Eu Sou um Carrasco

Eu Sou um Carrasco (bibliografia) é um conto curto de Telmo Marçal que, ao contrário da vasta maioria das suas histórias, tem com a ficção científica uma relação algo distante, composta integralmente pela distopia política típica nele. A história em si é a de um depoimento, de uma confissão, a de um verdugo com gosto na sua profissão. Podia facilmente ser um torturador da PIDE ou de qualquer outra das muitas máquinas de arrancar confissões (falsas ou verdadeiras, pouco importa) que foram montadas ao longo da vasta história da crueldade humana, desde os sistemas de poder mais distantes no tempo a Abu Ghraib e ao mais que adiante se saberá. O local não está identificado, a época também não, com o objetivo, claro, de tornar a história universal. E esta, como ficou dito acima, é a de um verdugo com gosto na sua profissão, a do seu trabalho num prisioneiro especial, a do que acontece por causa desse trabalho. Não vos direi o que é — não creio que valha a pena — digo só que mais do que uma personagem desta história vai aprender que no reino da arbitrariedade que acompanha sempre sistemas de poder absolutos a segurança é sempre muito relativa.

Que fique como lição a quem gosta de votar em fascistas.

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sábado, 12 de novembro de 2016

Lido: Planeta Incorruptível

Planeta Incorruptível (bibliografia) é também, à semelhança do de Bradbury de que falo aqui por baixo, um conto de fundo cristão e com base, pelo menos em parte, na ficção científica. Mas as semelhanças acabam aí. Ao contrário de Bradbury, que tem na poesia da prosa e na filosofia do texto os seus principais pontos de apoio, Richard Diegues, o autor desta história, inspira-se muito mais nos thrillers de fundo religioso que tão populares têm sido ao longo das últimas duas décadas, e nas histórias sobre o arrebatamento cristão. Uma inspiração muito mais desinteressante, convenhamos.

A história que conta parte de uma invasão alienígena cujo objetivo é exterminar a humanidade a fim de se apropriar da Terra e dos seus recursos. Uma invasão alienígena bem sucedida, sublinhe-se, que só tem um verdadeiro percalço quando é descoberto em Nevers, França, o corpo incorrupto de Santa Bernardete. Para os menos versados na mitologia católica (como eu; tive de me ir informar), Bernadette Soubirous foi a responsável pelas aparições marianas de Lourdes e o seu corpo ter-se-á mumificado, o que levou à lenda de incorruptibilidade que lhe é atribuída. Ora, Diegues explica essa lenda com a permanência da alma no corpo (os ETs têm uns aparelhómetros que detetam a presença das almas), e isso vai ser muito, muito mau para os mauzões dos invasores.

Não é grande coisa, este conto. O texto é competente mas disso não passa, e a estrutura perde por uma incompreensão fundamental do que é a base de um thriller: a criação de uma ligação emocional entre o leitor e as personagens, que aqui pura e simplesmente não existe. Ainda por cima, há a velha pecha das ficções cristãs: tornar-se muito depressa óbvio que, por mais voltas que se dê ao texto, no fim deus resolve. Talvez resolva à sua maneira, mas acaba por resolver. E isso, como se sabe, torna todas as reviravoltas bem menos apelativas do que se o final estivesse realmente em suspenso.

Em suma: um conto dispensável.

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Lido: O Homem

O Homem (bibliografia) é um conto de ficção científica de Ray Bradbury que, não se passando em Marte, tem muito a ver com os seus contos marcianos, em especial alguns dos coligidos nas Crónicas Marcianas. Num planeta distante identificado sumariamente como o "planeta quarenta e três do Terceiro Sistema Estrelar", aterra uma nave vinda da Terra e é recebida não com as fanfarras e festejos que seriam de esperar mas com a mais absoluta indiferença. Porquê? Entre reflexões filosóficas sobre a pulsão humana para a exploração, que Bradbury encara sistematicamente (em especial na fase de que data esta história, o pós-guerra, os anos 40-50) como uma espécie de profanação de uma pureza ancestral, vamos encontrar a religião.

É que o planeta acabou de ser visitado pelo Messias.

