segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Ano novo

Há uma quantidade enorme de anos, quando este blog era um bebé e eu me entretinha a alimentá-lo com o que a minha cabeça maluca ia retirando dos títulos dos spams que recebia por email, também aconteceu — por estranho que isso pareça a quem vive permanentemente no presente — um ano novo. E o meu spam, simpaticamente, acompanhou a efeméride, fornecendo-me um título que, embora cliché, era muito adequado ao acontecimento: Ano Novo, Vida Nova. Ou algo do género. Com base nesse título e no que eu há muito vinha sentindo sobre este deprimente país em que vivemos, escrevi o seguinte spamema:

Ano novo vida nova

Ano novo
vida nova
bota o ovo
para a cova

Dorme o povo
e não acorda
porque o polvo
se renova

Ano novo
vida nova?
Uma ova!


Isto foi escrito em 2003. Estamos em 2012. Mudou alguma coisa?

Bem, sim, mudou: estamos muito pior do que estávamos nessa época. Com o pior presidente da história da democracia e o pior governo da história da democracia e a pior situação económica da história da democracia gerada por décadas e décadas de roubo organizado por todos os cleptocratas que se foram infiltrando em tudo quanto é partido do dito arco do poder. O arco dos canalhas. O arco dos burlões. O arco da corja imunda e repugnante. O arco dos Relvas, descarados como o Relvas ou mais discretos como os muitos Relvinhas que poucos conhecem mas apodrecem todo o bocadinho da nossa vida coletiva em que têm oportunidade de tocar. O polvo de que ali falava, precisamente.

E o povo, esse, deu tímidos sinais de que talvez, eventualmente, com alguma sorte pudesse vir a acordar, sinais esses corporizados no melhor dia de todos os últimos 365: o 15 de setembro.

Pois o meu desejo, meus caros, é que 2013 seja o ano em que esse povo semidesperto, semiconsciente, semi-informado, semi-inteligente, acorde mesmo. Mesmo. É esse o meu desejo. A esperança, essa, é pouca.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Lido: Auto do Extermínio

Auto do Extermínio (bib.) é uma longa noveleta de Cirilo S. Lemos que se pode enquadrar naquele retrofuturismo mais fiel à história alternativa, apesar de conter alguns elementos de outros géneros. E é, diga-se desde já, uma excelente noveleta. Ambientada no Brasil, como aliás tem sido quase sempre o caso no livro em que se insere, mostra-nos o país em plena convulsão política, nos últimos estertores de uma monarquia prolongada até bem dentro do século XX, agitado por comunistas por um lado e fascistas pelo outro, com o exército, republicano, a constituir uma quarta fação, talvez a mais poderosa, talvez a que mais cordelinhos puxa, dominada por um tal general Protásio Vargas que além de ambição pessoal pode, ou não, ser também movido por interesses estrangeiros.

A história em si mesma é uma história sobre a conquista do poder, sobre atentados e movimentações de bastidores, sobre armas secretas sofisticadas (para o nível tecnológico de meados do século XX, entenda-se, embora também haja um clone metido ao barulho) e assassinos orientados por capacidades premonitórias especiais. Uma história cheia de peripécias e reviravoltas, como costumam ser as histórias de todas as revoluções, e que portanto tem do princípio ao fim esse interesse, o interesse de se saber quem sairá vencedor. Mas é, sobretudo, uma história muito bem escrita — salvo um par e meio de erros de revisão —, com um magnífico ritmo e pormenores cheios de algo a que só posso chamar literatura. Tudo, ou quase, muito bom.

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sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Lido: Contos Misteriosos

Contos Misteriosos é mais uma das pequenas antologias temáticas publicadas com o Diário de Notícias no verão do ano passado. Já não é a primeira que aqui aparece e está longe de ser a última. Desta feita, o tema é bastante vago, o que permite uma grande variedade nos contos escolhidos. Alguns são contos fantásticos, outros de fantástico nada têm, e as abordagens e objetivos que os cinco autores pretendem com eles atingir são os mais diversos possível. O que, julgo, não é lá muito bom, tendo em conta a proposta subjacente a fazer uma antologia temática.

O certo é que nenhum me encheu as medidas. Todos têm características que me agradaram, e todos têm características que me desagradaram. Na verdade, a coisa foi mais longe: aquele que me pareceu literariamente mais forte, portanto de certa forma o melhor dos cinco, foi aquele que menos me agradou: Roubo. Em menor grau, o mesmo aconteceu com vários dos outros, o que me deixou com uma perplexidade ao acabar a leitura: terei eu gostado desta antologia?

Normalmente é-me fácil responder a este tipo de pergunta. Se uma antologia não tem contos maus e os tem bons, ou pelo menos tem destes em número consideravelmente superior àqueles, gosto de a ler. O gostar de ler está dependente de acabar a leitura com satisfação, de achar em geral bem gasto o tempo nela dispendido, e isso normalmente fica claro ao fechar o livro, e por vezes bem antes de chegar a esse ponto. Mas aqui não. Aqui acabei-a um pouco perplexo, a perguntar aos meus botões se o que tinha acabado de ler tinha valido a pena.

Acabei por concluir que sim. Que suponho que sim. Com dúvidas. É que aprendi com alguns destes contos e tomei contacto com alguns autores que desconhecia — Collier, Coates e Porter, basicamente — e que me deixaram curioso sobre o que poderão ter escrito além do que aqui li. E isso é bom. Suponho.

Eis o que achei de cada um dos contos:
Este livro foi comprado.

Lido: Que Vergonha, Rapazes

Que Vergonha, Rapazes é um hilariante poema (soneto?) de Alexandre O'Neil sobre... bem, sobre esta vidinha à portuguesa que não anda nem desanda por culpa de tudo e mais dumas botas. Não-recomendadíssimo aos puristas da orthographia, que terão uma síncope logo ao primeiro verso ("pràqui"?! T'arrenego, abrenúncio!), muito recomendado a todos os que saibam alguma coisa sobre a língua tal como ela é, bem viva nas bocas dos seus falantes. E em especial a quem tenha sentido de humor, naturalmente.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Lido: Guizos

Guizos (bib.), de Bruce Holland Rogers, é mais um conto curto fantástico contado, na primeira pessoa, por um sonho. Não um sonho vulgar, daqueles que se sonham incoerentemente à noite e desaparecem mal o sonhador acorda. Mas um sonho que em tempos tinha sido homem, e que fora transformado em sonho pela violência de uma guerra de conquista. Mas esse sonho muda hábitos, costumes, culturas, até línguas, de modo que quando a guerra acaba — se é que chega a acabar algum dia — não se percebe bem quem é conquistador e quem fica conquistado. Mais um conto magnífico, pleno de subtileza, que se socorre do fantástico para fazer pensar em coisas bem concretas do mundo que nos rodeia. Como acontece quando ele é bem usado. Muito bom.

Lido: O Sr. Magia

O Sr. Magia (bib.) é mais um conto de Steven Bauer, desta feita adaptando um argumento de Joshua Brand e John Falsey. Bastante bom, por sinal. Trata-se de uma história fantástica e melancólica sobre um velho ilusionista que perdeu o jeito e, com ele, o carinho do público. Ganhando a vida em espetáculos quase vazios de assistência numa casa barata, por caridade do dono, o protagonista vê que até isso ameaça fugir-lhe. É então que decide investir em novo material e acaba por comprar um baralho de cartas realmente mágicas, que lhe permitem um derradeiro fulgor de sucesso. Mas nem estas duram para sempre. É uma história muito humana sobre o envelhecimento e a degenerescência e sobre como lidar com eles.

O texto de Bauer parece tratar bem a história em que se baseia e a tradutora até parece não ter cometido argoladas tão grandes como em contos anteriores do livro, de modo que a leitura flui razoavelmente bem. O melhor conto do livro até ao momento.

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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Lido: Ídolo

Ídolo é um conto curto de John O'Hara, autor americano com quem ainda não tinha tomado contacto. O conto passa-se em Washington e parece descrever apenas uma entrevista entre dois velhos conhecidos dos tempos da faculdade, um deles subsecretário de qualquer coisa, o outro à procura de emprego. Com bons diálogos, é uma história sobre o tráfico de influências nas mais altas esferas, sobre o que se pode e o que não se pode dizer, sobre a hipocrisia. Soa interessante, não é? Pois, mas para mim não foi. O'Hara não tem culpa, que escreveu isto em meados do século XX, mas a verdade é que basta assistir de olhos abertos a um episódio de The West Wing ou, num registo bem diferente, a um do Yes, Minister, para deixar de ter ilusões acerca do que realmente se passa nos corredores do poder. E em comparação este conto sabe a muito, muito pouco. A única coisa que retirei desta leitura foi um rotundo meh.

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Lido: O Teste

O Teste (bib.), conto curto de ficção científica de João Barreiros, é ao mesmo tempo sátira e desabafo. Num futuro indeterminado, num Portugal mergulhado no caos e na hiperviolência, um professor prepara-se para arriscar a vida — que pouco vale — para fazer uma avaliação aos seus alunos; o teste do título. Mas, para seu horror, vai descobrir que as coisas não vão correr como espera, embora seja isso mesmo o que o leitor já espera dado tratar-se de um conto de Barreiros. Apesar de seguir um esquema que o autor já usou bastante, o conto é bastante bom: estilo, enredo e dimensão conjugam-se na perfeição e, embora seja previsível que as coisas corram mal, a forma concreta como isso acontece não o é. Já tenho mais dúvidas quanto às ideias que estão por trás deste conto. É que a noção de que a escola caminha para se transformar em zona de guerra povoada por professores que tentam fazer o melhor que podem e sabem mas estão de mãos atadas por um sistema ineficaz e rodeados por hordas de imbecis armados até aos dentes contribuiu decisivamente para a aberração em curso corporizada por um tal Nuno Crato. E o pior é que os dados de comparação internacional entre as nossas escolas e as dos outros — ou melhor, entre os nossos alunos e os dos outros — desmentem essa ideia com grande veemência. Ou seja: este conto, sendo bom, mostra as coisas como poderiam ser se fossem muitíssimo diferentes do que são. Apesar de ser compreensível que um "stor" cansado e farto do que faz se possa sentir assim de vez em quando, especialmente se lhe calharem em sorte aquelas turmas problemáticas que todos bem conhecemos, cheias de miúdos sem quaisquer perspetivas de futuro, sem qualquer sombra de motivação e/ou curiosidade intelectual.