Segue-se uma história em boa parte movida a diálogos, que põe em confronto a crença e a descrença, o materialismo e o espiritualismo, a aceitação passiva e a fúria da ação. É claríssmo o lado que Bradbury prefere, a ideologia que defende. Sim, leram bem, ideologia. É disso que se trata.

Por mais que eu esteja distante desta mundovisão que aqui Bradbury apresenta, por mais negativos que me pareçam vários dos seus aspetos, por mais que alguns pormenores do enredo me pareçam desajustados se olharmos o conto à luz da ficção científica e não da mera alegoria, não posso deixar de reconhecer que este é um bom conto, muito bem construído e bastante bem escrito. É Bradbury do início da sua melhor fase, a fase em que se inventava, antes de começar a remoer-se.

Este é um caso exemplar de uma verdade demasiadas vezes esquecida: não é preciso gostar-se das ideias que a literatura apresenta para se gostar da literatura, mesmo sendo bem mais satisfatório, reconheça-se, quando se gosta de ambas.

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Lido: A Serpente Branca

A Serpente Branca é um conto dos Irmãos Grimm sobre um criado que, tomado pela curiosidade, prova um prato secreto do rei, uma serpente branca, ganhando assim a capacidade de compreender a língua dos animais e compreendendo de súbito como estava o rei sempre tão bem informado sobre tudo. A partir daí, o enredo segue caminhos típicos dos contos de fadas, acabando o criado, depois de várias peripécias e perigosas provações, nas quais faz amplo e bondoso uso da capacidade ganha ao comer a serpente, por conquistar (magicamente, claro está) o coração da princesa e casar-se com ela.

Não é dos contos mais interessantes dos Grimm, o que é pena porque a ideia base dá pano para mangas. De facto, já deu pano para muitas mangas, incluindo comédias cinematográficas de grande sucesso. Mas não conheço (o que não quer dizer que não exista, claro) nenhuma obra que tenha pegado no seu potencial político, e isso foi o que achei mais interessante e mais mal explorado no próprio conto.

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sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Lido: Academia de Vampiros

Academia de Vampiros (bibliografia), de Richelle Mead, é um romance de fantasia urbana sobre as lutas e rivalidades que vão tendo lugar numa espécie de liceu vampiresco e razoavelmente clandestino, a Academia de São Vladimir, situado algures nos EUA. E basta esta brevíssima descrição para se perceber que se trata de um romance juvenil, coisa que o autocolante que na capa faz referência a Stephenie Meyer sublinha, e quer a ambiência, quer a própria história, fazem claramente lembrar obras audiovisuais como os "filmes de escola secundária" que Hollywood produz com regularidade ou séries como Buffy the Vampire Slayer.

Ou, dito de outra forma, eu não faço parte do público alvo.

Apesar disso, até achei o livro razoavelmente interessante. Claro, não é nenhuma obra-prima. Trata-se de um livro comercial, que vale mais pelo valor de entretenimento do que por qualquer outro. Não é nem particularmente original nem uma grande obra de literatura. Mas está escrito de forma eficaz, com uma prosa bem ritmada e escorreita, e a história, sem ser muito complexa, está bem concebida, o que é precisamente o que se pretende num livro deste género. Leitura rápida. Leitura que prenda o interesse do leitor com um mistério, a sustenha com peripécias em torno desse mistério, e remate de forma satisfatória.

A protagonista/narradora, Rose, é uma dampira, portanto membro de uma raça de criaturas híbridas, fruto da união entre um vampiro e um humano, que, na sociedade descrita por Mead, são educadas, treinadas e usadas como protetoras dos vampiros verdadeiros. A sua melhor amiga e protegida (ou mais que protegida, visto que com ela partilha um vínculo telepático), Lissa, que a acompanha no protagonismo nesta história, é não só uma verdadeira vampira, mas uma princesa, a última descendente de um poderoso clã vampírico de origem russa. Atormentada pelo assassínio da família, Lissa rebelou-se e fugiu para o mundo dos humanos, levando Rose consigo, e a história começa quando as duas são apanhadas e levadas de volta.

O que se segue é uma história de escola secundária sob o efeito de esteroides porque ao drama juvenil típico, com as suas rivalidades, as suas paixões, os seus disparates adolescentes, as suas crueldades e as suas atrações sexuais, se soma uma violenta e mortífera subtrama de rivalidades políticas entre os ramos rivais da realeza dos vampiros. Há pancada, há perigo, há sacanice e gentileza, há manipulação, há um pouco de muita coisa, mas há sobretudo adolescência. Tudo muito americano, por um lado, mas por outro também bastante eslavo, pois Mead parece querer fazer uma homenagem à geografia de origem da maioria das lendas que deram origem ao subgénero dos vampiros e enche o seu livro com ligações ao Leste da Europa.

Ou seja, julgo que este é um livro mais que razoável para quem fizer parte do público alvo porque faz com competência aquilo que se propõe fazer. Mas eu não faço parte desse público. Já passei a adolescência há umas décadas, já tenho pouca paciência para toda a banalidade dos dramas juvenis. Fazem parte da vida, sim, mas a vida tende a deixá-los para trás. E nem a camada vampírica que lhes é posta por cima me interessa lá muito. Portanto, tendo achado o livro mais que razoável, a roçar o bom, não gostei lá muito dele. É a vida.

Este livro foi-me enviado pela editora.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Lido: Hora Zero

Hora Zero (bibliografia), por contraste com o conto anterior deste livro, é um dos contos realmente bons de Ray Bradbury, fundindo na perfeição a ficção científica com o horror. É daquelas histórias das quais depressa se torna difícil falar sem fazer revelações sobre o enredo que podem estragar a experiência de leitura a quem é mais sensíveis a essas coisas, portanto fica o aviso de que daqui em diante este texto tem spoilers. Se não querem apanhar com coisas dessas, parem de ler agora!

Aos resistentes, explico: trata-se de uma história de invasão alienígena, mas não de uma invasão alienígena qualquer. É uma invasão de uns alienígenas particularmente inteligentes e conhecedores da psicologia humana, pois se servem da tendência muito adulta de menosprezar as imaginativas histórias das nossas lindas crias, e da pulsão que estas últimas têm para a brincadeira, o segredo conspirativo e as construções, para as levar a criar portais por onde as hordas invasoras pudessem chegar para tomar conta do nosso planeta.

A grande mestria de Bradbury neste conto é colocar-nos a meio caminho entre os miúdos, que funcionam sem saber (ou sabendo e não se importando porque é divertido) como uma quinta coluna dos invasores e detêm toda a informação, e os pais, alheios a tudo, que encaram como fantasias os bocadinhos de informação que os miúdos vão deixando cair aqui e ali, informando-nos a nós, que estamos no meio, e, ao contrário dos pais, acreditamos neles, daquilo que está a acontecer.

Aquilo que faz com que uma história funcione mesmo bem pode ser uma miríade de coisas. Nesta, como em alguns dos outros contos de Bradbury (e estou a lembrar-me do conto Virão Chuvas Suaves como outro exemplo), é o ponto de vista.

Contos anteriores deste livro:

Lido: O Carneirinho Branco

O Carneirinho Branco é mais uma das historinhas populares recolhidas por Adolfo Coelho. Trata-se de uma fábula um bom bocado desconexa, que parece ser resultado ou da amputação de uma história maior, ou da amálgama de elementos díspares provenientes de histórias diferentes. A hipótese que me parece mais provável é a primeira.

Além disso, também tem clara influência católica, mesmo que possa ser influência secundária, acrescentada a uma história mais antiga para a tornar mais palatável à religiosidade dominante.

O carneirinho branco do título é fruto de um milagre, tendo sido dado à luz por uma rainha que não conseguia ter filhos e rezou muito por eles, e a história conta as suas várias tentativas para arranjar noiva — princesa, evidentemente — e assim se metamorfosear no belo príncipe do costume. O que acaba por conseguir, e vivem muito felizes para sempre. E tudo isto em três páginas.

Não é das histórias mais interessantes que aqui se encontram, longe disso. É demasiado banal.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 5 de novembro de 2016

Lido: Pilar de Fogo

Pilar de Fogo (bibliografia) é uma noveleta de Ray Bradbury que mescla o horror e a ficção científica. Ambientada no futuro, mais propriamente no ano de 2349, a história tem como protagonista um homem nascido em 1898... e falecido em 1933. Um morto, portanto. Mas um morto de que repente dá por si vivo, ou pelo menos animado, numa sociedade utópica (ou distópica?) do futuro longínquo que desconhece a morte e os rituais que a acompanham no nosso tempo, ou pelo menos no tempo da nostalgia de Bradbury, uma sociedade desprovida de cemitérios, na qual o fim de vida se faz em crematórios.