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terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Lido: Ao Perdedor, as Baratas

Ao Perdedor, as Baratas (bib.) é uma noveleta algo estranha de Antonio Luiz M. C. Costa, em parte história alternativa, em parte aventura pulp, em parte utopia política e em parte fantasia kafkiana. Passa-se num mundo alternativo, com um ponto de divergência que nunca fica inteiramente claro mas é antigo, data pelo menos de vários séculos antes dos presentes, tanto o ficcional (que parece situar-se por volta de meados do século XX) como o real. Nesse mundo, a América não se chama assim mas Colômbia — o que, até que o leitor deslinda a diferença das Colômbias, a real e a ficcional, causa alguma confusão — e a sua metade norte não foi colonizada pelos ingleses, mas pelos holandeses. Não é, contudo, aí que se desenrola a história, embora esse facto tenha importância por ser um cidadão da Colômbia do Norte o protagonista da história, e por esse país se encontrar em fase de resvalamento para um regime muito semelhante ao regime nazi da Alemanha da nossa realidade, com todas as implicações que esse facto tem. O protagonista, aliás, não se limita a ser cidadão: é também agente secreto, e tem uma mentalidade muito semelhante à dos nazis. Por seu lado, o Brasil, lugar onde a história se ambienta, é uma república democrática, industrializada e culturalmente integrada, misturando num todo, ainda que não inteiramente pacífico e coeso, as suas heranças índia, portuguesa e africana. O início da história vai encontrar este país em plena campanha eleitoral para umas eleições presidenciais nas quais um candidato comunista (e indigenista) leva vantagem. A tarefa do protagonista é precisamente mudar o rumo da campanha brasileira, impedindo o triunfo da esquerda. Como? Através de um atentado perpetrado por uma arma secreta.

E por aí vai.

Basta esta introdução, que nem chega a falar de muitos outros detalhes importantes para a história, para se perceber que esta noveleta está repleta de conteúdo. Esse, aliás, é o seu maior defeito: não se limita a estar repleta de conteúdo, mas transborda. Tem tanta coisa, é um tal turbilhão de ideias, personagens, ambientação ucrónica, tudo e mais alguma coisa, que o autor se vê obrigado a deixar as personagens mal caracterizadas e a entrecortar a trama com digressões algo longas para situar o leitor na história — e mesmo assim não evita algumas confusões, como no supracitado caso da Colômbia do Norte — enquanto mantém a extensão do texto suficientemente curta para o reduzir a noveleta. O material é simplesmente demasiado. Tudo o que aqui se encontra, explorado de uma forma mais aprofundada, daria para uma novela, e não das mais curtas. Acrescentando-lhe um ou dois arcos de história (ou talvez uns "ramais", umas analepses, uns saltos no tempo, coisas dessas) facilmente se chegaria ao romance. E eu julgo que a história ficaria melhor assim.

Porque não consegui deixar de sentir, ao acabar a leitura, aquela sensação de potencial imenso mas insuficientemente explorado que por vezes sentimos ao lermos ficções curtas que facilmente dariam longas. Porque quis conhecer melhor várias daquelas personagens que fazem aparições fugidias ao longo da trama e até o próprio protagonista, também ele pouco tridimensional. Porque a alternativa histórica me pareceu potencialmente muito rica. Porque, em suma, tudo aquilo me interessou bastante e acabou depressa demais deixando uma sensação de incompletude. Esta poderia ser uma boa novela, até um bom romance. Mas não me parece que seja uma boa noveleta. Sou de opinião que cada história tem um tamanho certo, aquele tamanho que realmente lhe faz justiça, e acho que o desta não é este. Fica a esperança de que o autor um dia o encontre. Porque julgo que a história o merece.

Ah, e Kafka, onde fica? Nas baratas, pois claro. E mais não digo, que isto já vai longo.

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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Lido: «O Acto Sexual é Para Ter Filhos» — Disse Ele

«O Acto Sexual é Para Ter Filhos» — Disse Ele é um famosíssimo e hilariante poema satírico de Natália Correia que transformou em alvo de chacota nacional um tal João Morgado, ao tempo deputado do CDS na Assembleia da República. Morgado defendia em pleno hemicilo a velha e bafienta ideia puritana de que o único fim do sexo é a procriação — a qual, por bafienta e ridícula que seja, continua ainda hoje a assomar aqui e ali —, e Natália Correia improvisou uma resposta em 16 versos que constituem um dos poemas mais poderosos que alguma vez se fizeram em língua portuguesa. Pelo menos entre os que não se destinam a ser musicados. Foi um momento de absoluto brilhantismo, e ainda hoje é impossível não ler estas palavras sem rir dos Morgados que por aí andam. Podem ser lidas na net em vários sítios. Este, por exemplo. Mas o que eu li veio num livro.

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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Lido: O Conquistador

O Conquistador (bib.) é mais um conto curto de Bruce Holland Rogers. Desta feita estamos no reino da fantasia, entre trolls — ou troles, como o tradutor os aportuguesa —, que um belo dia (ou noite; não se sabe bem pois rezam as histórias que o troll é criatura que habita na escuridão eterna das cavernas) sonham com um deus novo chamado Conquistador. Este promete-lhes uma vida mais fácil, à superfície, aquela vida que os homens vivem na sua cidade. Para a obterem, basta-lhes terem nele fé, prestarem-lhe homenagem e fazerem o que lhes ordenasse. Ah, e chamarem-no de vez em quando pelo seu verdadeiro nome. Em troca, ele trataria de os ajudar a conquistar essa nova vida. E os trolls assim fazem, e o deus cumpre o prometido. Mas um deus chamado Conquistador é capaz de não ser inteiramente digno de confiança.

Trata-se de mais uma boa história, com fartas quantidades de conteúdo para quem o souber entender, em especial tendo em conta que Rogers é americano e que se há no mundo de hoje país que tende a ceder aos caprichos do deus Conquistador, esse país chama-se Estados Unidos da América. Não acho que seja dos melhores contos do livro, mas é bom.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Lido: Julieta

Julieta (bib.), de Pinheiro Chagas, é um romanticíssimo conto de horror sobrenatural sobre um jovem que se perde de amores pelo fantasma de uma mulher de superlativa beleza. E quando digo romanticíssimo refiro-me mesmo às características (e aos ridículos) da literatura romântica: o absurdamente exagerado sentimentalismo, a inverosimilhança das paixões, a linguagem empolada e pretensiosa, tudo isso. Na prosa de Pinheiro Chagas, as personagens não falam: peroram. Também não vivem: trambolham de cascata emocional em cascata emocional sem qualquer controlo nem o mínimo sinal de inteligência. Tudo, por profundíssimo que se apresente, é duma superficialidade atroz. O protagonista desta história põe os olhos numa mulher — ou naquilo que julga ser uma mulher — e imediatamente passa a amá-la "mais do que à vida". Porquê? Porque é bela, pois então! E haverá mais alguma qualidade feminil capaz de fazer um mancebo perder-se de amores? Claro que não! Só a beleza existe, especialmente se salpicada de uma pitadinha de mistério. Quem é ela, oh, perdição do coração!, quem é?

Perfeitamente ridículo.

E no entanto...

E no entanto há neste conto certos detalhes que me levam a não o renegar completamente como simples exemplo da má literatura romântica. Pinheiro Chagas entrelaça no enredo principal pequenos toques de um humor irónico, apontado às hipocrisias e — sim — aos ridículos da sociedade do seu tempo. E há neste conto uma certa qualidade cinemática. Apesar da banalidade de boa parte do enredo, certos pormenores, certos detalhes descritivos, conseguiram levar-me a pensar em imagens. Expurgado dos exageros de linguagem, melhor explorado aqui e ali e transformado em guião, este conto não daria um filme de longa metragem porque não tem dimensão para tal, mas, bem filmado, com bons efeitos especiais (sim, precisaria deles), poderia dar um bom episódio de uma série fantástica ou uma boa curta.

E isto é uma qualidade.

Este livro foi comprado.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Lido: A Viagem do Sr. Culpa

A Viagem do Sr. Culpa (bib.) é a novelização por Steven Bauer de uma história de Gail e Kevin Parent. A história tem algum interesse à sua maneira delicodoce. O Sr. Culpa é isso mesmo, o senhor culpa. A personificação do sentimento de culpa, que vive uma vida de pessoa, com emprego numa espécie de corporação celestial (o qual consiste, naturalmente, em instilar sentimentos de culpa nas pessoas), hierarquia, avaliações de desempenho, enfim, o pacote completo. E férias, claro. É nessas férias que acontece a viagem do título — um cruzeiro —, e é aí que o Sr. Culpa vai deparar com o inesperado. O Amor. Assim mesmo, com inicial maiúscula. Tudo bastante aceitável, tudo construído com imaginação e, aparentemente, pelo menos alguma qualidade literária. O problema é a horrenda tradução. Um exemplo: há uma parte do texto em que Bauer faz uma referência ao ténis, e descreve uma cena como se de um jogo se tratasse. Com a correspondente evolução do resultado. Quem sabe alguma coisinha sobre o assunto, sabe que o resultado é expresso, em inglês, como "fifteen love"; "thirty love"; "fourty love". Qualquer tradutor com um mínimo de competência traduziria como "quinze nada"; "trinta nada"; "quarenta nada". Que fez a tradutora? "Quinze amores", "trinta amores", "quarenta amores."

Sim. A sério.

Contos anteriores deste livro:

Lido: A Lei

A Lei, de Robert M. Coates, é daqueles contos de um fantástico salpicado de humor e surrealismo que encaixariam que nem uma luva na proposta do Infinitamente Improvável. Ambientado em Nova Iorque, descreve o que acontece quando a banalidade quotidiana é interrompida por um afluxo completamente anormal de veículos a uma das pontes que ligam Manhattan a Long Island, gerando longas filas e mais longas esperas, além de um autêntico ataque de nervos aos portageiros. Este acontecimento traz para o primeiro plano do consciente coletivo outros acontecimentos semelhantes que tinham vindo a suceder nos últimos tempos, mas que haviam sido relegados para a categoria de coincidências sem importância. E segue por aí fora, ainda que não por muito tempo — o conto é curto — mostrando uma sociedade que tenta adaptar-se, a custo, à incerteza gerada por aqueles fenómenos inexplicáveis.

Gostei mais da premissa do que propriamente do conto, apesar de este não me parecer mau. Mas pareceu-me que explorou a premissa de uma forma demasiado superficial, tocando apenas pela rama as consequências de um tal acontecimento. Dir-se-ia que o autor, depois de ter a ideia, não teve espaço, tempo, vontade ou arte para a explorar com a profundidade que ela talvez merecesse, impressão que talvez seja acentuada pelo final em aberto. Parece-me que é pena. Haveria muito sumo a extrair deste naco de fruta. Mas ainda assim não desgostei.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Pais da Aviação

Pais da Aviação (bib.) é uma noveleta de Gerson Lodi-Ribeiro que consiste de quatro pequenas histórias interligadas, ambientadas num universo alternativo em que a Revolução Francesa teve completo sucesso e a França napoleónica conseguiu conquistar a maior parte da Europa (e consequentemente a maior parte do mundo, dado que à época quase todos os países da Europa Ocidental possuíam vastos impérios coloniais). Como? Graças à tecnologia, bien sûr. É um texto interessante, bem escrito e bem construído, que o autor consegue tornar verosímil apesar de cair numa tendência comum a muitos escritores de história alternativa e que me parece altamente problemática em termos de verosimilhança: a conservação, em linhas históricas profundamente alteradas, dos mesmos indivíduos que ocuparam lugares-chave na nossa. E assim surgem aqui Júlio Verne, os irmãos Wright, Santos-Dumont, etc. Percebo a tendência, percebo a tentação da homenagem, da transmutação da pessoa em personagem, mas não a acho minimamente lógica em termos de coerência, do que está por trás do próprio conceito de história alternativa.

Por outro lado, em literatura vale tudo. E quando o resultado é bom, como me parece ser aqui o caso, há que pôr essas picuinhices um pouco de parte. Como facilmente se poderá deduzir de algo baseado nos atos de Napoleão e sucessores, a noveleta foca-se em peripécias militares, em detalhes geopolíticos, e no efeito de avanços tecnológicos sobre as estratégias militares em cada época retratada (ou sobre as próprias tecnologias e os seus inventores). Como seria a batalha naval de Trafalgar se a frota franco-espanhola dispusesse de navios a vapor? Qual o impacto da aviação ou de agentes químicos ou biológicos nas correlações de forças nos campos de batalha? Que forma assumiria o mundo se fosse dominado tão completamente pelos franceses? Gerson Lodi-Ribeiro responde com uma boa noveleta, cujo maior defeito é ter-me parecido por vezes demasiado concentrada em criar o cenário do que propriamente em contar histórias nele ambientadas. Fica uma certa sensação de esboço de algo maior, de que há ali muito pano para ser aproveitado em mangas que por enquanto — julgo eu — não apareceram.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Lido: Vem, Vulva Antiqüíssima e Idêntica

Vem, Vulva Antiqüíssima e Idêntica é, mais uma vez, não um título mas um primeiro verso de um poema de Mário Cesariny de Vasconcelos. Com trema e tudo. Desta feita, porém, e apesar de continuar a haver a descontração no emprego de referências sexuais e do calão que se encontra abundantemente nos textos anteriores, este poema é bastante mais lírico, muito menos divertido e até, sim, muito menos porco. É uma ode à vulva, uma declaração de amor à vagina, mas não uma piada. Julgo mesmo que não tem qualquer intenção de chocar quem quer que seja. Só se expressar um sentimento, e de uma forma bem menos crua do que a empregada noutros textos. Não me fez rir, nem sequer sorrir; fez-me apreciar o belo tratamento da língua — sem nenhum segundo sentido, se me fizerem esse obséquio — que Cesariny aqui faz, independentemente de o fazer usando palavras que as "pessoas de bem" normalmente não usam. Querem saber? Fodam-se as "pessoas de bem."

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Lido: A Fera

A Fera (bib.) é um conto curto de Bruce Holland Rogers, escrito como se se tratasse de um conto popular, de uma lenda tradicional, mas que não nos fornece a lição de moral típica dessas histórias, antes nos confronta com um dilema. A fera do título, que começa a história livre mas um belo dia é capturada, é mágica. Não só fala como, o que é mais importante, o seu cuspo é mágico e possui propriedades curativas, embora também tenha a perversa propriedade de só funcionar quando a fera é maltratada. E é esse o dilema moral que a história nos apresenta. Como que nos pergunta: que fariam vocês? A fera, criatura obviamente inteligente e sensível, almeja apenas a liberdade, mas só mantendo-a presa e maltratando-a obterão uma vida longa e saudável. Que fariam vocês? O que venceria os vossos dilemas pessoais se fossem vocês os possuidores da fera? O egoísmo? O medo do sofrimento e da morte? A empatia? A bondade? O quê?

Bastaria isto para estarmos perante uma grande história, mas ainda por cima está muito bem escrita. Trata-se, portanto, de um conto absolutamente brilhante. Muito, muito, muito bom.

Lido: Vanessa no Jardim

Vanessa no Jardim (bib.) é um conto sobrenatural de Steven Bauer com uma ambiência novecentista e muito romântica. A Vanessa do título é modelo, musa inspiradora e mulher de um pintor, talentoso e promissor, que acaba por morrer num acidente, mergulhando o pintor numa espiral autodestrutiva. Mas é quando este bate no fundo, alcoólico e sem vintém, que Vanessa o resgata, devolvendo-lhe uma razão para viver e tema para os seus quadros. Vanessa, ou o seu fantasma. Ou eventualmente o seu delírio.

O conto, no original, talvez tenha algum interesse — pelo menos a história é bonita —, mas é vítima de uma tradução de tal forma pavorosa (chega a incluir pérolas como "Então sugiro que te coçes". Sim. A sério. Logo na primeira página) que o leitor fica sem perceber lá muito bem se toda aquela inépcia literária se deve à tradutora ou se Bauer também é parcialmente responsável por ela. Seja como for, o resultado é francamente mau.

Conto anterior deste livro:

Lido: Roubo

Roubo é um conto de Katherine Anne Porter que, de uma forma fragmentária e algo impressionista, constrói uma reflexão sobre a natureza da propriedade e aquilo que a rodeia. No centro de tudo está uma carteira (uma mala?), mas Porter passa o conto inteiro a desviar dela a atenção do leitor, falando disto e daquilo, descrevendo entrecortadamente algumas horas na vida da dona da carteira, a protagonista da história, e traçando em largas pinceladas um esboço do seu entorno social. A criaturinha analítica que habita dentro de mim, o escritorzeco, deliciou-se com a magnífica técnica que Porter aqui aplica. Este conto é um perfeito ato de prestidigitação literária, e a criaturinha analítica ficou fascinada com o modo como ela conseguiu executá-lo. Mas o leitor descontraído que também por cá anda teve uma reação bem diferente. Não detestou o conto, mas quase. Porque nada nele conseguiu realmente prender-lhe a atenção, despertar-lhe o interesse. Nada de nada.

Só posso concluir, portanto, que se trata de um grande conto do qual não gostei nada. Às vezes acontece.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Se Acordar Antes de Morrer...

Se Acordar Antes de Morrer... (bib.) é uma noveleta de João Barreiros de que já aqui falei há coisa de ano e meio após tê-la lido noutra publicação. Não tenho grande coisa a acrescentar: esta noveleta e a novela lovecraftiana Por Detrás da Luz são claramente do melhor que Barreiros e o fantástico português produziram na última década. Dito isto, se puderem evitem esta edição: as gralhas são tantas, a revisão foi de tal forma inexistente, que quase estragam tudo. Quase. Felizmente, há mais duas edições por onde escolher, ainda que uma delas seja brasileira e portanto pouco acessível em Portugal.

Contos anteriores desta publicação:

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Lido: Impávido Colosso

Impávido Colosso (bib.) é uma noveleta de Hugo Vera que, no contexto de uma guerra entre a Argentina (apoiada pelo Chile e por... Inglaterra, por inverosímil que pareça) e o Brasil, apoiado pelo Paraguai, introduz a ideia dos mechas no ambiente sul-americano e retrofuturista. Para quem não sabe o que são mechas, eu explico: trata-se de robôs de grandes dimensões, geralmente de formato humanoide, por vezes tripulados, outras telecomandados, outras totalmente autónomos, e desenvolveu-se à volta deles um subgénero completo de ficção científica, muito dirigido para o público juvenil, com especial preponderância na banda desenhada e na animação. Os Transformers, por exemplo, são mechas.

Um pouco à semelhança do que Carlos Orsi fez com a sua história de super-heróis, Hugo Vera "transplanta" para o Brasil a ideia, mais habituada a outros ambientes, e sai-se razoavelmente da empreitada. Pese embora alguns excessos descritivos e principalmente explicativos (até a infame técnica conhecida como "as-you-know-Bob" faz nesta história a sua desagradável aparição na demasiado longa ambientação inicial), e um português de menor qualidade do que o utilizado pelos autores das histórias anteriores constantes do livro de que esta faz parte, chegando mesmo a incluir alguns erros (a crase! a crase!), a noveleta tem qualidades. Há cenas de ação dinâmicas e em geral bem escritas, por exemplo, e há alguns detalhes de enredo bem pensados. É previsível? Em grande medida é: a sua natureza pulpesca, que é evidente desde o início, torna boa parte do enredo bastante previsível. E no entanto, o final é surpreendente. Na verdade, o final é a melhor parte do texto, conseguindo sozinho fazer com que esta noveleta se erga da mediocridade. Não creio que chegue a transformá-la numa boa história, mas resgata parte do que de menos bom ficou para trás.

Contos anteriores deste livro:

Onde andam os brasileiros?

O Ficção Científica Literária é um projeto que me tem dado algum trabalho, embora não tanto como eventualmente se possa pensar, mas que também me tem permitido fazer alguma análise do que se vai dizendo e sobre quê no campo da FC na literatura e, o que é para mim o mais interessante, me tem causado algumas surpresas. Um exemplo de análise, necessariamente básica visto que o apanhado não é nem pode ser exaustivo, está aqui. Este post agora é sobre a surpresa.

A ideia do FC Literária sempre foi reunir num só lugar links para o máximo possível de publicações online sobre as várias facetas da ficção científica com uma relação próxima com os livros em todos os países de língua portuguesa. Naturalmente, uma vez que não só os brasileiros são em maior número, como a publicação e presumivelmente a leitura de FC estavam em alta no Brasil, ao contrário do que se passa em Portugal, no início os posts brasileiros ou ligados ao Brasil que eram compilados no FC Literária foram bastante mais que os portugueses ou ligados a Portugal. Devo dizer que foi com alguma surpresa que encontrei uma proporção inicial de apenas 2:1. Julgava vir a encontrar uma desproporção ainda maior, por tudo aquilo que ficou dito acima.

Entretanto, foi-se passando o tempo, e esta proporção não se manteve. E não, ao contrário do que eu pensava não se alargou. No momento em que escrevo isto, na verdade, aproxima-se do 1:1, o que significa que nos últimos tempos têm sido mais as coisas escritas por portugueses ou relativas a portugueses sobre alguma vertente da ficção científica na literatura do que o seu equivalente brasileiro. Neste momento, há no FC Literária 825 posts com a etiqueta "Brasil" para 761 com a etiqueta "Portugal", uma diferença de apenas 64. Muito pouco significativa.

Mais curiosas ainda se tornam as coisas quando esta proporção é comparada com a brutal desproporção entre o material brasileiro e o português que me chega através do motor de sugestões do scoop.it. Aí, é quase tudo brasileiro... só que quase nada tem a ver com literatura. Parece que, ao contrário do que acontece em Portugal, no Brasil se fala muito sobre a ficção científica no cinema, em séries de TV, em BD, mas não nos livros.

Porquê? Ou, por outra, onde andam os brasileiros?

É possível que parte da explicação resida no Skoob. Trata-se de uma rede social sobre livros muito popular no Brasil, e talvez seja lá que decorre a maior parte da conversa. No entanto, os portugueses também usam uma rede social sobre livros, o Goodreads, e também lá se passa uma parte significativa da conversa. Além do Facebook e de outras redes sociais.(*) Parece-me, portanto, fraca explicação, até porque não explica a diminuição relativa de material brasileiro ao longo dos meses.

Assim, fico-me com a surpresa e sem respostas. Que se passa com os brasileiros? Onde andam eles? Onde escrevem, se é que escrevem, sobre o que vão lendo?

(*) Em parte porque o motor de sugestões do scoop.it normalmente não recolhe material no interior das redes sociais, que tendem a ser ecossistemas fechados em si mesmos, ou pelo menos muito mais destinados à recolha de material oriundo do exterior do que à divulgação de material para o exterior, e também em parte por decisão minha dada a típica fugacidade do que é colocado em redes sociais, e à fraca fiabilidade dos links para material específico que nelas possa existir, o FC Literária não tem ligações para nenhuma rede social. Só para blogues, portais, sites de notícias, etc. Um blogue é o sítio mais adequado para conteúdo. Uma rede social serve para outra coisa: a divulgação.

sábado, 8 de dezembro de 2012

A estupidez revela-se nestas coisas

Andam aí os caquéticos da velha ortografia com tudo aos saltos porque, segundo dizem, "o Brasil meteu o acordo ortográfico na gaveta", ou vai adiá-lo, ou não sei que mais. As versões são múltiplas.

E, como é hábito nesta gente, são um chorrilho de asneiras.

A verdade é apenas a seguinte: um senador brasileiro, repito, um senador, membro do equivalente local ao nosso PSD que, como os de cá, procura qualquer pretexto para criar dificuldades ao governo quando não é da sua cor política, fez no senado uma proposta para adiar para 2016 a entrada plena em vigor da nova ortografia.

Precisam que eu repita?

1) É uma proposta.

2) Feita por um senador.

3) Destina-se a adiar a entrada plena em vigor da nova ortografia. Esta estava prevista para 2013, se não me engano.

Precisam que eu explique?

No Brasil, como em Portugal, como nos demais países lusófonos, não se adota a nova ortografia de um dia para o outro. Existe um período de transição, durante o qual estão as duas em vigor, a nova e a antiga. No Brasil, como em Portugal, estamos agora dentro desse período. Em Portugal, ele vai até 2015. E no Brasil, no caso improvável desta proposta ser aprovada (o PSDB é minoritário), iria até 2016.(*)

O tal senador, que tem tido por lá mais ou menos o mesmo papel que o Graça Moura tem desempenhado por cá, justifica o adiamento com a ideia de que é preciso tempo para reformulações e detalhamentos de alguns pontos da nova ortografia. Nunca fala em abandono ou anulamento. Fala em aperfeiçoamento.

Mas claro que os idiotas da velha ortografia não perceberam nada, como sempre, e fizeram uma monumental trapalhada com base nisto. Já andam por aí a dizer idiotices como "o Brasil meteu o acordo ortográfico na gaveta," "o Brasil deu uma chapada de luva branca em Portugal" e outras coisas do género. Por causa de uma proposta de um senador.

E é assim que se revela a monumental estupidez desta gente. Não é por terem as opiniões que têm sobre o acordo. É por serem incapazes de compreender as coisas mais óbvias e nunca se coibirem de asneirar a partir dessa sua incapacidade de compreensão.

E são isto, as "elites" desta pobre terra. Alguém ainda se admira por estarmos no estado em que estamos?

(*) Segundo diz o tal senador, Dilma Rousseff aceitou a ideia e está a preparar um decreto nesse sentido, o qual dispensa a votação no senado. Não sei bem se acredite: esta malta é bem conhecida por distorcer os factos. Na verdade, tenho estado à espera do desmentido. Mas o caso de já se terem passado alguns dias e este ainda não ter aparecido dá-lhe uma certa credibilidade. A ver vamos se essa credibilidade se concretiza ou não. Seja como for, trata-se, repito, de um adiamento do momento em que a velha ortografia deverá deixar de ser usada e só disso.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Lido: É Importante Foder (ou não Foder)?

É Importante Foder (ou não Foder)? é, como quem vem seguindo este blogue nos últimos tempos talvez adivinhe com facilidade, outro primeiro verso de outro poema sem título de Mário Cesariny de Vasconcelos. De novo, a vontade de chocar é óbvia, de novo o Cesariny é desbocado quanto baste — se é que se pode ser desbocado por escrito — e até, para as almas mais púdicas, muito mais que o razoável, e de novo é divertido para quem tiver um sentido de humor suficientemente irreverente. Ou juvenil, se preferirem. Desta feita discorre sobre a liberdade sexual e outras coisas congéneres, incluindo uma valente dose de autoirrisão. Não consigo deixar de simpatizar com quem não se leva a sério desta forma genial.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Lido: Quiabo, Sorgo e Inhame

Quiabo, Sorgo e Inhame (bib.), conto curto fantástico de Bruce Holland Rogers, é uma subtil história exemplar sobre a sabedoria. Escrita como fragmento de uma história maior (começa com "e assim", como quem dá sequência a algo), descreve a forma como uma princesa de um reino longínquo vai ter com um velho sábio em busca de sabedoria, por ordens do pai, para poder casar-se com um belo príncipe. O sábio, contudo, põe-na a fazer coisas que nada parecem ter a ver com a obtenção de sabedoria, e ela, de facto, não a obtém. Mas o leitor, se tiver sensibilidade e inteligência para tal, sim. Além de afirmar que o achei um ótimo conto, quero só acrescentar duas palavrinhas: carpe diem.

Lido: A Missão

A Missão (bib.) é uma novelização de Steven Bauer de uma história de Steven Spielberg ambientada na Segunda Guerra Mundial. O conto acompanha a tripulação de um dos bombardeiros pesados americanos destacados na Europa, provavelmente um B-17, durante a 23ª missão do avião. Detalhe de fundamental importância: nunca ninguém regressou da 24ª... e um dos tripulantes, encarado pelos outros como mascote e dono de um singular talento para o desenho que, espera ele, o levará a trabalhar na Disney após a guerra, está precisamente na sua missão número 24. Montado o palco, desenrola-se a peça, de uma forma tão hollywoodesca como seria de esperar, com a iminência do desastre que já se entrevê pelo que ficou dito acima e algum sobrenatural à mistura num fim repleto de deus ex-machina.

O enredo já não é grande coisa, mas o conto não se fica por aí. Não sei bem se é Steven Bauer que é inepto a transformar um guião em conto, se a pavorosa qualidade da tradução lhe esfrangalha o texto ainda mais do que parece à primeira vista, o certo é que o resultado é péssimo. Não há página em que não surjam frases inteiras que não fazem qualquer sentido. Se os outros contos seguirem pela mesma bitola, temos sério candidato a pior livro do ano de leituras.

Lido: O Pretendente

O Pretendente é um curto conto fantástico de John Collier que se desenrola dentro de uma loja que tem fama de vender produtos de sobrenatural eficácia. Poções, mais precisamente. O cliente, como o título indica, está interessado num tipo específico de poção: uma poção de amor. Mas o conto não nos mostra se ela é eficaz ou não, apenas a conversa que antecede a compra, durante a qual o vendedor procura chamar a atenção do cliente para outros produtos, ao mesmo tempo que assegura a eficácia daquele que o protagonista procura. O conto não me pareceu nada de especial; talvez seja demasiado curto para ter real impacto no leitor (ou pelo menos neste leitor), até porque Collier, autor que eu desconhecia, não parece ser nenhum Rogers. Mas é um conto agradável.

Conto anterior deste livro:

Lido: O Dia em que Virgulino Cortou o Rabo da Cobra Sem Fim com o Chuço Excomungado

O Dia em que Virgulino Cortou o Rabo da Cobra Sem Fim com o Chuço Excomungado (bib.), título que até cansa escrever, é uma noveleta de Octavio Aragão que reinventa os acontecimentos ocorridos numa época conturbada da história brasileira, nos anos 20 do século passado, em que no Nordeste imperava o cangaço e um movimento político-militar chamado Coluna Prestes deambulava pelo interior do país a tentar promover a revolução. O Virgulino do título é o cangaceiro Lampião, provavelmente o mais famoso de todos, e a noveleta conta a história de um recontro (que aparentemente nunca terá acontecido, mas por pouco mais que acaso), e posterior encontro, entre a Coluna e o bando de Lampião. Não, não se trata de simples história secreta, pois uma misteriosa personagem intervém, fornecendo a ambos tecnologia aparentemente mágica: pistolas de raios ou um pó capaz de transformar qualquer coisa com motor numa terrível máquina de guerra.

Enquanto português, o meu principal problema com este conto foi a completa ignorância do contexto histórico em que se insere. Conheço, vagamente, a velha história do Nordeste brasileiro com o cangaço, mas até a encontrar aqui nunca tinha ouvido falar da Coluna Prestes, e não fazia a menor ideia do que tinha sido ou até de quando tinha sido. Para mim, como, julgo, para a generalidade dos meus compatriotas, todo o ambiente histórico em que a noveleta se insere é bastante obscuro. E esta é uma história que precisa de contexto para que as suas subtilezas possam ser devidamente apreciadas. Uma história muito brasileira, que provavelmente não funcionará lá muito bem junto de quem não o seja. Por outro lado, é educativa: pôs-me à procura de informação para ver se a entendia melhor. E quando a encontrei percebi que se a possuísse à partida teria gostado mais da história do que gostei. Porque, por exemplo, só a possuindo teria a consciência de que a coincidência de haver três ou quatro forças em presença simultânea nos arredores de uma cidadezinha nordestina, que causa uma grande confusão e é aparentemente forçada, não saiu da cabeça do autor, e é verdade histórica. Por estranho que pareça.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

E de repente olhaste-me de volta

Às vezes acontece. Após passar o que parece ser horas às voltas sem conseguir dormir — ainda que por vezes sejam apenas minutos — desisto e ponho-me a remexer nos gadgets que tiver à mão, aturdindo-me com as luzes coloridas para esvaziar o cérebro da porcaria que nele tende a rodopiar nessas ocasiões como roupa numa máquina de lavar em plena centrifugação.

Foi o que aconteceu há dias, e o gadget escolhido foi o tablet. Liguei-o e, após alguns minutos a deambular de um lado para o outro pela App Store, deparei com uma aplicação gratuita chamada AgingBooth. "Olha," pensei de uma forma tão vaga que talvez só tenha pensado em pensar, "isto é capaz de ser giro." E instalei-a, abri-a, testei-a para ver como funcionava, acendi a luz e fotografei-me com a câmara secundária, que no meu tablet é muito mazinha. Eis o resultado:



Depois, claro, disse à app para fazer aquilo que foi concebida para fazer: envelhecer-me, mostrar-me a minha cara daqui a algumas décadas, quando o peso dos anos finalmente me apanhar e me puxar para bem perto daquele momento em que deixarei de ser eu. Não será a coisa mais animadora para fazermos a nós próprios no aborrecimento e silêncio de uma noite de insónia, mas nem pensei nisso. Estava curioso, mais com a qualidade da aplicação, com o modo como iria funcionar, do que propriamente com o resultado. Por isso, pousei o dedo no botão que me iria envelhecer e...



... e o meu pai olhou-me de volta. O meu pai, nos seus últimos anos de vida, como — infelizmente — melhor o recordo.

Pois é, velhote. Toda a vida me disseram que era parecido contigo, mas nunca acreditei tanto nisso como no momento em que vi a tua cara a olhar para mim do tablet. Sim, há diferenças. Mas só reparei nelas mais tarde. Porque reconheço as pessoas principalmente pelos olhos, e esses são iguaizinhos. Iguaizinhos.

Já te tinha ouvido na minha voz, por vezes com um sobressalto, e agora isto.

Olha, sobrevives em mim, essa é que é essa. E feliz aniversário.

Lido: O Álvaro Gosta Muito de Levar no Cu

O Álvaro Gosta Muito de Levar no Cu, que de novo não é título mas primeiro verso, é um longo poema de Mário Cesariny de Vasconcelos que goza despudoradamente com Fernando Pessoa e seus heterónimos. Também se destina a chocar, como é evidente desde o início primeiro mas, ao contrário do que aconteceu com outro poema mais ou menos no mesmo tom, este tem mesmo graça, tanto pelas situações que imagina (os heterónimos, homossexualíssimos, todos a fornicar uns com os outros e com o pater de todos), como pela forma desbocada com que as descreve. Isto na primeira parte, pois divide-se em duas. Na segunda, em prosa, dedica-se a escaqueirar Aleister Crowley (com cujo nome não atina) e, já agora, o cristianismo, através da descrição de um ritual em que o papel do Nazareno é representado por um sapo. Delirante e, sim, muito divertido para quem tiver um sentido de humor com o seu quê de perverso.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Como uma Colmeia

Como uma Colmeia (bib.) é uma vinheta de Bruce Holland Rogers que, confesso, não consegui compreender por inteiro. Há ali, parece-me, subtilezas que não atingi, talvez fruto de imperfeições de tradução (não que esta me pareça má, pelo contrário), talvez devido à forma como o conto propriamente dito está escrito. Ou talvez seja só impressão minha. Seja como for, o conto narra, com grande dose de poesia, os encontros, desencontros e consumo mútuo de uma mulher e de um "ele" nunca nomeado, uma espécie de fantasma, ou de sombra, ou quiçá de fruto da imaginação dela. A prosa é brilhante, mas faltou-me compreender melhor o conto para conseguir realmente desfrutá-lo.

Lido: O Véu Negro do Pastor

O Véu Negro do Pastor é um conto de Nathaniel Hawthorne que o autor esclarece logo a abrir tratar-se de uma parábola. Não teria sido necessário. Trata-se de uma história moral, com algum terror psicológico à mistura, sobre um padre que um belo dia aparece aos paroquianos com o rosco tapado por um véu negro. O conto descreve todas as suspeitas que esse ato levanta, muitas delas motivadas pela superstição, e no fim surge a lição de moral sobre a natureza ubíqua do pecado que já se adivinhava. Se pareço pouco impressionado é porque o fiquei; o conto não me agradou por aí além. Mas a verdade é que está bastante bem concebido e executado. Hawthorne consegue deixar a pairar uma certa dúvida sobre a possível natureza sobrenatural do que terá levado o padre a esconder o rosto, aplicando de forma perfeita uma técnica literária que Todorov veio muito mais tarde a usar como principal fator identificativo do fantástico. Sim, o conto é bom. Mas como gostarmos ou não das coisas nem sempre tem a ver com elas serem boas ou não, não me agradou por aí além: o tema, as ideias, os ambientes, a liçãozinha de moral são-me bastante indiferentes.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Lido: Por Detrás da Luz

Por Detrás da Luz (bib.), novela lovecraftiana de João Barreiros, é bem capaz de ser a melhor de todas as obras que ele publicou na primeira década deste século, e só não o afirmo taxativamente porque ainda me falta ler uma. E também é uma das melhores coisas que o fantástico português produziu na década passada.

Trata-se, como disse, de uma obra lovecraftiana mas, como seria de esperar quando se fala de Barreiros, não é uma simples história de horror: tem ficção científica à mistura. Ambientada em dois tempos do futuro, conta a história de um viajante no tempo que, através de encantamentos retirados dos livros de Lovecraft e de um bocado de pele de um dos inomináveis lovecraftianos, logra recuar três décadas até aos momentos que antecedem a destruição atómica de Lisboa. Aí, recorrendo a estados alterados de tempo (ora lento, ora imóvel), dedica-se a recuperar artefactos que de outra forma seriam vaporizados na hecatombe nuclear, os quais lhe vão servir de base para um pequeno negócio na veneziana Cascais do seu tempo. Que tem isto a ver com Lovecraft? Tudo. Além de tal pele referida acima, a destruição de Lisboa, também ela no nosso futuro, ainda que mais próximo, ficou a dever-se à abertura iminente de um portal a meio do Tejo de onde se preparavam para jorrar todos os horrores lovrcraftianos.

Tudo isto é pano de fundo, muito bem imaginado e também muito bem caracterizado, mas a história em si tem mais a ver com os dilemas interiores do protagonista, mais complexo e tridimensional do que o que é hábito em Barreiros, o qual primeiro nos aparece cínico e duro mas depressa se vem a descobrir sentimental, embora perverso, e dilacerado por saudades da ex-mulher e por sentimentos de culpa.

Para compor o ramalhete, às tantas repara que nas suas viagens ao passado começam a surgir criaturas lovecraftianas por todo o lado, que estas não ficam sujeitas ao tempo lento ou imóvel como o resto de Lisboa e, o que é pior, que o ajudam, lhe pedem favores, lhe oferecem um mapa com um X a marcar a localização de um tesouro. Que tesouro? Não é muito difícil descobrir, até porque tem total coerência com quem é e o que sente o viajante no tempo.

Recomendo sem reservas este texto a qualquer leitor, mas tenho de fazer uma ressalva: se puderem escolher leiam a versão que saiu na antologia A Sombra Sobre Lisboa. É que a deste livro está francamente mal revista.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: Grande G

Grande G (bib.), noveleta dieseleroticosteampunk (é um nó cujo desenlace vos deixo como passatempo) de Tibor Moricz, é, sobretudo, uma sátira. Só não percebi bem a quê. À superfície, a história relata uma luta pelo poder entre as várias gerações de uma família de monstros em forma humana, sedentos de sexo e poder, num universo ficcional simplificado e esquemático composto por duas cidades, Steam City e Smoke City. A família dirige esta última com férrea mão corporativa, num capitalismo monopolista levado ao derradeiro extremo. A outra cidade é rival eternamente derrotado devido à posse por Smoke City de tecnologia mais avançada e a cirúrgicas ações de sabotagem que mantém a outra cidade prisioneira na era do carvão.

Faz lembrar, vagamente, o mundo real na época da Guerra Fria, mas tudo é exagerado e esquematizado até se tornar grotesco. E nada há de mais grotesco do que a própria família Grummann, três gerações mergulhadas na mais repugnante depravação. Há de tudo: pedofilia, libertinagem, incesto, incesto pedófilo, sem esquecer o assassínio, num fiel paralelismo entre as relações sexuais e as de poder, e na total impunidade que advém desse poder ser absoluto.

E é por isso que não sei bem o que é aqui satirizado, se o simplismo ideológico de alguma esquerda que representa os grandes tubarões financeiros e industriais como um mal sem matizes, se a própria natureza desse mal. Seja como for, é uma história interessante. Não posso dizer que tenha gostado assim muito dela, mas é interessante. E arriscada: arrisca-se a chocar alguns leitores de tal maneira que os leve a achar tudo aquilo gratuito e por isso a rejeitá-la. Mas, embora o choque exista e seja propositado, não creio que tenha alguma coisa de gratuito. Pelo contrário: é conteúdo.

Conto anterior deste livro:

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Lido: Dizem que sou um chão

Dizem que sou um chão, que não é título mas primeiro verso, é um poema de Mário Cesariny de Vasconcelos sobre o qual não tenho muito a dizer. Trazendo de novo consigo uma certa badalhoquice, a ideia terá sido chocar, e talvez tenha chocado alguém. Mas eu não sou esse alguém. Não o achei grande coisa, nem como poema, nem como texto humorístico. Provavelmente o defeito é meu.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Metade do Império

Metade do Império (bib.) é mais um dos pequenos contos de Bruce Holland Rogers cujo principal forte é a subtileza. Aqui, encontramos uma daquelas situações típicas das velhas lendas em que uma princesa aguarda pacientemente que um dia chegue algum pretendente suficientemente heroico para ultrapassar os desafios que o rei lhe apresenta. Mas, ao contrário do que é hábito, o herói não é herói algum, mas apenas um rapaz de uma aldeia de pescadores que vai ver as vistas à capital. E daí talvez seja mesmo um herói, pois vai ultrapassando os desafios, um após outro, graças a uma mistura de casualidade e singeleza de espírito. Mas acaba por renunciar quer à princesa quer ao dote, a metade do império a que o título faz referência, e aí reside a maior subtileza do conto. Por que verdadeiro motivo renuncia o rapaz àquilo que conquistou por direito próprio, ainda que de uma forma pouco convencional? E a que, ao certo, renunciou ele? São duas questões que ficam sem resposta, ou com todas as respostas que os leitores lhes derem. Eu sei as minhas, mas não as divulgo. Acrescento apenas que gostei mesmo muito desta história.

Um poemita rápido

Eis um poemita rápido, motivado por esta coisa ridícula:

Os partidos do centrão

Os partidos do centrão
estão em competição
a fim de determinar
quem é mais incompetente

Mas não há azar
no fim vai tudo votar
neles
como sempre.

domingo, 25 de novembro de 2012

Lido: Fúria do Escorpião Azul

Fúria do Escorpião Azul (bib.) é uma muito pulpesca noveleta de Carlos Orsi, ambientada num Brasil alternativo sob o jugo de uma ditadura estalinista. O protagonista formal, digamos, é um jornalista, herói de guerra contra as forças anticomunistas que, por um misto de desilusão com a realidade repressiva do regime e iconoclastia pessoal, tem opiniões e atitudes subversivas e só conserva o emprego (e a liberdade, e provavelmente a vida) porque é ativamente protegido pelo chefe, um seu antigo camarada de armas. Mas as personagens que realmente fazem mover o enredo são outras: um génio científico russo, que está no Brasil em segredo a trabalhar com artefactos possivelmente alienígenas, e um vingador mascarado, uma espécie de Batman tropical, que se dedica a combater o mal à boa maneira dos super-heróis da BD.

É um conto pulp honesto, bem concebido e executado de forma competente. E a transposição deste género de enredos do habitual ambiente norte-americano para a mistura russo-brasileira que aqui se encontra tem o seu interesse. O problema é que eu não gosto deste tipo de história. Já não gostava delas em miúdo, quando lia com indiferença as revistas de BD de super-heróis que me vinham parar às mãos mas nunca comprei ou pedi para me comprarem nenhuma, e continuo a não gostar hoje. Por conseguinte eu, que até costumo gostar bastante das histórias do Orsi, desta não gostei lá muito. Apreciei a competência com que foi executada, mas pouco mais.

125

Ontem fui a Faro. Pela 125, como é óbvio, pois não estou disposto a pagar para andar numa estrada cujo custo foi quase integralmente coberto por fundos europeus e cujas portagens vão alimentar os cofres duma empresa que não tem qualquer direito a tais fundos: a Via do Infante. Também conhecida por A-22.

Mas, como ia dizendo, ontem fui a Faro. Eis o que vi no caminho:

Prostitutas de beira de estrada. Três. Uma sozinha, a deambular de um lado para o outro, e duas juntas, com grandes botas até ao joelho, uma sentada em qualquer coisa, a outra de pé, a ocupar a berma. Dizem-me que são visão habitual em alguns troços, mas nunca as tinha visto.

Uma limusina. Sim. Uma limusina.

Banquinhas de venda de laranjas. Não tantas como às vezes se encontram — não estamos na época da maior parte das variedades que se cultivam no Algarve — mas ainda bastantes. E sim, claro, a ocupar a berma.

Muita nabice ao volante. Muita. Dir-se-ia que os condutores de domingo se fizeram todos à estrada no sábado. Provavelmente bêbados. Vi uma carrinha a ultrapassar o traço contínuo em curva, vi uma rapariga com ar de donzela alheada de tudo que se recusava a encostar à direita nas zonas de faixa dupla destinadas a ultrapassagens, vi carripanas a arrastar-se estrada fora a 50 ou 60 à hora, vi... eu sei lá. Muita nabice ao volante. Muita.

Um homem que mal se aguentava em cima da bicicleta. A cada pedalada dava um cambaleio, sempre na iminência de se estatelar. Estava na berma, mas facilmente se teria esparramado na estrada. Bêbado? Quase de certeza.

Carros parados a meio da estrada. À espera de uma aberta no muito trânsito contrário para se meterem numa das inúmeras entradas, estradinhas e caminhos que cruzam com a estrada principal.

Casas, casas e mais casas. A 125 não é uma estrada, é uma rua.

Carros, carros e mais carros. E felizmente era sábado; não havia camiões. A 125 não é uma estrada, é a rua principal de uma grande metrópole disfuncional, desordenada e sem um sistema de transportes públicos capaz de captar parte do trânsito individual entre as várias partes dessa metrópole.

Horas depois de chegar a casa soube que um homem morreu num dos lugares por onde passei. Não o vi, deve ter acontecido depois da minha passagem. Mas não me custa nada a crer.

Quem pôs portagens na Via do Infante tem nas mãos o sangue desse homem. E só não o tem na consciência porque esta gente não tem consciência.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Ao meu camarada Luís Fazenda

Sim, isto agora é assim. Camarada para cá, camarada para lá. Não é uma questão de partidarite. Como escrevi há dias no twitter, neste momento da nossa história posso não gostar de todos os que, em Portugal, se batem pela demissão desta catástrofe de governo e pelo fim da desastrosa política económica imposta pela troika, mas são todos meus camaradas.

Bem, talvez com algumas exceções. Os idiotas das pedradas do outro dia, por exemplo.

Mas adiante. Quero falar sobre isto. Nesse artigo, Luís Fazenda enche-se de brios na defesa da sua dama contra um lamentável artigo de opinião escrito por João Assunção Ribeiro. Não tenhamos dúvidas de uma coisa: o artigo de Ribeiro é idiota e vigarista, como o PS é idiota e vigarista sempre que procura sacudir para cima de outros culpas que são só dele. E sim, fá-lo muitas vezes. Toda a gente sabe que nunca houve qualquer aproximação do PS à esquerda que não passasse de encenação. Toda a gente, incluindo os aldrabões que dizem o contrário. E incluindo muitos militantes e simpatizantes do PS que talvez até gostassem que as coisas fossem diferentes. João Assunção Ribeiro é, de facto, a nódoa tristemente habitual nas cúpulas deste partido "socialista", um lídimo representante de um partido cujos dirigentes estão enterrados até ao pescoço na lama das negociatas, corrupção e incompetência que levou o país ao estado em que está. Não tenhamos dúvidas quanto a isto. É verdade.

Portanto Fazenda tem toda a razão para defender a sua dama. O problema é que o faz da maneira errada. E, fazendo-o da maneira errada, torna-se parte do mesmo problema de que José Assunção Ribeiro é expoente.

Explico.

Indigna-se Fazenda contra a ideia de que o Bloco deve abdicar do seu programa em nome da convergência. Diz, e com razão, que estes dirigentes do PS só aceitarão a convergência com o programa do PS, e por isso mostra-se intransigente relativamente ao programa do Bloco. O que não percebe é que isso dá ao PS a possibilidade de inverter (de subverter, dir-se-ia melhor) as relações de causalidade. Que dá ao PS a possibilidade de dizer, como Ribeiro diz em parte do seu artigo, que a convergência não existe porque o Bloco é intransigente nos pontos mais "radicais" do seu programa. E que é precisamente assim que se vai alimentando esta estúpida rigidez mútua que paralisa a esquerda e faz com que a direita vá fazendo o seu caminho, com ou sem a cumplicidade do PS.

A questão é que a convergência só se faz com cedências como, aliás, qualquer bloquista tem obrigação de saber perfeitamente, visto que o Bloco resultou precisamente de uma convergência e das cedências das correntes fundadoras em prol do país e daquilo que tinham em comum. E portanto não, o programa do Bloco não é objeto sagrado e inviolável. Para haver uma convergência — e a convergência é urgente; Portugal não pode aguentar este governo criminoso por mais tempo — é fundamental que os partidos estejam dispostos a cedências, mesmo em alguns pontos fundamentais dos seus programas. E isto aplica-se tanto ao Bloco, como ao PCP, como ao PS, como a qualquer outra força de esquerda que tenha força suficiente para fazer parte de uma alternativa.

Já o disse aqui, mas repito-o, generalizando. Numas eleições futuras, que seria bom que acontecessem já para o mês que vem, as forças políticas devem apresentar-se ao eleitorado com duas listas na mão: uma, muito reduzida, com aquilo de que não abrirão mão, aquilo que qualquer partido que pretenda convergir com elas terá de aceitar. A outra, com aquilo que fariam se o eleitorado lhes desse maioria para governar sozinhas. O programa do Bloco é, para o Bloco, esta segunda lista, mas não pode de forma alguma ser também a primeira. A primeira lista tem de ser bastante mais reduzida. A rotura com o memorando é nela fundamental, claro, mas há muito poucas outras coisas que também o sejam. A nacionalização da banca intervencionada, por exemplo, é importante (é a única forma de evitar que os bancos sabotem o que é preciso ser feito para proteger o país do saque levado a cabo pelo capital financeiro), mas a meu ver não o é tanto como a exigência intransigente de uma governação ética que combata sem tréguas a corrupção e o compadrio e procure por todos os meios anular e reverter decisões passadas tomadas com base, precisamente, na corrupção e no compadrio.

Se os partidos tiverem essa confiança na inteligência do eleitorado, se conseguirem compreender que, sim, a maior parte do eleitorado compreende que numa negociação há que fazer cedências mútuas, se se lhe apresentarem com uma carta de pontos negociáveis e não negociáveis bem definida à partida, então talvez seja possível afastar do primeiro plano do discurso político em Portugal completas nulidades sectárias como João Assunção Ribeiro. E Luís Fazenda, que é um deputado competente, faria bem em não descer ao nível dele. Por si e por todos nós.

Caso contrário estamos, em bom português, completamente fodidos.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Lido: O Fim do Sr. Y

O Fim do Sr. Y (bib.), de Scarlett Thomas, é um romance fantástico sobre uma jovem com o curioso nome de Ariel Manto que mergulha numa estranha aventura através da qual vai acabar por conhecer a verdadeira natureza do Universo.

Tudo começa com um livro, intitulado, precisamente, O Fim do Sr. Y. Manto, que é uma personagem curiosa, polifacetada e até certo ponto contraditória (o que é um dos motivos de interesse do livro), é uma doutoranda e o objeto do seu doutoramento é um obscuro autor oitocentista, um tal Lumas, que terá escrito, entre outras obras, O Fim do Sr. Y, um livro maldito e dificílimo de encontrar porque (quase?) todos os seus exemplares foram destruídos. Segundo a lenda, quem ler este livro até ao fim desaparece sem deixar rasto... o que terá acontecido ao próprio Lumas, aliás.

E o que também aconteceu a Burlem, o orientador de doutoramento da protagonista, ele próprio estudioso de Lumas.

Previsivelmente, Manto encontra um exemplar do livro e, também previsivelmente, isso vai trazer-lhe problemas sérios. Mas a previsibilidade termina aí. O tipo de sarilhos em que ela se mete é inesperado, e toda a sequência da história a partir desse ponto também o é.

Este livro pode ser visto como ficção filosófica. São inúmeras as menções a filósofos pós-estruturalistas, em especial Derrida, Baudrillard e Heidegger, e as ideias que Thomas utiliza na conceção do seu universo ficcional parecem ter tudo a ver com o trabalho desses filósofos. Não sou competente para avaliar quão fielmente — a filosofia formal está longe de ser o meu forte. Mas, em resumo, quando Manto lê o livro de Lumas e decide experimentar uma receita homeopática que vem nas suas páginas e que dá acesso, segundo o livro afirma, a uma tal "Troposfera" que interliga todas as criaturas vivas, penetra numa espécie de universo paralelo que vai desvendando aos poucos e que se vai assemelhando cada vez mais a algo saído dos manuais da filosofia pós-moderna. A realidade, acaba Manto por descobrir, não passa de uma construção consensual da consciência, humana e não só. Com tudo o que isso implica.

Trata-se, também, de um romance com forte ligação à ficção científica, o que só surpreenderá quem ignorar como a melhor FC tende a ser profundamente filosófica, ainda que seja raro sê-lo de uma forma tão óbvia como neste livro. Há referências claras à série Matrix, por exemplo, e há mais que algo de dickiano nas peripécias de Manto e na própria filosofia subjacente à história. Afinal, a noção de que a realidade não é algo de fiável, antes está sujeita às contingências da consciência humana, é tão central na obra de Dick como neste livro. Incluindo o seu pendor místico; parte da filosofia que Thomas aqui usa vai ter ramificações religiosas relevantes.

O livro é concetualmente complexo, e é nas conceções que reside o seu inderesse principal. Literatura de ideias mais que de personagens ou de enredo, ainda que este e a protagonista estejam também bem conseguidos. As personagens secundárias são, pelo contrário, algo bidimensionais, o que não chega a constituir defeito, antes é característica. Afinal, todas elas são olhadas desde o ponto de vista da protagonista — o romance é narrado na primeira pessoa — e isso não permite grande exploração das profundezas ocultas das suas personalidades. Só mostram ao leitor o que a protagonista consegue ver, e assim é que deve ser numa narrativa construída desta forma.

Só não gostei particularmente dos MIUDOS. Sim, não me esqueci do caps lock ligado; é mesmo assim, em maiúsculas. São, com os homens que os controlam, os vilões da história, personalidades residuais geradas por um projeto americano ultra-secreto, que Thomas usa para fornecer um elemento de ameaça que não me pareceu realmente necessário nem bem ligado ao resto. Uma espécie de Agentes Smith do Matrix em versão menos transcendente. Não me convenceram. E, ao contrário da filosofia que também não me convenceu — muito longe disso — mas achei bastante bem trabalhada, deixaram-me com uma certa sensação de incompletude, de que falta neles qualquer coisa de importante.

À parte esse pormenor não tão menor assim, o livro é bastante bom. Surpreendeu-me pela positiva; quando peguei nele não estava à espera de algo tão profundo. E é sempre bom quando isso acontece.

Este livro foi comprado.

sábado, 17 de novembro de 2012

Lido: O Melhor do Desafio Operário

O Melhor do Desafio Operário (bib.) é, à semelhança da Antologia de Contos Temáticos de que aqui falei há algum tempo, uma antologia brasileira originada nos trabalhos de um atelier de escrita criativa ainda que, ao contrário desta, só tenha sido editada em versão ebook. Reúne 14 histórias, com extensões que vão da vinheta à noveleta, e foi organizada por Ana Cristina Rodrigues.

Esta antologia tem alguns pontos em comum — e também alguns autores em comum — com a de Henry Alfred Bugalho. De novo se nota que os autores são capazes de dar algo mais do que aqui mostraram, e de novo se compreende porquê. Porque os temas não são, necessariamente, aqueles que mais interessam aos autores ou aqueles em que estes mais se sentem à vontade. Ou porque há prazos a cumprir que nem sempre serão compatíveis com a produção de obra tão bem planeada e executada como poderia ser caso nascesse sob pressão menos intensa. Ou porque a própria gestação das ideias nem sempre se compadece da necessidade de ter obra pronta para apresentar aos colegas. Ou porque há em certos casos muita inexperiência, ainda que outros dos autores aqui presentes sejam já autores tarimbados. Ou por vários outros motivos possíveis.

No entanto, também há algumas diferenças entre as duas antologias, que acabam por fazer com que esta seja notoriamente melhor do que a dos contos temáticos. Os contos do Desafio Operário são mais extensos, o que desde logo permite uma melhor elaboração de cenários e enredos. Aqui encontra-se um conto por autor, aquele que se considerou (não sabemos se pela organizadora se pelos autores, se de uma forma mais cooperativa) ser o melhor entre todos aqueles que foram produzidos durante a duração do atelier. Aqui temos uma maior uniformidade estilística, pois todos os contos pertencem a alguma vertente das literaturas do imaginário, com ênfase na fantasia e, em menor grau, na ficção científica, o que significa que o desconforto que escrever fora da área literária de eleição de cada um pode provocar é reduzido se comparado com um atelier totalmente aberto em termos temáticos e genéricos. Aqui há um equilíbrio diferente entre escritores novatos e escritores com alguma (ou muita) experiência, com maior pendor para estes últimos, ainda que nem sempre essa experiência se reflita na qualidade do que é produzido. Tudo isto contribui para uma qualidade média mais elevada.

Sim, aqui também há contos muito maus. Especialmente três. Mas a vasta maioria destes contos do Desafio Operário tem uma qualidade no mínimo aceitável e há até um conto que me pareceu francamente bom. Marcos Cinco Descobre Deus, de Leonardo Carrion, é, julgo, o melhor conto da antologia. Não que seja perfeito: há alguns problemas que uma revisão atenta resolveria (a crase e os brasileiros é um caso de eterna inimizade), e tende por vezes um pouco em demasia para o infodump. Mas é francamente bom, e julgo que a explicação para isso é, em parte, o autor ter conseguido utilizar o tema proposto para desenvolver um outro tema que lhe é caro. Trata-se de um conto de ficção científica, no qual um robot, encarregado de gerir uma nave de colonização interstelar durante a longa viagem até Vega, se interroga sobre a fé, a divindade e as tradições a ela ligadas, enquanto cuida dos filhos dos colonos e lhes serve de professor durante o tempo que os pais passam em animação suspensa. Sem chegar propriamente a desrespeitar o tema proposto, "regras e exceções," Carrion escreveu um conto que na realidade versa sobre a natureza da fé em Deus, e fê-lo com a ironia e rigor lógico de um ateu.

Em resumo: esta antologia é uma boa antologia? Não, não me parece que seja. Mas, dentro do género, até acaba por ser. Não julgo que seja possível fazer muito melhor do que isto com as restrições que advêm da obrigatoriedade de coligir trabalhos produzidos durante um atelier de escrita criativa, a menos que todos os integrantes desse atelier sejam escritores tarimbados e/ou talentosos e possam escrever sem constrangimentos temáticos nem estarem sob o sufoco dos prazos. Vale a pena a leitura? Os contos muito maus tornam-na penosa, por vezes, mas a meu ver os restantes acabam por compensar. E valeu a pena a publicação? Para alguns destes autores, aqueles que são decididamente capazes de fazer melhor, talvez não. Mas para outros julgo que sim.

Se quiserem arriscar, encontram-na aqui.

Lido: Ela Canta...

Ela Canta... é um irreverente poema de Mário Cesariny de Vasconcelos sobre uma pobre ceifeira canora. Ou antes, sobre o modo como a pobre ceifeira canora age durante uma queca. Desaconselhável a puritanos, mas aconselhável a quem seja possuidor de um sentido de humor, em especial aos que o tiverem ligeiramente badalhoco.

Textos anteriores deste livro:

Os tornados

Se bem entendi, houve hoje dois tornados na minha zona, um a ocidente, outro a oriente de onde eu estava. O maior, e mais grave, parece ter chegado a terra uns 6 km a leste da minha casa, a ocidente do Carvoeiro, e depois seguiu mais ou menos em linha reta para nor-nordeste, para as Sesmarias, depois para o Pestana Golf Resort, e até ao parque aquático Slide and Splash. Aí, aparentemente, virou um pouco para leste e foi atingir em cheio um dos bairros mais recentes de Lagoa, na ponta noroeste da cidade. Em seguida, prosseguiu para nor-nordeste, num trajeto mais ou menos paralelo à da estrada de Silves, acabando por atingir esta cidade em cheio. O impressionante vídeo abaixo mostra-o a cair sobre o campo de futebol do Silves FC, que fica na ponta sul da cidade, mas há relatos de estragos entre a piscina, que fica um pouco para oeste, e pelo menos a ponte medieval, que se localiza a meio de Silves, cerca de 500 m a leste da piscina. Os relatos afirmam que o tornado terá depois atravessado a cidade e desaparecido na serra, a norte.



O outro parece ter chegado a terra já em fase de dissipação, na Ria de Alvor, uns 5 km a oeste da minha casa, e aparentemente provocou estragos de pouca monta na vila de Alvor e nos Montes de Alvor. Aparentemente ter-se-á dissipado por completo antes de chegar ao aeródromo de Portimão. Este vídeo, que não permite embedding, foi filmado de Odiáxere, e mostra-o a entrar Ria de Alvor dentro. Aquela zona de terreno elevado que se começa a ver cerca dos 2 minutos e atrás da qual o tornado desaparece é, julgo, a Quinta da Rocha, uma arriba fóssil que divide a ria em duas.

E eu, aqui no meio, sinto-me um bocado como um alvo numa carreira de tiro. Um alvo incólume por as balas terem passado ao lado. Por enquanto. Até quando?

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Lido: O Remador

O Remador (bib.) é mais uma vinheta fantástica de Bruce Holland Rogers. Muito poético, não tanto na linguagem (embora também o seja), mas certamente na ideia que lhe subjaz, o conto fala sobre uma rapariga que se queria afogar por puro excesso de mágoa. Mas tinha de ser no dia certo, e foi desse dia que ela se pôs à espera. Quando ele chegou, um dia de tempestade, tristíssimo e escuro, fez-se ao mar num pequeno bote. Contudo, em vez de se afogar, encontrou algures ao largo o remador do título, envolto numa luz verde numa calmaria no centro da tempestade. Da sua tempestade. E assim descobriu alguém mais triste ainda do que ela, o que a faz mudar de ideias quanto a afogar-se.

Trata-se de um conto sobre a relatividade dos sentimentos, sobre a tristeza, sobre a depressão. É um conto bastante simbólico e também, parece-me, algo que vem de bem fundo, que constitui uma janela para um recanto sombrio no espírito do autor. Um conto suave, mas perturbador. E bom.

Lido: Aliança

Aliança (bib.) é um conto curto de Mário-Henrique Leiria sobre um homem que tem a casa regularmente invadida por... criaturas. Criaturas azuis, verdes, laranja, talvez fantásticas, talvez extraterrestres, certamente aborrecidas e suficientemente irreverentes para não terem quaisquer pruridos em invadir-lhe o sossego e privacidade do lar. Mas não é só a casa dele que está sujeita a essa invasão; é o país inteiro ou até, talvez, o mundo. O que pouco importa ao nosso protagonista. O que ele não quer é as criaturas lá em casa, e por isso telefona a um general seu conhecido. O que se vem a revelar má ideia, e aqui reside boa parte da ironia da coisa, do humor caracteristicamente subversivo do autor. É um conto divertido, de algo muito semelhante à ficção científica, que me pareceu claramente inspirado no livro de Fredric Brown Os Marcianos Divertem-se, que Leiria tinha traduzido década e meia antes de publicar este conto. A influência pode não ter sido consciente, mas está claramente lá.

Textos anteriores deste livro:

Da violência

É bem sabido que violência gera violência. Era só questão de tempo, portanto, até a inaudita violência deste roubo estúpido e criminoso gerar violência nas ruas deste país. Quem não tenha os olhos tapados tem absoluta consciência disso. Por minha parte, há uns dois anos que ando a dizer a quem me quiser ouvir as seguintes duas frases:

— Isto vai acabar em porrada. Não sei onde, não sei quando, mas isto vai acabar em porrada.

E refiro-me a porrada a sério. Não a pedras e cassetetes. Porrada a sério. Tiros, bombas, guerrilha urbana ou guerra civil. Coisas dessas. Não é possível reduzir à indigência povos inteiros sem que esses povos ripostem. E quem tem o poder na mão ou é completa e irremediavelmente imbecil, ou sabe perfeitamente que assim é. Se for completa e irremediavelmente imbecil, é apanhado de surpresa. Se não for, já se preparou há muito.

Se me pedissem apostas sobre o lugar onde isto acabará em porrada, eu apontaria para a Grécia. Tem todos os ingredientes de uma bomba nuclear prestes a rebentar: metade da população sem meios de subsistência nem qualquer esperança, uma extrema direita do mais extremista que existe e ativamente protegida pela polícia, a parte dominante da classe política profundamente corrupta e sem qualquer crédito, uma boa parcela da população que nem o Syriza respeita, etc.

Mas nós somos a Grécia com um ano de atraso. E toda a gente o sabe, especialmente os bandalhos que estão no governo, apesar de toda a conversa vigarista sobre o próximo ano ser o ano de viragem, conversa essa que já ouvimos o ano passado.

Ou seja: o que ontem aconteceu em frente da AR não foi surpresa para ninguém. Mas mesmo não sendo surpresa, enquanto assistia àquilo pela televisão só senti uma gigantesca fúria contra aqueles imbecis que estavam a desviar as atenções de um monumental cartão vermelho dado ao governo através da greve geral. E bem pode vir agora aquele verme do Coelho congratular os que não fizeram greve, toda a gente sabe que a absolutíssima maioria dos que não a fizeram foi não se poderem dar ao luxo de perder um dia de salário e não terem a possibilidade de arriscar o despedimento num momento em que não há empregos. Porque basta conversar com as pessoas para facilmente se perceber que quase toda a gente compreende e concorda com os motivos da greve, e quase toda a gente tem plena consciência disso.

Sem aquela violência, que à primeira vista me pareceu acéfala, pavloviana, hoje estaríamos todos a falar da inédita paralisação simultânea de vários países europeus e do recado que isso constitui para as lideranças nacionais e europeias, para esta elite criminosa que nos está a roubar a todos o futuro. Mas apareceram 20 ou 30 gajos que passaram quase uma hora a atirar pedras da calçada à polícia, e hoje só se fala dessa violência, não de nenhuma das outras. Daí a minha fúria de ontem. Não achando então que havia ali mais que estupidez. Sei perfeitamente que há, tanto na esquerda como entre os desesperados que só o são, que não têm qualquer espécie de pensamento político a enquadrar o desespero, franjas suficientemente acéfalas para não pararem para pensar nos resultados dos seus atos.

Mas hoje, ao tomar conhecimento de certos acontecimentos posteriores, começa a parecer-me que tudo aquilo foi bem mais sinistro.

Para começar, torna-se cada vez mais claro que o grupo de apedrejadores era um grupo organizado. Que foi para ali com plano traçado, decidido a provocar precisamente o tipo de reação policial que acabou por acontecer. Só isso explica que, ao contrário de manifestações anteriores nas quais este tipo de atitude foi pontual e controlada com maior ou menor dificuldade pelos manifestantes com uma cabeça em cima dos ombros, nesta nada do que os outros manifestantes fizeram pôs travão nas pedradas. Houve uma clara diferença de escala nos ataques à polícia, que tornou a carga praticamente inevitável.

E depois, tudo o que aconteceu a seguir, muito em especial o comportamento da própria polícia. Levando tudo à frente, atacando à cacetada e prendendo gente que nada indica ter tido algo a ver com os distúrbios, a quilómetros da AR, mantendo-os presos durante horas em detenção ilegal, sem acesso a advogados nem acusação formada, etc. São cenas dignas de repressão em ditadura, não num estado democrático e de direito.

Coincidência?

Talvez seja.

Mas não faz sentido que a polícia não tenha desta vez feito as mesmas detenções dos "mais exaltados" que vimos acontecer noutras ocasiões, tanto mais que é treinada especificamente para as fazer. A mesma polícia que se mantém impávida e serena perante os pedregulhos durante bastante mais de uma hora arremete a seguir levando tudo à frente, distribuindo cacetada e torto e direito, sem critério? Cheira a esturro. E os agentes infiltrados que vimos noutras manifestações agindo de forma que, em vez de servir para baixar a tensão, é provocatória, só fazem com que o cheiro a esturro se intensifique.

E depois há o comportamento de claque de futebol. Os cânticos. As caras tapadas. Todos bem sabemos o tipo de escumalha que tem por habitat as claques e onde residem as suas lealdades ideológicas. Só quem nunca viu saudações nazis em estádios de futebol pode ter ilusões a esse respeito.

Somando tudo, fica no ar um repugnante miasma a extrema direita.

E, o que é bem pior, a conluio.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Este blogue está...

... em greve.

É só simbólico, num blogue como este que não tem atualizações diárias, mas os símbolos também valem alguma coisa.

Até quinta.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Combate à pobreza, o tanas

Não escrevi nada sobre o caso Jonet porque achei que não valia a pena. O que a mulher disse fala por si, nem precisa de comentários. Mas a verdade é que há uma coisa que me anda aqui a roer e não me deixa ficar calado. Não tem a ver com o que ela disse, propriamente, mas com o que escreveram alguns dos seus defensores. Que também os teve.

Atiram esses defensores, em ar de desafio, com uma ufanada que é expressa mais ou menos nestes moldes: "nenhum desses que criticam a Senhora Dona Jonet (é sempre senhora dona) fez sequer um milésimo do que ela fez no combate à pobreza."

Pois é. O problema é que o que Isabel Jonet fez para combater a pobreza foi, rigorosamente, zero.

Sim, zero.

Porque o Banco Alimentar Contra a Fome e instituições congéneres nunca tiveram como objetivo combater a pobreza. O seu objetivo é outro: não deixar os pobres morrer de fome. Trata-se de um objetivo humanitário e com méritos óbvios, mas não combate a pobreza. Alimenta-a, nada mais. Literalmente e em certos casos também figurativamente.

Sublinhe-se que não é por não servir para o que alguns patetas dizem que serve que a existência do Banco Alimentar deixa de ser coisa boa. É coisa boa. Mais: é uma coisa necessária, mesmo sendo essa necessidade um sintoma de falhanço da sociedade como um todo. Pior: pode vir a ser, graças à destruição sistemática deste país que está a ser levada a cabo pelo governo e pela União Europeia, uma coisa absolutamente indispensável. Mas não combate a pobreza, nunca a combateu, e nunca a combaterá. A sua natureza é outra e a sua utilidade também.

O que combate a pobreza é o desenvolvimento económico. A instrução e a qualificação. Cuidados médicos capazes de evitar ou de adiar a doença e portanto prolongar a vida ativa. Reformas condignas. Apoios sociais que sirvam de almofada para quando tudo o resto falha. O Rendimento Mínimo. E etc.

Isto sim, combate a pobreza. E qualquer pessoa que tenha contribuído de alguma forma para que Portugal tenha estes serviços, nem que seja apenas com o seu voto, fez mais pelo combate à pobreza do que a Jonet. Terá certamente feito menos do que ela para alimentar os pobres, mas para combater a pobreza? Fez mais.

Já agora, estas coisas, tomadas em conjunto, têm nome. Chamam-se estado social. Só para que saibam.