Quem conhece a obra deste autor americano depressa reconhece nesta história vários dos seus temas mais típicos. O outono como época de morte e renascimento, perfeitamente exemplificado pela celebração do Halloween e tudo o que esta tem de macabro. A desconfiança perante a tecnologia, que por vezes roça a tecnofobia, e perante a racionalidade, postas em confronto, de forma desfavorável, com a magia de tudo o que é irracional, fonte da poesia. O americanismo quase quintessencial. A homenagem a escritores que Bradbury admira.

Nesta história, o morto-vivo chega carregado de ódio ao admirável mundo do futuro, não o compreende e não é por ele compreendido. E mata. Mata, e em série, e cada vez mais, mas não é por Bradbury apresentado como mau; é apenas alguém apanhado numa situação impossível, alguém que procura recuperar a pureza e a poesia do passado da única forma que consegue imaginar.

É uma história estranha, esta. De novo não é das melhores histórias de Bradbury, arrastando-se em demasia em vários trechos, e trazendo ideias que serão provavelmente vistas por muita gente como francamente bizarras, pelo menos até se saber em que ano foi escrita: 1946. Um ano após o fim da II Guerra Mundial, quando era máximo o impacto do Holocausto, com a sua morte industrializada e tecnológica, os seus crematórios, o seu friso de horrores. Este número explica muita coisa, torna a história muito mais compreensível. Mas não creio que chegue para torná-la realmente boa. É razoável, apenas isso.

Conto anterior deste livro:

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Lido: O Cheiro do Pensamento

O Cheiro do Pensamento é mais um dos pequenos contos do Luiz Bras, embora este até seja dos maiores que se encontram neste livro. Trata-se de um conto a que talvez se possa chamar horror policial, e fiquem desde já avisados de que não é possível falar muito mais dele sem revelar detalhes de enredo, portanto daqui para a frente haverá spoilers.

Apesar do que ficou dito acima, e apesar de nada ter de FC, este é um conto que não se concentra nem na investigação de crimes, nem propriamente na criação de um sentimento de inquietação ou medo, mas na ideia, de uma forma muito característica da ficção científica. E a ideia que o move é a seguinte: e se — o eterno "e se" — um assassino em série resolvesse enviar uma mensagem ao mundo em geral, soletrando-a através das iniciais dos nomes das pessoas que mata? É o processo de descoberta dessa mensagem, e as interrogações que ela levanta a quem a descobre que este conto (sumariamente) descreve.

E sim, é mais um bom conto. Há ali um detalhezinho no início que destoa um pouco, parece-me, mas o todo é francamente bom.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Lido: Brinca Comigo!

Brinca Comigo! (bibliografia) é um conto de ficção científica de João Barreiros que... hum... que eu já tinha lido e comentado aqui na Lâmpada. Mais especificamente, foi há quatro anos e está aqui.

Relido agora, o conto não parece tão fraco como pareceu nessa altura. Sim, mantém todos os defeitos, sim continua a ser derivativo de outras e melhores histórias do próprio Barreiros e sim, há demasiadas gralhas, há uma necessidade demasiado gritante de edição profissional, de alguém capaz de dizer ao autor "isto aqui é tolice, isto aqui podia estar mais bem resolvido, isto aqui não te faz justiça enquanto escritor", e por aí fora, mas não me pareceu agora tão mau como em 2012.

Não comparei as duas edições (e já não me lembro o suficiente da que li primeiro) para saber se há alguma mudança significativa entre uma e outra que pudesse explicar em parte a diferença de opinião. Mas o mais certo é ela dever-se ao conto agora não me ter chocado.

Nessa altura, ao deparar com uma história tantos furos abaixo do que é habitual em João Barreiros, a opinião que dela formei parece ter sido influenciada pelo desagrado da surpresa. Agora, à segunda leitura, essa surpresa já não existe, já sabia o que aí vinha e apercebo-me de que, embora a história continue a ser o pior conto que Barreiros escreveu depois de ganhar segurança enquanto autor, não é tão má como isso. É apenas fraca. Barreiros tem muito melhor. Muito melhor. Mas a verdade é que há por aí muito escritor que nem a este nível consegue chegar.

Lido: Crisálida

Crisálida (bibliografia) é um conto de Ray Bradbury, de uma ficção científica híbrida de horror e fantasia, sobre um homem que atravessa uma metamorfose. A história lê-se quase como uma peça, em ambiente fechado, dois homens (aos quais se vem depois juntar um terceiro) e um morto aparente, recoberto por uma camada quitinosa e verde. Dois, ou três, homens apanhados de surpresa, sem saberem o que fazer, sem saberem até o que pensar, dilacerados entre a curiosidade, a esperança e o medo. Dois homens com opiniões diferentes e que discutem muito, que até se enfrentam por vezes.

É daqueles contos de ideia, nos quais esta é esmiuçada de forma intensa e se pode resumir como "e se um homem passasse pelo mesmo processo que de uma lagarta dá origem a uma borboleta?" Como seria? E que tipo de criatura sairia da crisálida? Não é muito difícil imaginar como a resposta pode trazer consigo qualquer coisa de místico; afinal, se há adjetivo que é comummente associado às borboletas, esse adjetivo é "perfeito".

É um conto de Bradbury, e isso diz quase tudo. Não dos melhores, mas também não dos piores.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Lido: A Portuguesa

A Portuguesa é uma noveleta histórica de Robert Musil, parte da sua obra de 1924 Três Mulheres. Conta a história de um senhor feudal, suserano do castelo de Ketten, ou Catene, sito, presume-se, algures nos Alpes. Este senhor mantém uma antiga disputa com os Bispos de Trento, a qual domina boa parte do conto porque é essa disputa que vai fazer com que o protagonista pouco desfrute da sua mulher, mantendo-o em campanha por anos a fio. Esta mulher é a portuguesa do título, mas pouco de português um leitor português nela encontra. Para Musil, a portuguesa é mais uma pitada de exotismo do que uma pessoa que represente um povo. Para o desenrolar da trama, tanto daria que fosse portuguesa como outra estrangeira qualquer; bastaria que o fosse, estrangeira, oriunda de algum lugar com uma língua suficientemente diferente do alemão de autor e protagonista desta história para a tornar quase incompreensível. Mesmo sendo esta diferença um dos principais motores da história que, por entre as reviravoltas de um enredo que no fundamental é dramático, ainda que brando, se dedica a explorar a noção de outro. Embora, creio eu, com pouca profundidade visto que não existe realmente aqui mais que ténues vislumbres de uma cultura diferente.

Não é do tipo de história que me encha as medidas e não é história que me vá perdurar na memória. Está longe de ser uma má história, obviamente, e é pior quando aferida pelas peculiaridades do meu gosto literário do que por qualquer medida razoavelmente objetiva de qualidade, mas a verdade é que não gostei por aí além.

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terça-feira, 1 de novembro de 2016

Lido: Os Cofres de Kalvbard

Os Cofres de Kalvbard (bibliografia) é mais uma noveleta de ficção científica altamente distópica de Telmo Marçal. Desta feita, o tema é agrícola. Estamos, claro, no futuro e a trama serpenteia entre um grupo de pessoas que procura sobreviver cultivando a terra com sementes obtidas fora dos circuitos corporativos e patenteados de comercialização dessas coisas, portanto ilegalmente, e os Cofres de Kalvbard, um armazém de biodiversidade profundamente enterrado no Ártico norueguês, onde sementes são guardadas para uso das gerações futuras, caso haja necessidade. Passando por vários outros sítios.

É mais uma história bem desenvolvida e extremamente cínica, como é hábito no autor, retratando um mundo inteiramente nas mãos de corporações desprovidas de qualquer sinal de escrúpulos, que não se detêm perante nada, nem do assassínio, nem do genocídio, para levarem a sua avante. Para quem tem dificuldades de compreensão, Goebbels, o próprio, ainda que em versão razoavelmente virtualizada, faz a sua aparição.

Algumas das histórias do Telmo Marçal podiam perfeitamente chamar-se "histórias do TTIP". Porque é para a sua concretização que este tipo de acordos corporativistas nos encaminham. E por isso, lê-las funciona como alerta.

Leiam-nas, pois.

Contos anteriores deste livro: