Existe em muita gente, e provavelmente também em muitos autores, a ideia de que literatura fantástica equivale a literatura infantil, ou no máximo juvenil, a formas imaturas de contar histórias a que pessoas sérias e adultas não devem dar qualquer importância. É um disparate, claro, pois a abordagem fantástica tanto serve para contar histórias a crianças como a analisar profundamente tendências e fenómenos do mundo adulto, mas o preconceito existe. Por isso, é com alguma surpresa que constato que são poucas as histórias decididamente infantis que se podem encontrar nesta antologia, ou pelo menos da sua primeira parte. Na Terra Desaparecida (bibliografia) é uma dessas histórias.
O conto pertence àquele subgénero da fantasia a que se dá o nome de maravilhoso. Fernando de Sousa Pereira tem piada a dar nomes às suas personagens e territórios e constrói uma história em que um grupo de criaturas se vê forçada a fazer de cupido porque a última fada da Terra Desaparecida (chamada Solstícia) se foi embora com medo de um monstro que acabou por não aparecer, deixando-a mergulhada na escuridão porque precisa de amor. E claro que conseguem, ou não fosse a história infantil, e o seu amante platónico, um gigante chamado Troféu que ainda por cima é poeta, deixa de ser platónico. E viveram felizes para sempre.
É um continho simpático e bem intencionado, este, e razoavelmente bem escrito. Muito melhor que outros contos deste livro, ainda que esteja nele algo deslocado. Não por não ser fantástico, que é, mas porque o seu público-alvo dificilmente pegará nele para o ler, pois a maioria dos outros contos não são para crianças.
Textos anteriores deste livro:
terça-feira, 31 de dezembro de 2019
Maria Velho da Costa: Ó da Barca!
Como que para ilustrar o que disse quando falei de Alma, segue-se imediatamente na sequência desta antologia um excerto de romance que decididamente não funciona de todo como conto. Em parte, suponho, isso deve-se à forma de escrever adotada por Maria Velho da Costa, uma escrita algo saramaguiana na ausência de sinais identificativos de discurso direto, mas bastante mais intensa no uso que faz da linguagem popular do que qualquer coisa que Saramago tenha escrito. É também possível que o romance de Maria Velho da Costa de onde este Ó da Barca! é extraído (Casas Pardas) seja todo ele assim, um conjunto episódico de retalhos, sem um fio condutor óbvio, o qual só acabará possivelmente por ficar claro com o decorrer da narrativa, um pouco como quem pinta um quadro impressionista. Certo é que este texto assim isolado simplesmente não funciona.
Mas funcionará como chamariz para o romance? Provavelmente funcionará para alguns leitores, sim. Maria Velho da Costa escreve muitíssimo bem, especialmente — pelo menos aqui — na forma como integra literariamente os oralismos, e há neste excerto um experimentalismo que sugere que todo o romance seja igualmente experimental. Isso deve ser o bastante para muita gente. Para mim não foi. Apesar de ter lido o excerto com agrado, ele não me deixou curioso o suficiente para ir à procura do resto. É interessante, mas não me puxa muito.
Textos anteriores deste livro:
Mas funcionará como chamariz para o romance? Provavelmente funcionará para alguns leitores, sim. Maria Velho da Costa escreve muitíssimo bem, especialmente — pelo menos aqui — na forma como integra literariamente os oralismos, e há neste excerto um experimentalismo que sugere que todo o romance seja igualmente experimental. Isso deve ser o bastante para muita gente. Para mim não foi. Apesar de ter lido o excerto com agrado, ele não me deixou curioso o suficiente para ir à procura do resto. É interessante, mas não me puxa muito.
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segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
João: Apocalipse
É uma forma curiosa de dar o pontapé de partida a uma antologia de contos fantásticos, esta. Apocalipse, neste contexto, é um conjunto razoavelmente extenso de excertos do texto bíblico do Apocalipse, escritos por um autor que assina apenas como João e selecionados pelas suas qualidades literárias, porque, à sua maneira, contam uma história, e não pelas conotações religiosas que poderão ter.
Na verdade, a Bíblia é há muito usada como inspiração para ficções dos mais variados estilos, abordagens e matizes, mas só muito raramente é analisada ela própria como uma obra de ficção. Em parte, suponho, por preconceito — muitos dos que o poderiam fazer ou são religiosos e tendem a encarar aprioristicamente aquelas histórias como sagradas, e portanto inerentemente não ficcionais, ou não o são e tendem a ignorar o texto bíblico como um mero texto religioso, logo com pouco ou nenhum interesse para estudos literários. Fazer o contrário não é inaudito, obviamente, mas também está longe de ser comum. E isso reflete-se na raridade de se encontrar trechos bíblicos, mais ou menos selecionados, em publicações de ficção fantástica.
Daí que quando se encontra um texto como este numa antologia como esta, a primeira reação será quase inevitavelmente de estranheza. Mas se aceitarmos a premissa do antologista e desfrutarmos da leitura como desfrutaríamos de qualquer outra obra de ficção, não é difícil chegarmos à conclusão de que pelo menos estes excertos do Apocalipse formam uma espécie de noveleta de ficção fantástica bastante boa, em especial se tivermos em conta há quanto tempo a obra foi produzida.
O problema é quando as pessoas, em vez de lerem esta história como a ficção que é, a aceitam como verdade literal e surge todo o tipo de seitas, cada uma mais destrambelhada que a outra, todas convencidas de que o fim do mundo está aí ao virar da esquina ou, bastante pior, decididas a fazer tudo o que lhes for possível para o anteciparem porque eles, obviamente, são os escolhidos, aqueles para os quais há sobrevida ao fim do mundo, cometam os crimes que cometerem, e os outros que se lixem. Isso é que estraga tudo. As milhares de vidas que se perderam e continuam a perder-se por haver quem não saiba ler ficção como ficção!
À conta desta história e do que os outros dela fizeram, este João, seja ele quem for (há debates quanto à sua verdadeira identidade) e tenha sido essa a sua intenção ou não, ficará na História da humanidade como um assassino em série. É um destino terrível para um ficcionista. Absolutamente terrível.
Na verdade, a Bíblia é há muito usada como inspiração para ficções dos mais variados estilos, abordagens e matizes, mas só muito raramente é analisada ela própria como uma obra de ficção. Em parte, suponho, por preconceito — muitos dos que o poderiam fazer ou são religiosos e tendem a encarar aprioristicamente aquelas histórias como sagradas, e portanto inerentemente não ficcionais, ou não o são e tendem a ignorar o texto bíblico como um mero texto religioso, logo com pouco ou nenhum interesse para estudos literários. Fazer o contrário não é inaudito, obviamente, mas também está longe de ser comum. E isso reflete-se na raridade de se encontrar trechos bíblicos, mais ou menos selecionados, em publicações de ficção fantástica.
Daí que quando se encontra um texto como este numa antologia como esta, a primeira reação será quase inevitavelmente de estranheza. Mas se aceitarmos a premissa do antologista e desfrutarmos da leitura como desfrutaríamos de qualquer outra obra de ficção, não é difícil chegarmos à conclusão de que pelo menos estes excertos do Apocalipse formam uma espécie de noveleta de ficção fantástica bastante boa, em especial se tivermos em conta há quanto tempo a obra foi produzida.
O problema é quando as pessoas, em vez de lerem esta história como a ficção que é, a aceitam como verdade literal e surge todo o tipo de seitas, cada uma mais destrambelhada que a outra, todas convencidas de que o fim do mundo está aí ao virar da esquina ou, bastante pior, decididas a fazer tudo o que lhes for possível para o anteciparem porque eles, obviamente, são os escolhidos, aqueles para os quais há sobrevida ao fim do mundo, cometam os crimes que cometerem, e os outros que se lixem. Isso é que estraga tudo. As milhares de vidas que se perderam e continuam a perder-se por haver quem não saiba ler ficção como ficção!
À conta desta história e do que os outros dela fizeram, este João, seja ele quem for (há debates quanto à sua verdadeira identidade) e tenha sido essa a sua intenção ou não, ficará na História da humanidade como um assassino em série. É um destino terrível para um ficcionista. Absolutamente terrível.
domingo, 29 de dezembro de 2019
Leiturtugas da semana #47
Eis que a última semana do ano (completa; ainda sobram uns dias) foi muito movimentada no capítulo Leiturtugas e começou, como tem sido frequente nos últimos tempos, com o Artur Coelho e mais uma das suas opiniões sobre BD, resumidas no seu blogue e mais desenvolvidas noutro sítio. Desta vez fala sobre uma pequena revista de banda desenhada com título em inglês: Beep Boop: Monster Hunters #01. O autor é Daniel Lopes e foi publicada pela Gorila Sentado.
Depois fui eu, Jorge Candeias, a publicar mais uma opinião leiturtuga, desta vez a um continho fantástico e bem-humorado do João Ventura, intitulado O Teclado Paranóico e publicado em PDF pelas Brigadas FC na pré-história da publicação de ebooks de género em Portugal.
Quase ao mesmo tempo, a Carla Ribeiro publicava mais uma das suas opiniões de fim de ano, tendo desta vez como alvo O Dia da Tempestade de Afonso Azevedo, primeiro volume de uma série de fantasia, publicado pela Chiado. Esta opinião não tem FC, pelo que a Carla sobe a 6c4s.
De seguida, foi a Cristina Alves a surgir com mais uma opinião sobre uma das coletâneas de contos de António Bizarro publicadas pela Coolbooks. O livro lido desta vez foi O Longo Caminho de Regresso.
Por fim, já mesmo a fechar o pano da semana, a Carla Ribeiro voltou com mais uma opinião sobre outro livro de fantasia, também publicado pela Chiado. Intitula-se Espada que Sangra, também é o primeiro volume de uma série, e foi escrito pelo Nuno Ferreira. E a Carla sobe a 6c5s e só lhe falta uma opinião para cumprir os objetivos das Leiturtugas.
Para a semana teremos o encerramento do ano e a abertura do novo ano. Não se esqueçam: eu vou partir do princípio de que quem participou vai continuar a participar (e na mesma categoria, leiturtugas ou leiturtuguinhas). Se não for o caso, peço que me avisem.
E convido desde já todos os outros leitores de FC e fantástico português a juntarem-se também à malta. Como veem, isto não é nada difícil de realizar.
Depois fui eu, Jorge Candeias, a publicar mais uma opinião leiturtuga, desta vez a um continho fantástico e bem-humorado do João Ventura, intitulado O Teclado Paranóico e publicado em PDF pelas Brigadas FC na pré-história da publicação de ebooks de género em Portugal.
Quase ao mesmo tempo, a Carla Ribeiro publicava mais uma das suas opiniões de fim de ano, tendo desta vez como alvo O Dia da Tempestade de Afonso Azevedo, primeiro volume de uma série de fantasia, publicado pela Chiado. Esta opinião não tem FC, pelo que a Carla sobe a 6c4s.
De seguida, foi a Cristina Alves a surgir com mais uma opinião sobre uma das coletâneas de contos de António Bizarro publicadas pela Coolbooks. O livro lido desta vez foi O Longo Caminho de Regresso.
Por fim, já mesmo a fechar o pano da semana, a Carla Ribeiro voltou com mais uma opinião sobre outro livro de fantasia, também publicado pela Chiado. Intitula-se Espada que Sangra, também é o primeiro volume de uma série, e foi escrito pelo Nuno Ferreira. E a Carla sobe a 6c5s e só lhe falta uma opinião para cumprir os objetivos das Leiturtugas.
Para a semana teremos o encerramento do ano e a abertura do novo ano. Não se esqueçam: eu vou partir do princípio de que quem participou vai continuar a participar (e na mesma categoria, leiturtugas ou leiturtuguinhas). Se não for o caso, peço que me avisem.
E convido desde já todos os outros leitores de FC e fantástico português a juntarem-se também à malta. Como veem, isto não é nada difícil de realizar.
Diana Pereira: Em Busca da Felicidade
Era de esperar, mas é na mesma digno de menção: está a ficar claro que a fantasia domina por completo as ficções presentes neste livro. E este conto de mais um nome completo, Diana Rute Cardoso Pereira, é um conto de fantasia. Mais um.
«Surge pela parda encosta, o olhar da enigmática criatura» é como começa este Em Busca da Felicidade (bibliografia), e não desmente o que vem a seguir: um texto demasiado adjetivado, com pretensões a ser muito mais do que é, e muito, muito cliché, cheio dos chavões das fantasias derivadas de Tolkien. Um grupo heterogéneo parte numa demanda; tem de encontrar um mago para devolver a felicidade a um país mergulhado em trevas mágicas. E encontra e devolve, num enredo fraquinho, com uma escrita fraquinha e uma história sem grande interesse. Há neste livro histórias piores, até há estórias muito piores, mas mesmo assim esta deixa bastante a desejar.
Textos anteriores deste livro:
«Surge pela parda encosta, o olhar da enigmática criatura» é como começa este Em Busca da Felicidade (bibliografia), e não desmente o que vem a seguir: um texto demasiado adjetivado, com pretensões a ser muito mais do que é, e muito, muito cliché, cheio dos chavões das fantasias derivadas de Tolkien. Um grupo heterogéneo parte numa demanda; tem de encontrar um mago para devolver a felicidade a um país mergulhado em trevas mágicas. E encontra e devolve, num enredo fraquinho, com uma escrita fraquinha e uma história sem grande interesse. Há neste livro histórias piores, até há estórias muito piores, mas mesmo assim esta deixa bastante a desejar.
Textos anteriores deste livro:
Rhys Hughes: Cronochoque do Século XX
Já se tinha percebido que diferentes autores tinham abordado a proposta desta antologia de formas muito diferentes, com a seriedade clínica de alguns a levá-la mais para o lado dos pseudofactuais borgesianos, e a ironia de outros (apesar de Borges não ser de todo alheio à ironia, sublinhe-se) a trazê-la mais claramente para o lado do humor, umas vezes a atirar para o surrealista, de outras vezes a pender mais para o horror ou até a ficção científica. Rhys Hughes é surrealismo praticamente puro.
Cronochoque do Século XX (bibliografia), a doença que ele apresenta, é uma alergia. Peculiar, como todas as doenças aqui apresentadas. É uma alergia a um ano do século XX, a um período do século XX ou ao século XX como um todo, apresentando sintomas típicos das alergias. Hughes, longe, muito longe do sisudismo pelo menos aparente de outros autores, serve-se de trocadilhos e jogos de palavras e de uma informalidade que pode parecer algo deslocada, mas que a edição portuguesa resolve particularmente bem, com uma "nota do dr. Calamar Trindade" (o equivalente português do Thackery T. Lambshead, como se verá adiante) a... bem, a desancá-lo.
Este não é dos textos mais impressionantes que se poderão encontrar aqui, mas é divertido, o que no fundo é precisamente o que pretende ser.
Textos anteriores deste livro:
Cronochoque do Século XX (bibliografia), a doença que ele apresenta, é uma alergia. Peculiar, como todas as doenças aqui apresentadas. É uma alergia a um ano do século XX, a um período do século XX ou ao século XX como um todo, apresentando sintomas típicos das alergias. Hughes, longe, muito longe do sisudismo pelo menos aparente de outros autores, serve-se de trocadilhos e jogos de palavras e de uma informalidade que pode parecer algo deslocada, mas que a edição portuguesa resolve particularmente bem, com uma "nota do dr. Calamar Trindade" (o equivalente português do Thackery T. Lambshead, como se verá adiante) a... bem, a desancá-lo.
Este não é dos textos mais impressionantes que se poderão encontrar aqui, mas é divertido, o que no fundo é precisamente o que pretende ser.
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sexta-feira, 27 de dezembro de 2019
O Gerson leu o "Embaixadores"
Como sabe quem olhar para a notazinha de copyright aqui na Lâmpada, ao topo e à esquerda de cada página, eu ando nestas coisas dos blogues desde 2003. Há uma porrada de anos, portanto. Nesse interim, fui criando blogues, sobre isto e sobre aquilo, com os objetivos mais diversos, e a maioria acabou abandonada ou semiabandonada. Um dos blogues que hoje em dia estão semiabandonados é aquele onde fiz a publicação inicial do meu primeiro romance, Por Vós lhe Mandarei Embaixadores, e que hoje serve basicamente como sítio de divulgação da sua edição revista em papel. Ora, como não o divulgo muito, raramente alguém lá vai — no último ano houve 449 visitas, o que é o que nos dias que correm a Lâmpada recebe em dois dias... ou às vezes em um — e como raramente alguém lá vai nunca ninguém lá comenta... e como nunca ninguém lá comenta, eu só muuuuuito de onde em onde vou ver como param as modas por lá.
E foi esse o motivo de só agora ter dado por o Gerson Lodi-Ribeiro lá ter deixado um comentário... a 22 de maio último.
O Gerson gosta de me oferecer os seus livros. Sempre que publica um, lá vem um pacote Atlântico acima com um livrinho dentro, e às vezes com dois. Tenho vindo a lê-los, como quem acompanha a Lâmpada tem reparado, mas ele teve uma fase em que publicou bastantes, e ainda cá está um numa das pilhas. Lá chegaremos, mais tarde ou mais cedo. Mas claro que quando publiquei o Embaixadores em papel tive de retribuir, e lá foi um pacotinho com livro dentro, desta vez Atlântico abaixo. O livro é de 2013. Isto é, o livro é de 2008, mas só saiu em papel em 2013. Não me lembro se lho enviei logo nesse ano ou no seguinte, mas foi por aí.
E enviei-lhe o livro com uma dedicatória, onde expressava a dúvida sobre se a sátira que o livro contém, de olhos muito postos na política e nos políticos portugueses, funcionaria ou seria compreendida por um brasileiro, que em princípio não os conhece (e felizmente para ele, tantas vezes).
Agora ou, melhor dizendo, há mais de meio ano, o Gerson leu-o, e eis explicado o tal comentário. Suponho que ele não se importe que o transcreva para aqui:
Obrigado, pá.
E os Estranhos não estão esquecidos no Paraíso. Hei de resgatá-los, mais cedo que tarde.
E foi esse o motivo de só agora ter dado por o Gerson Lodi-Ribeiro lá ter deixado um comentário... a 22 de maio último.
O Gerson gosta de me oferecer os seus livros. Sempre que publica um, lá vem um pacote Atlântico acima com um livrinho dentro, e às vezes com dois. Tenho vindo a lê-los, como quem acompanha a Lâmpada tem reparado, mas ele teve uma fase em que publicou bastantes, e ainda cá está um numa das pilhas. Lá chegaremos, mais tarde ou mais cedo. Mas claro que quando publiquei o Embaixadores em papel tive de retribuir, e lá foi um pacotinho com livro dentro, desta vez Atlântico abaixo. O livro é de 2013. Isto é, o livro é de 2008, mas só saiu em papel em 2013. Não me lembro se lho enviei logo nesse ano ou no seguinte, mas foi por aí.
E enviei-lhe o livro com uma dedicatória, onde expressava a dúvida sobre se a sátira que o livro contém, de olhos muito postos na política e nos políticos portugueses, funcionaria ou seria compreendida por um brasileiro, que em princípio não os conhece (e felizmente para ele, tantas vezes).
Agora ou, melhor dizendo, há mais de meio ano, o Gerson leu-o, e eis explicado o tal comentário. Suponho que ele não se importe que o transcreva para aqui:
Li o livro, afinal. Desculpe a demora. Hilário e, ao contrário do que temeste em tua dedicatória, plenamente compreensível aos leitores brazucas, exceto, talvez, quanto às "supostas" semelhanças entre personagens literários e figuras políticas de Portugal.É o que eu digo: um só povo com um oceano no meio. Para o bem e para o mal.
Além disso, encontrei alguns paralelos notáveis (ou nem tanto), com figuraças da política brasileira atual, mais de uma década após a gênese do livro, o que prova que algumas coisas não mudam...
Parabéns!
Gerson.
Obrigado, pá.
E os Estranhos não estão esquecidos no Paraíso. Hei de resgatá-los, mais cedo que tarde.
Ray Bradbury: O Vento
É um cliché do género, bem sei, mas é eficaz. E é por isso, desconfio, que já não é a primeira vez neste livro que surge um conto de terror em que o envolvido tenta fazer os demais acreditar em algo de terrível que está prestes a acontecer, ou já aconteceu e pode acontecer de novo, e ninguém acredita nele. Esta é ideia tão comum no terror que tem milhares de variações, e aqui Ray Bradbury apresenta várias. No caso de O Vento (bibliografia), estamos perante uma história de terror sobrenatural centrada num vento maligno.
Uma das características deste conto que mais me agradaram é mostrar uma certa indefinição quanto a quem é o protagonista. A narração segue uma pessoa, um tal Herb Thompson; é ele, o que faz e o que pensa que funciona como fio narrativo, o que na esmagadora maioria dos contos o transformaria automaticamente em protagonista. Mas não é a ele que as coisas acontecem; é a um seu amigo, que lhe telefona, assustado, e já não pela primeira vez, convicto de que o vento o vai apanhar.
E é esse amigo que depara com a incompreensão e ceticismo dos demais. Não tanto do amigo, que tende a crer nele, pelo menos até certo ponto, mas da mulher deste, que acha o homem doido varrido e encara com severidade todas as tentativas ou até ideias do marido para ajudar o amigo. Como é de norma em histórias destas, no fim quem tem razão é o "maluco". E a história termina em tragédia e ameaça.
Não trazendo grande novidade, este é dos tais contos de Bradbury que estão muito bem construídos e bastante bem escritos.
Contos anteriores deste livro:
Uma das características deste conto que mais me agradaram é mostrar uma certa indefinição quanto a quem é o protagonista. A narração segue uma pessoa, um tal Herb Thompson; é ele, o que faz e o que pensa que funciona como fio narrativo, o que na esmagadora maioria dos contos o transformaria automaticamente em protagonista. Mas não é a ele que as coisas acontecem; é a um seu amigo, que lhe telefona, assustado, e já não pela primeira vez, convicto de que o vento o vai apanhar.
E é esse amigo que depara com a incompreensão e ceticismo dos demais. Não tanto do amigo, que tende a crer nele, pelo menos até certo ponto, mas da mulher deste, que acha o homem doido varrido e encara com severidade todas as tentativas ou até ideias do marido para ajudar o amigo. Como é de norma em histórias destas, no fim quem tem razão é o "maluco". E a história termina em tragédia e ameaça.
Não trazendo grande novidade, este é dos tais contos de Bradbury que estão muito bem construídos e bastante bem escritos.
Contos anteriores deste livro:
Sónia de Carvalho: A Velha Senhora
Sabem, como é, quando os, tipos que, escrevem coisas, acham, boa ideia, distribuir vírgulas a, esmo e sem pés, nem, cabeça? Pois Sónia de Carvalho é assim. Duvidam? OK. Então tomem lá uma citação, o segundo parágrafo de A Velha Senhora (bibliografia), e só não uso o primeiro porque é um parágrafo de cinco palavras, que não dá muito para fazer coisas destas.
E este até teria algumas. É um conto de fantasmas razoavelmente bem construído, sobre uma mulher jovem que vai para Lisboa trabalhar e se hospeda em casa da velha senhora do título, onde depressa começa a ver coisas estranhas. Escrito capazmente, e editado por uma editora a sério capaz de lhe dar uma revisão decente, podia ser um conto interessante. Assim... assim é apenas o que é.
Textos anteriores deste livro:
A porta ficava à face da rua mas, o acesso à casa, propriamente dita, fazia-se, subindo um lanço grande de escadas.Ora, a vírgula é uma sinalefa que serve, entre outras coisas, para tornar o texto compreensível. Quando mal utilizada, e Sónia de Carvalho utiliza-a pessimamente, pode deixar a compreensão difícil ou mesmo impossível. Consequência? Um conto assim escrito torna-se automaticamente mau. Não há características redentoras que lhe valham.
E este até teria algumas. É um conto de fantasmas razoavelmente bem construído, sobre uma mulher jovem que vai para Lisboa trabalhar e se hospeda em casa da velha senhora do título, onde depressa começa a ver coisas estranhas. Escrito capazmente, e editado por uma editora a sério capaz de lhe dar uma revisão decente, podia ser um conto interessante. Assim... assim é apenas o que é.
Textos anteriores deste livro:
quinta-feira, 26 de dezembro de 2019
Abraão Vicente: Moxim
Uma das características básicas das fábulas é a antropomorfização dos animais, mas nem só de animais vivem as fábulas e nem só de fábulas vive a antropomorfização. Não só existem fábulas, e histórias populares em geral, em que o que é antropomorfizado são objetos inanimados, como esta tendência para atribuir a objetos inanimados ideias, motivações e linguagem humanas vai muito para além das fábulas, encontrando-se em todas as vertentes das literaturas do imaginário, e sim, isto inclui a ficção científica; o género está cheio de coisas robotizadas, muitas das quais conversam com gente e/ou entre si.
Pois aqui, neste conto de Abraão Vicente, autor caboverdiano que é a primeira vez que me passa pelos olhos, o objeto inanimado que é antropomorfizado é uma cadeira, como de resto seria de esperar a partir do momento em que se sabe que o tema desta antologia é precisamente esse: cadeiras. E esta até tem nome: Moxim, precisamente.
É um conto literário até ao cúmulo, com o que isso tem de bom — está bastante bem escrito, na perspetiva estrita do domínio da língua — mas também com o que tem de mau. O tema básico, além da superficialidade da cadeira, é a forma como descartamos (ou não) aquilo que nos foi útil, aquilo que talvez até tenhamos amado, de certa forma, mas chegou a um limite qualquer em que se transforma em transtorno. Para o fazer, Vicente dá sentimentos à sua cadeira, e por extensão às coisas que tendemos a descartar, e dá-lhe também o dom da palavra, pondo o conto inteiro na sua consciência. É a cadeira a narradora, é a perspetiva da cadeira que é apresentada. É giro? É giro. Mas...
... mas Vicente parece ter mais desejo de ser poeta do que ficcionista. Talvez por isso tenha enchido o conto com uma tão omnipresente camada de frases e ideias repetidas que ele se torna muito depressa cansativo. À quinta repetição, o leitor já está mais a pensar "sim, pá, já percebi" do que na questão que o autor quer colocar. À décima está a folhear o livro para ver quantas páginas faltam, enquanto pensa "mas isto nunca mais acaba?"
Acaba. São 14 páginas. Mas poderiam perfeitamente ser só umas 7. O conto ficaria melhor, parece-me. Ficaria realmente bom. Assim, é sobretudo chato.
Pois aqui, neste conto de Abraão Vicente, autor caboverdiano que é a primeira vez que me passa pelos olhos, o objeto inanimado que é antropomorfizado é uma cadeira, como de resto seria de esperar a partir do momento em que se sabe que o tema desta antologia é precisamente esse: cadeiras. E esta até tem nome: Moxim, precisamente.
É um conto literário até ao cúmulo, com o que isso tem de bom — está bastante bem escrito, na perspetiva estrita do domínio da língua — mas também com o que tem de mau. O tema básico, além da superficialidade da cadeira, é a forma como descartamos (ou não) aquilo que nos foi útil, aquilo que talvez até tenhamos amado, de certa forma, mas chegou a um limite qualquer em que se transforma em transtorno. Para o fazer, Vicente dá sentimentos à sua cadeira, e por extensão às coisas que tendemos a descartar, e dá-lhe também o dom da palavra, pondo o conto inteiro na sua consciência. É a cadeira a narradora, é a perspetiva da cadeira que é apresentada. É giro? É giro. Mas...
... mas Vicente parece ter mais desejo de ser poeta do que ficcionista. Talvez por isso tenha enchido o conto com uma tão omnipresente camada de frases e ideias repetidas que ele se torna muito depressa cansativo. À quinta repetição, o leitor já está mais a pensar "sim, pá, já percebi" do que na questão que o autor quer colocar. À décima está a folhear o livro para ver quantas páginas faltam, enquanto pensa "mas isto nunca mais acaba?"
Acaba. São 14 páginas. Mas poderiam perfeitamente ser só umas 7. O conto ficaria melhor, parece-me. Ficaria realmente bom. Assim, é sobretudo chato.
João Ventura: O Teclado Paranóico (#leiturtugas)
Parece que já foi no tempo em que os animais falavam. Mas houve uma altura em que se começava por aí a fazer ebooks, quase sempre sem se ter ideia alguma do que se estava realmente a fazer (culpado!), e quase invariavelmente em PDF (culpado!). Não através de programas especificamente criados para produzir PDFs, que sempre foram caros até começarem a aparecer os gratuitos, mas usando o word e conversores (culpado!).
Pois este continho de João Ventura é desse tempo, tendo sido publicado por um site/fórum há muito desaparecido, o Brigadas FC, em 2005. O Teclado Paranóico é basicamente uma vinheta de duas páginas, apesar do PDF ter três e de parecer só conter verdadeiramente uma. Confusos? Bem, é que uma das páginas do PDF é este arremedo de capa que aqui veem ao lado, a terceira contém apenas uma nota de copyright e a página de texto está formatada "à word", sem levar grandemente em consideração a facilidade da leitura, que a malta daqueles tempos produzia PDFs, basicamente, para imprimir, não para ler em écran. Devidamente paginado, o texto ocuparia provavelmente duas páginas incompletas.
Mas a prosa do João compensa largamente a fraca edição. Este é um conto "à João Ventura", com aquele humor e aquele brincar com as palavras que lhe são característicos. Trata-se, basicamente de uma reclamação de um cliente dirigida à firma que lhe vendeu um computador, porque o teclado tem vida e ideias próprias e parece ter decidido adulterar tudo o que escreve. Detalhe: a reclamação também é escrita por esse teclado. Isso ou então o teclado está ótimo e é o reclamante que é maluco. O resultado é uma historiazinha francamente divertida, fantástica de um modo bastante todoroviano porque fica a pairar a dúvida sobre o que é verdade e o que é imaginação, e totalmente eficaz naquilo que se propõe fazer.
Este é dos tais contos que descarreguei na altura em que saiu e têm ficado no meu computador à espera de serem lidos. Creio que já não se consegue apanhar em lado nenhum. O que é pena.
Pois este continho de João Ventura é desse tempo, tendo sido publicado por um site/fórum há muito desaparecido, o Brigadas FC, em 2005. O Teclado Paranóico é basicamente uma vinheta de duas páginas, apesar do PDF ter três e de parecer só conter verdadeiramente uma. Confusos? Bem, é que uma das páginas do PDF é este arremedo de capa que aqui veem ao lado, a terceira contém apenas uma nota de copyright e a página de texto está formatada "à word", sem levar grandemente em consideração a facilidade da leitura, que a malta daqueles tempos produzia PDFs, basicamente, para imprimir, não para ler em écran. Devidamente paginado, o texto ocuparia provavelmente duas páginas incompletas.
Mas a prosa do João compensa largamente a fraca edição. Este é um conto "à João Ventura", com aquele humor e aquele brincar com as palavras que lhe são característicos. Trata-se, basicamente de uma reclamação de um cliente dirigida à firma que lhe vendeu um computador, porque o teclado tem vida e ideias próprias e parece ter decidido adulterar tudo o que escreve. Detalhe: a reclamação também é escrita por esse teclado. Isso ou então o teclado está ótimo e é o reclamante que é maluco. O resultado é uma historiazinha francamente divertida, fantástica de um modo bastante todoroviano porque fica a pairar a dúvida sobre o que é verdade e o que é imaginação, e totalmente eficaz naquilo que se propõe fazer.
Este é dos tais contos que descarreguei na altura em que saiu e têm ficado no meu computador à espera de serem lidos. Creio que já não se consegue apanhar em lado nenhum. O que é pena.
O meu pai tem novo livro
O meu pai era poeta.
Morreu em 2011, aos 75 anos, graças a quilos de cigarros e às consequências que eles tiveram. Deixou por cá a família, uma série de publicações (poemas, sim, mas também contos e crónicas) dispersas por jornais, revistas e uma ou outra antologia e dois livros de poemas. Fininhos, como era norma no seu tempo e em grande medida continua a ser ainda hoje.
Agora saiu o terceiro.
Não começou com um telefonema mas, pela parte que me toca, foi assim que começou. Que conheciam a poesia do meu pai e gostavam muito dela, que era uma pena que poucos a conhecessem hoje em dia porque já há décadas anda fora de mercado, se eu estaria de acordo que se publicasse um livro novo com os poemas dele, e por aí fora.
E eu, sem saber bem o que ele diria (tanto podia recusar como ficar contente e dizer que sim), e sem lhe poder perguntar, aceitei. E ao aceitar passei a ter um problema.
É que me queriam envolvido. Queriam-me a colaborar na escolha dos poemas, no delinear da edição, nessas coisas miúdas de que são feitos os livros. Só que eu, como quem costuma ler o que vou pondo aqui já está farto de saber, me tenho na conta de um gajo que pouco percebe de poesia. Escolher poemas? Que sei eu sobre poemas para poder escolhê-los? Especialmente inéditos e dispersos?
E depois apareceram outros problemas. Falta de tempo, emails perdidos, um arquivo paterno muito mal organizado, onde estão poemas dispersos publicados em vários sítios mas quase sempre sem qualquer indicação de onde e quando, e etc., e etc., e etc. Com tudo isso, o tempo foi-se arrastando e por fim acabou por ficar decidido que para a publicação avançar teria de ser reduzida a uma compilação dos dois livros publicados em vida.
E a um prefácio.
Escrito por mim.
Mas têm a certeza? Eu pouco percebo de poesia, e patati, e patata. Que sim, que sim, escreva lá isso.
E eu suspirei, escrevi, apaguei, voltei a escrever, voltei a apagar, reescrevi. Por fim, lá saiu qualquer coisa razoável. E por fim o livro saiu. Não sou daqui: eu vim num dorso de vaga, o título, é também um verso de um dos poemas (e não, não fui eu que o escolhi). Candeias Nunes, o autor, veio mais tarde a assinar também como António Candeias, mas coisas diferentes, possivelmente mais conhecidas por quem frequenta este blogue. Douda Correria, a editora, está presente na internet aqui, e a página relativa ao livro, onde se encontra um link para contactos e pedidos, é esta.
E assim, quase nove anos depois de nos ter deixado e uns sessenta depois de ter escrito estes versos, o meu velhote volta a poder ser lido por quem tiver curiosidade.
É a magia da palavra escrita.
Morreu em 2011, aos 75 anos, graças a quilos de cigarros e às consequências que eles tiveram. Deixou por cá a família, uma série de publicações (poemas, sim, mas também contos e crónicas) dispersas por jornais, revistas e uma ou outra antologia e dois livros de poemas. Fininhos, como era norma no seu tempo e em grande medida continua a ser ainda hoje.
Agora saiu o terceiro.
Não começou com um telefonema mas, pela parte que me toca, foi assim que começou. Que conheciam a poesia do meu pai e gostavam muito dela, que era uma pena que poucos a conhecessem hoje em dia porque já há décadas anda fora de mercado, se eu estaria de acordo que se publicasse um livro novo com os poemas dele, e por aí fora.
E eu, sem saber bem o que ele diria (tanto podia recusar como ficar contente e dizer que sim), e sem lhe poder perguntar, aceitei. E ao aceitar passei a ter um problema.
É que me queriam envolvido. Queriam-me a colaborar na escolha dos poemas, no delinear da edição, nessas coisas miúdas de que são feitos os livros. Só que eu, como quem costuma ler o que vou pondo aqui já está farto de saber, me tenho na conta de um gajo que pouco percebe de poesia. Escolher poemas? Que sei eu sobre poemas para poder escolhê-los? Especialmente inéditos e dispersos?
E depois apareceram outros problemas. Falta de tempo, emails perdidos, um arquivo paterno muito mal organizado, onde estão poemas dispersos publicados em vários sítios mas quase sempre sem qualquer indicação de onde e quando, e etc., e etc., e etc. Com tudo isso, o tempo foi-se arrastando e por fim acabou por ficar decidido que para a publicação avançar teria de ser reduzida a uma compilação dos dois livros publicados em vida.
E a um prefácio.
Escrito por mim.
Mas têm a certeza? Eu pouco percebo de poesia, e patati, e patata. Que sim, que sim, escreva lá isso.
E eu suspirei, escrevi, apaguei, voltei a escrever, voltei a apagar, reescrevi. Por fim, lá saiu qualquer coisa razoável. E por fim o livro saiu. Não sou daqui: eu vim num dorso de vaga, o título, é também um verso de um dos poemas (e não, não fui eu que o escolhi). Candeias Nunes, o autor, veio mais tarde a assinar também como António Candeias, mas coisas diferentes, possivelmente mais conhecidas por quem frequenta este blogue. Douda Correria, a editora, está presente na internet aqui, e a página relativa ao livro, onde se encontra um link para contactos e pedidos, é esta.
E assim, quase nove anos depois de nos ter deixado e uns sessenta depois de ter escrito estes versos, o meu velhote volta a poder ser lido por quem tiver curiosidade.
É a magia da palavra escrita.
terça-feira, 24 de dezembro de 2019
Robert Thurston: Debaixo de Cerco
Falei aqui há dias de relevância no contexto da ficção científica portuguesa e, num daqueles exercícios de sincronicidade que o acaso teima em fornecer a quem está atento, eis que dias depois leio uma noveleta que poderia perfeitamente funcionar como ilustração do terceiro tipo de relevância que aí mencionei.
Publicada em 1974, num período de grande agitação social na América, durante o qual a contestação à Guerra do Vietname se fundiu com ramificações tardias do movimento pelos direitos civis, nas quais o movimento Black Power teve a sua maior visibilidade, Debaixo de Cerco (bibliografia) é uma noveleta corajosa sobre racismo. O protagonista-narrador de Robert Thurston é um intelectual branco, casado com uma negra, e defensor de relações harmoniosas entre as raças numa sociedade americana de futuro próximo, distópica, na qual os movimentos de libertação (ou até de supremacia) negra parecem ter tido sucesso.
E também é uma história problemática em outros níveis pois recorre à velha e batida técnica da violação para desencadear ou fazer avançar a narrativa. Não a narrativa centrada na mulher violada, a qual pouco mais acaba por ser que cenário, mas a narrativa centrada na relação entre o homem violador e o homem marido da mulher violada. Aquele é um negro, retratado como uma espécie de chefe de gangue que na realidade distópica que Thurston cria é livre para fazer impunemente tudo o que lhe der na veneta. E esta, claro, é o intelectual branco, que se vê não só na posição de vítima — apesar da verdadeira vítima ser outra — mas também na de minoria oprimida.
O que Thurston quer fazer com isto, julgo eu, é discutir a forma como as relações raciais na América, desde sempre violentas, podem ou não perpetuar a violência se e quando o centro de poder mudar de mãos, da minoria branca para a minoria negra (sim, são ambas minorias; há a tendência de tratar como minorias apenas as não hegemónicas, mas todas o são). É dizer que, talvez, só violentando os violentadores será possível fazê-los realmente compreender o que sentem desde há séculos os violentados. Por vezes, o conto parece bastante racista porque parece dar como adquirido que a raça terá sempre centralidade na vida americana, mesmo que a minoria branca perca as rédeas do poder. Mas não creio que fosse essa a intenção do autor. Parece-me que a intenção é tentar compreender o ponto de vista do movimento negro, particularmente do mais radical: os Black Panthers e grupos semelhantes, que na altura tinham bastante proeminência em certos círculos. Numa perspetiva essencialmente antirracista.
Seja como for, este é um bom conto de ficção científica social, completamente carregado de conteúdo, nos antípodas do escapismo que demasiada gente associa com demasiada frequência ao género. Com os seus problemas, certamente, e aberto a que pessoas diferentes nele encontrem coisas diferentes, como de resto é hábito, mas bom.
Contos anteriores desta publicação:
Publicada em 1974, num período de grande agitação social na América, durante o qual a contestação à Guerra do Vietname se fundiu com ramificações tardias do movimento pelos direitos civis, nas quais o movimento Black Power teve a sua maior visibilidade, Debaixo de Cerco (bibliografia) é uma noveleta corajosa sobre racismo. O protagonista-narrador de Robert Thurston é um intelectual branco, casado com uma negra, e defensor de relações harmoniosas entre as raças numa sociedade americana de futuro próximo, distópica, na qual os movimentos de libertação (ou até de supremacia) negra parecem ter tido sucesso.
E também é uma história problemática em outros níveis pois recorre à velha e batida técnica da violação para desencadear ou fazer avançar a narrativa. Não a narrativa centrada na mulher violada, a qual pouco mais acaba por ser que cenário, mas a narrativa centrada na relação entre o homem violador e o homem marido da mulher violada. Aquele é um negro, retratado como uma espécie de chefe de gangue que na realidade distópica que Thurston cria é livre para fazer impunemente tudo o que lhe der na veneta. E esta, claro, é o intelectual branco, que se vê não só na posição de vítima — apesar da verdadeira vítima ser outra — mas também na de minoria oprimida.
O que Thurston quer fazer com isto, julgo eu, é discutir a forma como as relações raciais na América, desde sempre violentas, podem ou não perpetuar a violência se e quando o centro de poder mudar de mãos, da minoria branca para a minoria negra (sim, são ambas minorias; há a tendência de tratar como minorias apenas as não hegemónicas, mas todas o são). É dizer que, talvez, só violentando os violentadores será possível fazê-los realmente compreender o que sentem desde há séculos os violentados. Por vezes, o conto parece bastante racista porque parece dar como adquirido que a raça terá sempre centralidade na vida americana, mesmo que a minoria branca perca as rédeas do poder. Mas não creio que fosse essa a intenção do autor. Parece-me que a intenção é tentar compreender o ponto de vista do movimento negro, particularmente do mais radical: os Black Panthers e grupos semelhantes, que na altura tinham bastante proeminência em certos círculos. Numa perspetiva essencialmente antirracista.
Seja como for, este é um bom conto de ficção científica social, completamente carregado de conteúdo, nos antípodas do escapismo que demasiada gente associa com demasiada frequência ao género. Com os seus problemas, certamente, e aberto a que pessoas diferentes nele encontrem coisas diferentes, como de resto é hábito, mas bom.
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domingo, 22 de dezembro de 2019
Ray Bradbury: Tio Einar
Muitos autores, particularmente os bons, têm histórias que tendem a ser republicadas em vários livros, tanto deles como antológicos, e Ray Bradbury não é exceção. Pela sua relativa ubiquidade, essas são histórias que correm sempre o risco de reaparecer nas leituras de quem aprecia ler contos, como eu. E no caso de Bradbury uma dessas histórias é este doce conto intitulado Tio Einar (bibliografia). Resultado: não só já o tinha lido noutra publicação como já o tinha comentado de forma razoavelmente extensa, há praticamente dois anos. Dois anos não são quase nada, e a opinião com que fiquei nesta leitura que agora fiz é em essência a mesma com que tinha ficado em janeiro de 2018.
Contos anteriores deste livro:
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Leiturtugas da semana #46
E mais uma vez é o Artur Coelho quem avança com as primeiras Leiturtugas da semana, por intermédio de mais uma brevíssima opinião sobre um livro de BD, expandida noutro lado. Cabe a vez ao número 1 da revista Umbra, um conjunto de bandas desemnhadas de João Chambel, João Sequeira, Pedro Moura, Filipe Abranches, Sama, Sérgio Sequeira, José Carlos Joaquim e Hugo Maciel, publicado pela Umbra.
Depois apareceu o gajo que escreve aqui na Lâmpada, com a sua opinião sobre mais uma antologia. Trata-se desta vez da antologia Avenidas sem Sentido, organizada por Pedro Sena-Lino e publicada pela QuidNovi, onde não existe ficção científica mas existem outras vertentes de ficção especulativa.
De seguida, a Nights publicou mais um vídeo onde fala das suas leituras de outono, incluindo muita leiturtuga. O Despertar, de Iria Alexandra Cardoso, é um romance juvenil publicado pela Chiado, o qual parece ser fantasia científica, ou seja, entra na coluna "com FC". Micaela é um conto de fantasia paranormal de Nádia Batista, autopublicado via Wattpad. Nobody Tricks the Trickster é também um conto autopublicado e divulgado pela própria autora, Ana C. Reis, no seu blogue. Trata-se de uma fantasia escrita em inglês. Contos de Terror do Homem-Peixe, uma antologia organizada por Miguel Neto e Pedro Souto, é um livro de terror mas com alguma FC publicado pela Chimpanzé Intelectual. Corações de Corda, de Carina Portugal, é uma noveleta (?) steampunk publicada via Smashwords. Despojos de Guerra, de Carlos Silva, é um conto de FC integrado no universo do Comandante Serralves e foi publicado pela Imaginauta. Por fim, As Cordas de Itz'mucan é um conto de FC de Anton Stark, também publicado via Smashwords. Puff... Sempre que a Nights faz um vídeo lá vem lençol. Os tais problemas bons da vida. São cinco obras com FC e duas sem, o que leva a Nights a saltar para 6c8s... e cumprir os objetivos. E com folga!
Por fim, já hoje, a Carla Ribeiro também publicou mais uma opinião sua integrada no projeto. Refere-se essa opinião ao mais recente romance de João Nuno Azambuja, a distopia Autópsia, publicada há três meses pela Guerra e Paz. Tem FC, claro, pelo que a Carla sobe a 6c3s. Só faltam 3!
E por esta semana é só e não é pouco. Venha a próxima.
Depois apareceu o gajo que escreve aqui na Lâmpada, com a sua opinião sobre mais uma antologia. Trata-se desta vez da antologia Avenidas sem Sentido, organizada por Pedro Sena-Lino e publicada pela QuidNovi, onde não existe ficção científica mas existem outras vertentes de ficção especulativa.
De seguida, a Nights publicou mais um vídeo onde fala das suas leituras de outono, incluindo muita leiturtuga. O Despertar, de Iria Alexandra Cardoso, é um romance juvenil publicado pela Chiado, o qual parece ser fantasia científica, ou seja, entra na coluna "com FC". Micaela é um conto de fantasia paranormal de Nádia Batista, autopublicado via Wattpad. Nobody Tricks the Trickster é também um conto autopublicado e divulgado pela própria autora, Ana C. Reis, no seu blogue. Trata-se de uma fantasia escrita em inglês. Contos de Terror do Homem-Peixe, uma antologia organizada por Miguel Neto e Pedro Souto, é um livro de terror mas com alguma FC publicado pela Chimpanzé Intelectual. Corações de Corda, de Carina Portugal, é uma noveleta (?) steampunk publicada via Smashwords. Despojos de Guerra, de Carlos Silva, é um conto de FC integrado no universo do Comandante Serralves e foi publicado pela Imaginauta. Por fim, As Cordas de Itz'mucan é um conto de FC de Anton Stark, também publicado via Smashwords. Puff... Sempre que a Nights faz um vídeo lá vem lençol. Os tais problemas bons da vida. São cinco obras com FC e duas sem, o que leva a Nights a saltar para 6c8s... e cumprir os objetivos. E com folga!
Por fim, já hoje, a Carla Ribeiro também publicou mais uma opinião sua integrada no projeto. Refere-se essa opinião ao mais recente romance de João Nuno Azambuja, a distopia Autópsia, publicada há três meses pela Guerra e Paz. Tem FC, claro, pelo que a Carla sobe a 6c3s. Só faltam 3!
E por esta semana é só e não é pouco. Venha a próxima.
sábado, 21 de dezembro de 2019
Rui Cardoso Martins: O Progresso da Humanidade
Regresso após alguns meses a estes ebooks publicados pelo DN e preparados pela Escritório, e regresso bem, com um conto de um autor que já tinha lido antes, e do qual já tinha gostado: Rui Cardoso Martins. Aliás, já antes tinha lido este conto, precisamente. É que O Progresso da Humanidade é um dos poucos contos desta coleção que não são inéditos, tendo sido publicado num dos números da revista Ficções que li há uns anos. Há oito anos, para ser preciso. A avaliação que dele fiz em 2011 está aqui.
Relendo-o agora, encontro nele coisas que não mencionei em 2011, e uma é bastante relevante. Não sei bem se porque em 2011 a besta fascista ainda não estava com a cabeça tão erguida como está hoje, apesar de já se mostrarem claramente os sinais para quem soubesse vê-los, se porque li o conto muito poucos meses depois de perde o meu pai, numa altura em que não estava propriamente aberto a apreciar ironias, o certo é que na altura pareço não ter reparado (ou achado importante mencionar) na pesada ironia que envolve toda a história do menino nazi, e no caráter patético, diria mesmo imbecil, que Rui Cardoso Martins lhe atribui.
Consequentemente, gostei mais desta leitura que da primeira. Continuo a achar que este conto não é nada de superlativo, mas é dos melhores contos incluídos nesta coleção.
Relendo-o agora, encontro nele coisas que não mencionei em 2011, e uma é bastante relevante. Não sei bem se porque em 2011 a besta fascista ainda não estava com a cabeça tão erguida como está hoje, apesar de já se mostrarem claramente os sinais para quem soubesse vê-los, se porque li o conto muito poucos meses depois de perde o meu pai, numa altura em que não estava propriamente aberto a apreciar ironias, o certo é que na altura pareço não ter reparado (ou achado importante mencionar) na pesada ironia que envolve toda a história do menino nazi, e no caráter patético, diria mesmo imbecil, que Rui Cardoso Martins lhe atribui.
Consequentemente, gostei mais desta leitura que da primeira. Continuo a achar que este conto não é nada de superlativo, mas é dos melhores contos incluídos nesta coleção.
Sapphire Fayer: Princesa dos Dragões
Este é um conto absolutamente adolescente. Não, não é um conto YA, pois estes são regra geral escritos por escritores pelo menos razoavelmente maduros, mesmo quando os temas e as abordagens são adolescentes. Este não. Este é um conto em que a imaturidade é total, começando pelo pseudónimo escolhido pela autora e acabando na história que ela conta, passando por tudo o resto, mas sobretudo, porque é essencial quando se contam histórias por escrito, pela escrita propriamente dita.
Nos tempos em que havia fanzines, contos destes marcavam muitas vezes as estreias de uma porção razoável dos fãs candidatos a escritores, os quais, quando os reliam anos mais tarde, depois de ganharem conhecimentos e experiência, não era raro renegarem-nos. Mas os fanzines praticamente acabaram, não foram substituídos de forma consistente por publicações eletrónicas, ou na verdade por quaisquer outras, e este tipo de coisa acaba por acolher-se em antologias duvidosas. Como esta.
Mas o que escreveu, ao certo, a autora que assina como Sapphire Fayer? O título, Princesa dos Dragões (bibliografia), já dá todas as pistas. É um conto de fantasia carregadinho de dramatismo, sobre a filha adolescente do rei dos dragões, que, como qualquer adolescente caprichosa, revira os olhos a cada palavra ou ato do pai, com o qual viaja até à «ilha dos dragões» onde os dois vão deparar com uma batalha, na qual mergulham e em consequência da qual acontece uma tragédia que a deixa chorosa e resignada com o seu destino régio. Fim. Tudo um bom bocado incoerente e gratuito e escrito num português fracote.
Sim, este conto é mau. Não quer dizer que a pessoa por trás do pseudónimo não possa um dia produzir material realmente interessante, ou até bom — todos começamos por baixo — mas aqui ainda estava a muitos anos disso. Precisava de amadurecer, de ler muito e de escrever bastante para descobrir o que funciona e o que não funciona. Mas escrever e publicar são coisas diferentes. Se é verdade que publicar tem vantagens, não é menos verdade que constitui com frequência um choque demasiado violento com as realidades da opinião pública para quem não está preparado para elas e está ainda longe de ter as suas capacidades aprimoradas, o que leva com frequência à desilusão e esta ao abandono.
Textos anteriores deste livro:
Nos tempos em que havia fanzines, contos destes marcavam muitas vezes as estreias de uma porção razoável dos fãs candidatos a escritores, os quais, quando os reliam anos mais tarde, depois de ganharem conhecimentos e experiência, não era raro renegarem-nos. Mas os fanzines praticamente acabaram, não foram substituídos de forma consistente por publicações eletrónicas, ou na verdade por quaisquer outras, e este tipo de coisa acaba por acolher-se em antologias duvidosas. Como esta.
Mas o que escreveu, ao certo, a autora que assina como Sapphire Fayer? O título, Princesa dos Dragões (bibliografia), já dá todas as pistas. É um conto de fantasia carregadinho de dramatismo, sobre a filha adolescente do rei dos dragões, que, como qualquer adolescente caprichosa, revira os olhos a cada palavra ou ato do pai, com o qual viaja até à «ilha dos dragões» onde os dois vão deparar com uma batalha, na qual mergulham e em consequência da qual acontece uma tragédia que a deixa chorosa e resignada com o seu destino régio. Fim. Tudo um bom bocado incoerente e gratuito e escrito num português fracote.
Sim, este conto é mau. Não quer dizer que a pessoa por trás do pseudónimo não possa um dia produzir material realmente interessante, ou até bom — todos começamos por baixo — mas aqui ainda estava a muitos anos disso. Precisava de amadurecer, de ler muito e de escrever bastante para descobrir o que funciona e o que não funciona. Mas escrever e publicar são coisas diferentes. Se é verdade que publicar tem vantagens, não é menos verdade que constitui com frequência um choque demasiado violento com as realidades da opinião pública para quem não está preparado para elas e está ainda longe de ter as suas capacidades aprimoradas, o que leva com frequência à desilusão e esta ao abandono.
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sexta-feira, 20 de dezembro de 2019
Paulo Mota: Amanhecer Etéreo
O que será que leva tantos autores portugueses que enveredam pela ficção científica, pelo menos nesta antologia (mas não só; vejam-se tantas das ficções do João Barreiros ou do Telmo Marçal, entre outros), a misturá-la com o horror?
Sim, foi o que fez também Paulo Mota. Amanhecer Etéreo (bibliografia) é um conto sobre um astronauta americano que sobe à estação espacial como solução de emergência para concluir uma reparação em atividade extraveicular, a qual causara a morte do astronauta chinês que tentara realizá-la anteriormente. E acaba como história de fantasmas. Ou de loucura, talvez. Sim, fica a dúvida, dúvida essa, entre fantasmas e loucura, que é uma característica muito usada nas histórias de terror.
A ideia podia ter pernas para andar. Mas Paulo Mota concretiza-a mal, não só por encher o seu conto de referências extremamente vagas a aparelhos e procedimentos, o que transmite uma fortíssima sensação de que pouco ou nada sabe sobre aquilo de que está a falar (e isto é fatal para quem tenta escrever FC) ou porque o argumento do conto está mais esburacado que uma peneira (o que não será tão fatal, mas também acaba por ser), mas também porque o português que utiliza é fraco, cheio de imagens batidas e de adjetivos desnecessários.
Esta história é muito fraquinha. A qualidade, que nunca foi famosa, tende a decair com o avançar da antologia, pelos vistos.
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Sim, foi o que fez também Paulo Mota. Amanhecer Etéreo (bibliografia) é um conto sobre um astronauta americano que sobe à estação espacial como solução de emergência para concluir uma reparação em atividade extraveicular, a qual causara a morte do astronauta chinês que tentara realizá-la anteriormente. E acaba como história de fantasmas. Ou de loucura, talvez. Sim, fica a dúvida, dúvida essa, entre fantasmas e loucura, que é uma característica muito usada nas histórias de terror.
A ideia podia ter pernas para andar. Mas Paulo Mota concretiza-a mal, não só por encher o seu conto de referências extremamente vagas a aparelhos e procedimentos, o que transmite uma fortíssima sensação de que pouco ou nada sabe sobre aquilo de que está a falar (e isto é fatal para quem tenta escrever FC) ou porque o argumento do conto está mais esburacado que uma peneira (o que não será tão fatal, mas também acaba por ser), mas também porque o português que utiliza é fraco, cheio de imagens batidas e de adjetivos desnecessários.
Esta história é muito fraquinha. A qualidade, que nunca foi famosa, tende a decair com o avançar da antologia, pelos vistos.
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quinta-feira, 19 de dezembro de 2019
Manuel Alegre: Alma
Escolher excertos de romances para incluir em coletâneas ou antologias tem muito de arte, mesmo que certos romances facilitem mais a vida aos praticantes dessa arte do que outros. Convém encontrar um equilíbrio entre a vontade de despertar curiosidade para o livro exterior ao excerto e a igualmente forte vontade de apresentar um texto cuja leitura não se apresente frustrante, isto é, um texto demasiado aberto, que funcione particularmente mal quando isolado do resto.
No caso deste texto de Manuel Alegre a escolha foi bastante feliz, ainda que o autor tenha facilitado muito. Com efeito, Alma, primeiro capítulo do romance homónimo, funciona perfeitamente como conto independente, narrando uma história de infância, ambientada nos círculos (maioritariamente) republicanos e progressistas de uma terreola beirã em plena fase inicial (segundo parece; nisso o texto não é claro) do salazarismo.
O protagonista é um miúdo, descendente de uma família que é uma espécie de aristocracia republicana local, por mais que isso constitua um contrassenso, e oposicionista do regime. Há na terra uma espécie de ritual, no qual se celebram os valores republicanos e a liberdade, e o miúdo, dada a sua condição de príncipe não oficial, tem de estar presente. Mas ao mesmo tempo há jogo de bola, joga o clube da terra. E o puto, que tem bastante mais interesse pela bola que por cerimónias chatas, rebela-se, proclamando-se monárquico. Escandaleira, claro. Mas no fim tudo se resolve.
É um texto bastante bem escrito e bastante interessante, retratando com carinho mas também com ironia mais ou menos corrosiva uma certa camada da burguesia antissalazarista e provinciana de que o próprio autor faz parte (afinal, nasceu em Águeda), pelo que deverá conhecê-la bem. Não terá chegado para me despertar verdadeiramente a curiosidade pelo romance completo — prefiro outras literaturas, como é sabido — mas foi sem dúvida uma leitura agradável.
Contos anteriores deste livro:
No caso deste texto de Manuel Alegre a escolha foi bastante feliz, ainda que o autor tenha facilitado muito. Com efeito, Alma, primeiro capítulo do romance homónimo, funciona perfeitamente como conto independente, narrando uma história de infância, ambientada nos círculos (maioritariamente) republicanos e progressistas de uma terreola beirã em plena fase inicial (segundo parece; nisso o texto não é claro) do salazarismo.
O protagonista é um miúdo, descendente de uma família que é uma espécie de aristocracia republicana local, por mais que isso constitua um contrassenso, e oposicionista do regime. Há na terra uma espécie de ritual, no qual se celebram os valores republicanos e a liberdade, e o miúdo, dada a sua condição de príncipe não oficial, tem de estar presente. Mas ao mesmo tempo há jogo de bola, joga o clube da terra. E o puto, que tem bastante mais interesse pela bola que por cerimónias chatas, rebela-se, proclamando-se monárquico. Escandaleira, claro. Mas no fim tudo se resolve.
É um texto bastante bem escrito e bastante interessante, retratando com carinho mas também com ironia mais ou menos corrosiva uma certa camada da burguesia antissalazarista e provinciana de que o próprio autor faz parte (afinal, nasceu em Águeda), pelo que deverá conhecê-la bem. Não terá chegado para me despertar verdadeiramente a curiosidade pelo romance completo — prefiro outras literaturas, como é sabido — mas foi sem dúvida uma leitura agradável.
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quarta-feira, 18 de dezembro de 2019
Pedro Sena-Lino (org.): Avenidas sem Sentido (#leiturtugas)
Nas minhas leituras mais recentes tem sido abundante um tipo específico de livro: antologias e coletâneas que compro por curiosidade de ver se por acaso lá dentro se acoita alguma história fantástica ou até, quem sabe, de ficção científica. E, ainda que seja raro encontrar FC, tem sido bastante frequente encontrar nelas contos de outras facetas da ficção especulativa, ao ponto de alguns desses livros se poderem encarar como obras de ficção especulativa com alguns contos de outros géneros lá misturados.
Avenidas sem Sentido não vai tão longe; a maioria dos contos aqui incluídos — e não sei se se pode falar em escolhidos, uma vez que esta antologia é o resultado de uma oficina de escrita criativa ministrada por Pedro Sena-Lino — pertence à variante realista da literatura. Mas não deixa de incluir um punhado de histórias de ficção especulativa. Aliás, abre logo com uma. Ao todo, 4 destas histórias podem integrar-se na ficção especulativa.
O nível geral é bom. Há alguns contos mais fracos (e um que achei mesmo mau), mas também há contos muito bons, tanto em termos de conto propriamente dito como em termos de adequação aos meus gostos literários, e há outros que, não sendo para o meu gosto, são igualmente bons. Como é habitual neste tipo de livro, a abordagem literária, no sentido de se dar mais relevância ao burilamento do texto do que propriamente ao seu conteúdo, tende a sobrepor-se ao resto, mas não o faz muito e há histórias que equilibram bastante bem forma e conteúdo. Destaco muito em especial o Conto Bizantino como a melhor história da antologia e Esta Casa não Foi Feita de Paredes como a segunda melhor. Entre os fantásticos, o melhor será provavelmente Deriva Divina.
Em suma, esta foi uma leitura genericamente agradável. Bastante melhor do que eu esperava à partida, confesso.
Eis o que achei de cada um dos dezasseis contos:
Avenidas sem Sentido não vai tão longe; a maioria dos contos aqui incluídos — e não sei se se pode falar em escolhidos, uma vez que esta antologia é o resultado de uma oficina de escrita criativa ministrada por Pedro Sena-Lino — pertence à variante realista da literatura. Mas não deixa de incluir um punhado de histórias de ficção especulativa. Aliás, abre logo com uma. Ao todo, 4 destas histórias podem integrar-se na ficção especulativa.
O nível geral é bom. Há alguns contos mais fracos (e um que achei mesmo mau), mas também há contos muito bons, tanto em termos de conto propriamente dito como em termos de adequação aos meus gostos literários, e há outros que, não sendo para o meu gosto, são igualmente bons. Como é habitual neste tipo de livro, a abordagem literária, no sentido de se dar mais relevância ao burilamento do texto do que propriamente ao seu conteúdo, tende a sobrepor-se ao resto, mas não o faz muito e há histórias que equilibram bastante bem forma e conteúdo. Destaco muito em especial o Conto Bizantino como a melhor história da antologia e Esta Casa não Foi Feita de Paredes como a segunda melhor. Entre os fantásticos, o melhor será provavelmente Deriva Divina.
Em suma, esta foi uma leitura genericamente agradável. Bastante melhor do que eu esperava à partida, confesso.
Eis o que achei de cada um dos dezasseis contos:
- A Porta Verde
- A Viagem da Giulia Tarossi
- Aniversário
- Conto Bizantino
- De Dentro Ninguém Responde
- Decisões Imperfeitas
- Deriva Divina
- É Rua Cá Dentro
- Esta Casa não Foi Feita de Paredes
- Horas Certas
- Janelas Para Lugar Nenhum
- Lucubrações Acacianas
- O Animal Enjaulado
- Os Crimes de Agnieszka
- Risco Vermelho
- Vida de Faz de Conta
Joel Puga: O Último
Este é um conto curioso porque, sendo um conto de ficção especulativa, é fundamentalmente uma espécie de declaração de amor à ficção especulativa. Joel Puga arranja uma personagem de fantasia razoavelmente típica e de fundo cristão, um homem que, descontente com o aspeto dos dois sítios onde poderia ir passar a eternidade, tanto o céu quanto o inferno, decide simplesmente não morrer, dedicando-se (ou submetendo-se, o que vai dar ao mesmo) ao vampirismo. E assim transforma-se em O Último (bibliografia). Mas depois aborrece-se; a eternidade, mesmo quando não é propriamente eterna, tende a tornar-se chata. Solução? Ler. Não qualquer coisa, mas especificamente ficção especulativa.
Mas claro que nada dura para sempre e, tendo o conto fundo cristão, nele aparece o Armagedão, onde os exércitos de anjos e demónios se enfrentam numa derradeira batalha. E o vampiro imortal é apanhado no meio, sabendo que isso significa o fim. Curioso. Mas não propriamente bom; não está suficientemente bem escrito para o ser, e a própria estrutura do conto, demasiado descritiva, não é a melhor. Mas sim, curioso.
Textos anteriores deste livro:
Mas claro que nada dura para sempre e, tendo o conto fundo cristão, nele aparece o Armagedão, onde os exércitos de anjos e demónios se enfrentam numa derradeira batalha. E o vampiro imortal é apanhado no meio, sabendo que isso significa o fim. Curioso. Mas não propriamente bom; não está suficientemente bem escrito para o ser, e a própria estrutura do conto, demasiado descritiva, não é a melhor. Mas sim, curioso.
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terça-feira, 17 de dezembro de 2019
R. M. Berry: Cegueira Uxória
R. M. Berry, o(a) misterioso(a) autor(a) deste Cegueira Uxória (bibliografia) — uma tradução algo desajustada, pelo seu eruditismo, para o mui prosaico título original de Wife Blindness — é bem capaz de ser uma mulher. Ou então é um homem cheio de ironia autocrítica. É que a doença que descreve é enfermidade extremamente comum, diz-se, na população masculina casada, cujos sintomas são principalmente uma progressiva incapacidade... de ver a mulher.
Este é um texto divertido, ainda que sem o rasgo literário de uma Assimilação de Tian Shan-Góbi, por exemplo. A ironia é quase sempre bastante óbvia, visto que corresponde a queixas conjugais que acompanham a vida de casado desde há séculos, com as variações próprias da evolução social e tecnológica. Mas cumpre, tanto os objetivos como a proposta.
Textos anteriores deste livro:
Este é um texto divertido, ainda que sem o rasgo literário de uma Assimilação de Tian Shan-Góbi, por exemplo. A ironia é quase sempre bastante óbvia, visto que corresponde a queixas conjugais que acompanham a vida de casado desde há séculos, com as variações próprias da evolução social e tecnológica. Mas cumpre, tanto os objetivos como a proposta.
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domingo, 15 de dezembro de 2019
Leiturtugas da semana #45
Mais uma semana, mais Leiturtugas, que isto desde setembro tem sido sempre a aviar. Desta vez começamos pelos suspeitos do costume, pois quem começou a publicar coisas relevantes para o projeto foi o Artur Coelho, opinando mais uma vez sobre BD, numa opinião bastante curta que, como é hábito quando o assunto é BD, remete para uma opinião mais desenvolvida noutro lado. A BD em causa intitula-se All Watched Over By Machines Of Loving Grace, um título inglês para textos em português, e é uma antologia de várias histórias criadas por uma porção de gente: Amorim Abiassi Ferreira, Ana Maçã, André Pereira, Cátia Serrão, Cláudia Salgueiro, Dois Vês, Félix Rodrigues, João Carola e Vasco Ruivo. É uma edição da Chili Com Carne.
E depois veio mais uma suspeita do costume, a Cristina Alves, com a quarta e última parte da sua opinião sobre a mais recente edição de O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias, de João Barreiros. Ambos têm os objetivos cumpridos, pelo que nada de sinalefas.
Mas não ficámos por aqui, pois também a Carla Ribeiro publicou uma opinião integrada no projeto, sobre o livro de estreia de Mário de Carvalho, Contos da Sétima Esfera, recentemente reeditado pela Porto Editora. Trata-se fundamentalmente de uma coletânea de contos fantásticos mas, como contém um conto que roça pela ficção científica (O Bólide), conta como "com FC", o que leva a Carla a 5c3s.
E depois veio mais uma suspeita do costume, a Cristina Alves, com a quarta e última parte da sua opinião sobre a mais recente edição de O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias, de João Barreiros. Ambos têm os objetivos cumpridos, pelo que nada de sinalefas.
Mas não ficámos por aqui, pois também a Carla Ribeiro publicou uma opinião integrada no projeto, sobre o livro de estreia de Mário de Carvalho, Contos da Sétima Esfera, recentemente reeditado pela Porto Editora. Trata-se fundamentalmente de uma coletânea de contos fantásticos mas, como contém um conto que roça pela ficção científica (O Bólide), conta como "com FC", o que leva a Carla a 5c3s.
sábado, 14 de dezembro de 2019
Franz Kafka: Fábula Breve
De nove linhas e um penduricalhozito se faz em versão portuguesa este miniconto de Franz Kafka que, precisamente como o título indica, é uma Fábula Breve. Uma fábula breve e bastante niilista, sobre um rato, que vê a vidinha a andar para trás sob a forma de um mundo que o encurrala, e um gato, que é gato e trata o rato como é costume um gato tratar um rato. Não é nada de invulgar ou extraordinário, este continho; é uma fábula breve, nada mais.
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Luísa Costa Gomes: O Fosso e o Pêndulo
Quem conhece alguma coisa sobre a obra de Edgar Allan Poe sem dúvida terá lido um dos seus melhores contos, O Poço e o Pêndulo, e não lhe custará nada ver no título desta história de Luísa Costa Gomes uma referência óbvia a esse conto. O Fosso e o Pêndulo até foneticamente é quase igual ao título português do conto de Poe. Mesmo assim, não vá dar-se o caso de alguém ser tão obtuso que não entenda a ligação, a autora ainda inicia o seu conto com uma citação em epígrafe do conto de Poe. Pronto. Assim toda a gente percebe.
Aqui na Lâmpada falei duas vezes sobre o conto de Poe, primeiro aqui, depois aqui, e não foram as únicas vezes que o li; já o tinha lido antes de começar a escrever em blogues e sites. Ou seja, conheço-o razoavelmente bem. Mas mesmo assim custa-me a encontrar a ligação com o conto de Luísa Costa Gomes.
Poe escreve sobre um homem sujeito a tortura psicológica. Costa Gomes escreve sobre um assassino, ou pelo menos sobre um homem que se sonha assassino. Sim, é mal definido. De resto, todo o conto o é, repleto de um onirismo de pesadelo. Talvez seja essa a ligação entre as duas histórias, pois também a de Poe tem muito de pesadelo. Mas é a única que vislumbro.
A personagem de Costa Gomes, batizada como Vândalo, depois de matar (ou de sonhar matar, talvez) uma velha, foge, mete-se num comboio, foge a um polícia que só queria ser prestativo, associa-se a um gigante contrabandista, e por aí fora, não necessariamente por esta ordem, e acaba enterrado vivo, por vontade própria, por um velho gagá que com toda a certeza se vai esquecer de o desenterrar três dias mais tarde como ele lhe pede. Porquê? Sabe-se lá. Tudo no sonho... digo... no conto é gratuito, incoerente, insólito. Analisá-lo literariamente é impossível sem recorrer às técnicas mais ou menos astrológicas da interpretação de sonhos, e eu não sou gajo de astrologias. Está bem escrito, sim, como é costume da autora. Por aí não há queixas. Mas soube-me a pouco.
Contos anteriores deste livro:
Aqui na Lâmpada falei duas vezes sobre o conto de Poe, primeiro aqui, depois aqui, e não foram as únicas vezes que o li; já o tinha lido antes de começar a escrever em blogues e sites. Ou seja, conheço-o razoavelmente bem. Mas mesmo assim custa-me a encontrar a ligação com o conto de Luísa Costa Gomes.
Poe escreve sobre um homem sujeito a tortura psicológica. Costa Gomes escreve sobre um assassino, ou pelo menos sobre um homem que se sonha assassino. Sim, é mal definido. De resto, todo o conto o é, repleto de um onirismo de pesadelo. Talvez seja essa a ligação entre as duas histórias, pois também a de Poe tem muito de pesadelo. Mas é a única que vislumbro.
A personagem de Costa Gomes, batizada como Vândalo, depois de matar (ou de sonhar matar, talvez) uma velha, foge, mete-se num comboio, foge a um polícia que só queria ser prestativo, associa-se a um gigante contrabandista, e por aí fora, não necessariamente por esta ordem, e acaba enterrado vivo, por vontade própria, por um velho gagá que com toda a certeza se vai esquecer de o desenterrar três dias mais tarde como ele lhe pede. Porquê? Sabe-se lá. Tudo no sonho... digo... no conto é gratuito, incoerente, insólito. Analisá-lo literariamente é impossível sem recorrer às técnicas mais ou menos astrológicas da interpretação de sonhos, e eu não sou gajo de astrologias. Está bem escrito, sim, como é costume da autora. Por aí não há queixas. Mas soube-me a pouco.
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Marcelina Gama Leandro: Carvalho-e-Velho
Um conto com o título de Carvalho-e-Velho (bibliografia) seria bastante surpreendente se não andasse pelas veredas do fantástico, fantasia ou horror rurais. E Marcelina Gama Leandro entrega precisamente o que o título faz esperar: uma história de horror rural, razoavelmente bem escrita e melhor concebida, sobre um miúdo que, pela inteligência, solidariedade e coragem, se destaca na aldeia, e o seu irmão. Ou então sobre um segredo tenebroso.
Esta é daquelas histórias construídas por forma a sugerir mais do que revelar, e consegue fazê-lo bastante bem. Quase tudo fica indicado por meias palavras, com uma subtileza que, muito francamente, não esperava encontrar neste livro. O ambiente está bem caracterizado, as personagens, embora pouco desenvolvidas como seria inevitável numa história deste tamanho, são credíveis, e não há aqui aquela sensação de que tudo foi apressado para caber no espaço disponível, que tantas vezes tem surgido nas histórias anteriores. Este conto consegue chegar ao patamar do bom.
Textos anteriores deste livro:
Esta é daquelas histórias construídas por forma a sugerir mais do que revelar, e consegue fazê-lo bastante bem. Quase tudo fica indicado por meias palavras, com uma subtileza que, muito francamente, não esperava encontrar neste livro. O ambiente está bem caracterizado, as personagens, embora pouco desenvolvidas como seria inevitável numa história deste tamanho, são credíveis, e não há aqui aquela sensação de que tudo foi apressado para caber no espaço disponível, que tantas vezes tem surgido nas histórias anteriores. Este conto consegue chegar ao patamar do bom.
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sexta-feira, 13 de dezembro de 2019
Vanda Belo: Vida de Faz de Conta
Diz na introdução deste Vida de Faz de Conta, brevíssima apresentação de conto e autora como as que antecedem todos os outros, que Vanda Belo se estreou com esta história. Pois bem: se assim é, está de parabéns porque, à parte umas distrações com o tempo narrativo (quase todo o conto é narrado no presente, mas volta e meia passa ao passado sem que se vislumbre motivo para isso), quem dera a muitos de nós começar com esta maturidade.
E o conto (que na verdade é uma noveleta) nem é daqueles que mais me interessam. É uma história mundana, mais uma, sobre a incomunicabilidade num casamento que entra em crise fatal quando o marido perde o emprego. E não informa disso a mulher, continuando a manter a aparência de tudo estar bem, saindo às horas do costume, regressando a casa às horas habituais mas, em vez de trabalhar ou de tentar encontrar outro emprego, passando os dias a vaguear pela cidade.
Claro que esta vida de faz de conta vai ter consequências. E Vanda Belo explana-as bem, com a ressalva expressa acima. É um bom texto, este, mesmo estando longe do tipo de conto que mais me costuma agradar.
Contos anteriores deste livro:
E o conto (que na verdade é uma noveleta) nem é daqueles que mais me interessam. É uma história mundana, mais uma, sobre a incomunicabilidade num casamento que entra em crise fatal quando o marido perde o emprego. E não informa disso a mulher, continuando a manter a aparência de tudo estar bem, saindo às horas do costume, regressando a casa às horas habituais mas, em vez de trabalhar ou de tentar encontrar outro emprego, passando os dias a vaguear pela cidade.
Claro que esta vida de faz de conta vai ter consequências. E Vanda Belo explana-as bem, com a ressalva expressa acima. É um bom texto, este, mesmo estando longe do tipo de conto que mais me costuma agradar.
Contos anteriores deste livro:
Barry N. Malzberg: Dois Mil e Sessenta e Um
Dois Mil e Sessenta e Um (bibliografia), o título deste pequeno conto de Barry N. Malzberg, pertence àquela rarefeita categoria de títulos que acrescentam à história que titulam alguma informação que ela, só por si, não contém. Que informação? Bem, não é possível ter grandes certezas, mas tudo indica que se trata de uma data. A data em que a história se desenrola.
É que a história propriamente dita dispensa caracterizações assim tão finas. É um continho razoavelmente divertido sobre dois homens, um paciente e um terapeuta, que têm uma conversa durante a qual o primeiro procura convencer o segundo de que a experiência a que se submeteu está a ter efeitos secundários indesejáveis, ideia a que o interlocutor resiste enquanto lhe é possível. Que experiência? A autoindução de uma doença mental.
É daqueles contos engenhosos, feitos para uma reviravolta final deixar no leitor aquela sensação de "Ah-ha! Espertinho!" Também tem ironia e algum bom humor. Tudo boas qualidades. Mas não me agradou por aí além: por baixo da prestidigitação literária centrada no enredo este continho é bastante vazio. Uma brincadeira, que até pode ser razoavelmente divertida mas que não tem grande sumo ao espremer. Não é mau, mas também não é bom.
Conto anterior desta publicação:
É que a história propriamente dita dispensa caracterizações assim tão finas. É um continho razoavelmente divertido sobre dois homens, um paciente e um terapeuta, que têm uma conversa durante a qual o primeiro procura convencer o segundo de que a experiência a que se submeteu está a ter efeitos secundários indesejáveis, ideia a que o interlocutor resiste enquanto lhe é possível. Que experiência? A autoindução de uma doença mental.
É daqueles contos engenhosos, feitos para uma reviravolta final deixar no leitor aquela sensação de "Ah-ha! Espertinho!" Também tem ironia e algum bom humor. Tudo boas qualidades. Mas não me agradou por aí além: por baixo da prestidigitação literária centrada no enredo este continho é bastante vazio. Uma brincadeira, que até pode ser razoavelmente divertida mas que não tem grande sumo ao espremer. Não é mau, mas também não é bom.
Conto anterior desta publicação:
quinta-feira, 12 de dezembro de 2019
FC portuguesa? Para onde vai?
Não estava previsto escrever agora isto, mas o Artur Coelho disse de sua justiça sobre esta conversa nas suas duas últimas colunas no Bit2Geek, e eu discordei dele, de modo que teve de ser. Nas duas últimas, mas especialmente na última; basicamente estou de acordo com o que ele diz na primeira. E este "primeira" e "segunda" referem-se ao momento em que comecei a escrever este texto. É muito provável que quando o acabe ele já tenha dito mais coisas, mas agora só vou falar sobre o que está aqui.
Se eu aceitasse o diagnóstico que ele apresenta com o habitual fatalismo de quase todas as discussões sobre este tema, fechava simplesmente a loja, deixava de fazer coisas, deixava de comentar coisas, remetia-me ao meu mundinho, a escrever as minhas coisinhas para me livrar delas e a metê-las na gaveta (o que é basicamente o que faço agora) e mais nada (o que não é o que faço agora). Mas não o aceito, por isso continuo a fazer coisas. Porquê? Porque vejo as coisas de outra forma. Eis o que eu vejo:
Vejo um movimento no âmbito da FC portuguesa como nunca houve. Com oscilações de ano para ano, naturalmente, com as suas carências, claro, mas vejo mais gente a escrever, a publicar, possivelmente até a ler (ainda que não seja muito fácil aferir este último dado com o recolhimento de demasiada gente e comentário a redes sociais mais ou menos fechadas) do que alguma vez houve. No "ano milagroso" de 1993, havia basicamente uma editora a publicar FC portuguesa, a Caminho, e o ano só foi milagroso porque quase todo o seu catálogo do ano foi ocupado por FC portuguesa; hoje há várias, ainda que algumas — ou muitas — prefiram chamar outras coisas à FC que publicam. E os números vão no mesmo sentido: no "ano milagroso" de 1993 publicaram-se cerca de 10 livros de FC portuguesa. Bem mais do que era hábito na época. Pois calha que em 2017 se publicaram 25, mesmo sendo alguns reedições e outros ebooks; em 2018 foram 32; E este ano, mesmo sendo claramente o pior dos três, ainda hão de acabar por ser à volta de uns 20. E isto contando só com os títulos recolhidos pelo Ficção Científica Literária; há de certeza mais. Não há é comparação possível.
Vejo dois livros distópicos, parentes muito próximos da FC, portanto (se não forem mesmo FC), a serem finalistas de prémios literários portugueses este ano: Ecologia, da Joana Bértholo, e Meio Homem, Metade Baleia, de José Gardeazabal. Alguma vez aconteceu? Só com o Saramago, que eu saiba.
Quanto à velha história de que a FC como género é mal vista também dava pano para muitas mangas. Dentro do fandom (dos fandoms, que isto não é coisa só nossa; até os americanos se queixam do mesmo) existe essa velha queixa de que a visão exterior sobre o género é condescendente e desrespeitosa, mas faz-se demasiado de conta de que a visão do género sobre o exterior não tende a ser igualmente condescendente e desrespeitosa. Eu percebo porquê — também me sinto atingido quando leio coisas fraquinhas de escritores ditos "sérios", com temas, abordagens e ideias que já tinham sido antes exploradas, e tantas vezes melhor, por escritores de FC. Mas a verdade é que escamotear a realidade não ajuda ninguém... nem mesmo à projeção pessoal de quem a escamoteia. A realidade é que a FC é mal vista tanto por culpa da tacanhez e ignorância alheia, o que a malta adora sublinhar, quanto da sua própria arrogância e ignorância, o que a malta faz tudo para esconder. E sim, quando eu digo "a malta" estou a incluir-me: também fui muitas vezes — e ainda sou, de vez em quando — culpado disso.
Por outro lado... com duas distopias finalistas de dois prémios literários daqueles "de prestígio", só este ano, como é? A verdade é que os "bem-pensantes" só são contra a ficção científica quando percebem que estão a ler ficção científica. Se ninguém lhes disser nada, consomem-na com gosto e ainda lambem os beiços. Quando pegam num Ensaio Sobre a Cegueira e o enchem de elogios nem lhes passa pela cabeça que estão a elogiar um romance de ficção científica social, segundo a terminologia do Asimov. Porquê? Porque só olham para o que sai do gueto ou nunca lá entrou. E é por isso que eu até percebo quem rejeita o rótulo de FC, apesar da minha abordagem ser a oposta: dar o rótulo a tudo o que seja FC, quer o seja com "pureza", quer o seja impuramente.
No que está dentro do gueto há carências? Claro que há. Falta qualidade, provavelmente — é por exemplo deprimente constatar que quase 30 anos depois da publicação original do Caçador de Brinquedos ainda não tenha aparecido ninguém a escrever "FC-de-gueto" melhor que o Barreiros... e que o próprio Barreiros não tenha evoluído por aí além desde essa época — mas como eu não acredito que a qualidade seja de geração espontânea, isto é, que seja possível a existência de uma qualidade sustentada sem que antes haja quantidade, só posso achar que vamos no caminho certo. Devagarinho, frustrantemente devagarinho, mas no caminho certo.
(Já agora, esta relação quantidade - qualidade aplica-se não só em geral mas também no particular. Quem não escreve mais que dez ou vinte páginas por ano, se tanto, só muito dificilmente conseguirá escrevê-las bem. Escrever é tanto uma arte como uma técnica e, como qualquer técnica, também depende de uma espécie de "memória muscular" — apesar de não haver metidos nisto músculos dignos de nota — mental para ser feita bem. Sem treinar, há coisas que começam a perder-se e demoram a recuperar.)
É que havendo coisas, a academia mais tarde ou mais cedo acaba por aparecer. Um académico sério (e eles existem) estuda o que existe, pelo que o que é realmente importante é as coisas existirem. Isso é a base, e é essa base que parece agora estar finalmente a começar a ser construída. Quanto mais as coisas existirem, mais dignas de nota se tornam. Quanto mais relevantes forem, também. Um dia haverá quem repare que andamos por cá... e se não houver, também, que importa? O que é que interessa mais, a aprovação da academia ou da literatura estabelecida, ou leitores?
Eu cá prefiro leitores, francamente.
Se eu aceitasse o diagnóstico que ele apresenta com o habitual fatalismo de quase todas as discussões sobre este tema, fechava simplesmente a loja, deixava de fazer coisas, deixava de comentar coisas, remetia-me ao meu mundinho, a escrever as minhas coisinhas para me livrar delas e a metê-las na gaveta (o que é basicamente o que faço agora) e mais nada (o que não é o que faço agora). Mas não o aceito, por isso continuo a fazer coisas. Porquê? Porque vejo as coisas de outra forma. Eis o que eu vejo:
Vejo um movimento no âmbito da FC portuguesa como nunca houve. Com oscilações de ano para ano, naturalmente, com as suas carências, claro, mas vejo mais gente a escrever, a publicar, possivelmente até a ler (ainda que não seja muito fácil aferir este último dado com o recolhimento de demasiada gente e comentário a redes sociais mais ou menos fechadas) do que alguma vez houve. No "ano milagroso" de 1993, havia basicamente uma editora a publicar FC portuguesa, a Caminho, e o ano só foi milagroso porque quase todo o seu catálogo do ano foi ocupado por FC portuguesa; hoje há várias, ainda que algumas — ou muitas — prefiram chamar outras coisas à FC que publicam. E os números vão no mesmo sentido: no "ano milagroso" de 1993 publicaram-se cerca de 10 livros de FC portuguesa. Bem mais do que era hábito na época. Pois calha que em 2017 se publicaram 25, mesmo sendo alguns reedições e outros ebooks; em 2018 foram 32; E este ano, mesmo sendo claramente o pior dos três, ainda hão de acabar por ser à volta de uns 20. E isto contando só com os títulos recolhidos pelo Ficção Científica Literária; há de certeza mais. Não há é comparação possível.
Vejo dois livros distópicos, parentes muito próximos da FC, portanto (se não forem mesmo FC), a serem finalistas de prémios literários portugueses este ano: Ecologia, da Joana Bértholo, e Meio Homem, Metade Baleia, de José Gardeazabal. Alguma vez aconteceu? Só com o Saramago, que eu saiba.
Quanto à velha história de que a FC como género é mal vista também dava pano para muitas mangas. Dentro do fandom (dos fandoms, que isto não é coisa só nossa; até os americanos se queixam do mesmo) existe essa velha queixa de que a visão exterior sobre o género é condescendente e desrespeitosa, mas faz-se demasiado de conta de que a visão do género sobre o exterior não tende a ser igualmente condescendente e desrespeitosa. Eu percebo porquê — também me sinto atingido quando leio coisas fraquinhas de escritores ditos "sérios", com temas, abordagens e ideias que já tinham sido antes exploradas, e tantas vezes melhor, por escritores de FC. Mas a verdade é que escamotear a realidade não ajuda ninguém... nem mesmo à projeção pessoal de quem a escamoteia. A realidade é que a FC é mal vista tanto por culpa da tacanhez e ignorância alheia, o que a malta adora sublinhar, quanto da sua própria arrogância e ignorância, o que a malta faz tudo para esconder. E sim, quando eu digo "a malta" estou a incluir-me: também fui muitas vezes — e ainda sou, de vez em quando — culpado disso.
Por outro lado... com duas distopias finalistas de dois prémios literários daqueles "de prestígio", só este ano, como é? A verdade é que os "bem-pensantes" só são contra a ficção científica quando percebem que estão a ler ficção científica. Se ninguém lhes disser nada, consomem-na com gosto e ainda lambem os beiços. Quando pegam num Ensaio Sobre a Cegueira e o enchem de elogios nem lhes passa pela cabeça que estão a elogiar um romance de ficção científica social, segundo a terminologia do Asimov. Porquê? Porque só olham para o que sai do gueto ou nunca lá entrou. E é por isso que eu até percebo quem rejeita o rótulo de FC, apesar da minha abordagem ser a oposta: dar o rótulo a tudo o que seja FC, quer o seja com "pureza", quer o seja impuramente.
No que está dentro do gueto há carências? Claro que há. Falta qualidade, provavelmente — é por exemplo deprimente constatar que quase 30 anos depois da publicação original do Caçador de Brinquedos ainda não tenha aparecido ninguém a escrever "FC-de-gueto" melhor que o Barreiros... e que o próprio Barreiros não tenha evoluído por aí além desde essa época — mas como eu não acredito que a qualidade seja de geração espontânea, isto é, que seja possível a existência de uma qualidade sustentada sem que antes haja quantidade, só posso achar que vamos no caminho certo. Devagarinho, frustrantemente devagarinho, mas no caminho certo.
(Já agora, esta relação quantidade - qualidade aplica-se não só em geral mas também no particular. Quem não escreve mais que dez ou vinte páginas por ano, se tanto, só muito dificilmente conseguirá escrevê-las bem. Escrever é tanto uma arte como uma técnica e, como qualquer técnica, também depende de uma espécie de "memória muscular" — apesar de não haver metidos nisto músculos dignos de nota — mental para ser feita bem. Sem treinar, há coisas que começam a perder-se e demoram a recuperar.)
É que havendo coisas, a academia mais tarde ou mais cedo acaba por aparecer. Um académico sério (e eles existem) estuda o que existe, pelo que o que é realmente importante é as coisas existirem. Isso é a base, e é essa base que parece agora estar finalmente a começar a ser construída. Quanto mais as coisas existirem, mais dignas de nota se tornam. Quanto mais relevantes forem, também. Um dia haverá quem repare que andamos por cá... e se não houver, também, que importa? O que é que interessa mais, a aprovação da academia ou da literatura estabelecida, ou leitores?
Eu cá prefiro leitores, francamente.
Emanuel R. Marques: A Desconhecida
Comecei praticamente o ano a ler um conto em ebook do Emanuel R. Marques, e quase ao fechar o pano leio um conto do mesmo autor, agora em papel. E se não gostei particularmente do conto que li em janeiro, do que li em dezembro gostei ainda menos.
Continuamos em tom de horror. A Desconhecida (bibliografia) é um conto de fantasmas com uma pequena diferença; enquanto na maior parte de histórias de fantasmas estes são visíveis para a pessoa que assombram, ou então para toda a gente, aqui o fantasma, isto é, a desconhecida do título, é visível para todos menos para a pessoa que assombra. É um elemento positivo do conto. De resto, não tenho grandes queixas relativas à ideia ou até à maior parte da construção narrativa. São interessantes, umas e outras.
O problema é este conto estar bastante mal escrito. Há autores que precisam que lhes seja inculcada a ideia de que menos é muitas vezes mais, em particular quando não têm o domínio sobre a língua portuguesa que é indispensável para se fazer bem certas coisas. Não há nisso nenhuma desgraça; esse domínio é algo que se adquire. Mas leva tempo. Tempo, muita leitura e muito texto escrito, em especial mas talvez não exclusivamente na língua em que se trabalha, tanto a leitura quanto a escrita. É por isso que é tão útil escrever em blogues, por exemplo: obrigam a uma assiduidade no trabalho com a língua que outras formas de produção de texto podem tender a descurar. Mas divago.
O que interessa é que por estar tão mal escrito este conto de fantasmas acaba por se tornar bastante mais fraco do que poderia ser. Tinha potencial para muito, muito mais.
Textos anteriores deste livro:
Continuamos em tom de horror. A Desconhecida (bibliografia) é um conto de fantasmas com uma pequena diferença; enquanto na maior parte de histórias de fantasmas estes são visíveis para a pessoa que assombram, ou então para toda a gente, aqui o fantasma, isto é, a desconhecida do título, é visível para todos menos para a pessoa que assombra. É um elemento positivo do conto. De resto, não tenho grandes queixas relativas à ideia ou até à maior parte da construção narrativa. São interessantes, umas e outras.
O problema é este conto estar bastante mal escrito. Há autores que precisam que lhes seja inculcada a ideia de que menos é muitas vezes mais, em particular quando não têm o domínio sobre a língua portuguesa que é indispensável para se fazer bem certas coisas. Não há nisso nenhuma desgraça; esse domínio é algo que se adquire. Mas leva tempo. Tempo, muita leitura e muito texto escrito, em especial mas talvez não exclusivamente na língua em que se trabalha, tanto a leitura quanto a escrita. É por isso que é tão útil escrever em blogues, por exemplo: obrigam a uma assiduidade no trabalho com a língua que outras formas de produção de texto podem tender a descurar. Mas divago.
O que interessa é que por estar tão mal escrito este conto de fantasmas acaba por se tornar bastante mais fraco do que poderia ser. Tinha potencial para muito, muito mais.
Textos anteriores deste livro:
terça-feira, 10 de dezembro de 2019
Ray Bradbury: A Segadeira
Na literatura, inclusivamente naquela que gosta de se apresentar como a mais original, é pouco o que realmente se cria. As ideias, muitas vezes as mesmas sofrem múltiplas variações e recombinações e/ou são executadas de formas distintas por autores distintos. Há quem julgue que isso é plágio, mas não é. Não há plágio de ideias ou de conceitos; só a execução dessas ideias e conceitos é plagiável. Tudo o resto é intrínseco aos intercâmbios culturais que fazem parte do desenvolvimento de qualquer cultura, e é muito frequente que uma dada ideia surja em múltiplos momentos e sob múltiplas formas sem que sequer haja qualquer espécie de fecundação cruzada entre os criadores. Qualquer criador que seja honesto consigo próprio (e já para não falar dos outros) sabe que já teve ideias que veio a encontrar mais tarde em obras de outras pessoas, já teve ideias que só depois de as ter (às vezes muito depois das ter) compreende que nascem de sementes plantadas anos ou décadas antes por qualquer obra experimentada e depois esquecida, pelo menos na aparência, e muitos sabem também que já reutilizaram com plena consciência esta ou aquela ideia alheia.
Pois bem, não sei se Saramago leu ou não Ray Bradbury e, se leu, se terá ou não lido este conto. Podemos ter aqui contaminação de ideias, e igualmente podemos ter o desenvolvimento independente de uma ideia semelhante. Mas o que é facto é que este A Segadeira (bibliografia) tem elementos importantes em comum com um dos romances tardios de Saramago: As Intermitências da Morte.
Com efeito, também aqui temos a figura da Morte, que a páginas tantas se rebela. Não da mesma forma, no entanto. Talvez até se possa dizer que da forma oposta: enquanto a Morte de Saramago se rebela por amor, a morte de Bradbury fá-lo por desgosto. Também a morte é diferente, sendo a de Saramago a figura tradicional da Morte, nada mais sendo a de Bradbury que um pobre diabo que um certo e fatídico dia vai dar a uma quinta no oeste dos EUA, no meio, aparentemente, do período de fome generalizada que se seguiu ao Dust Bowl, nos anos 30, e onde encontra comida, uma seara pronta para ser colhida, um homem deitado na cama, morto, e um papel onde este transfere a propriedade da quinta para aquele que o encontrasse e a quisesse.
O conto segue depois o processo de descoberta por parte do homem das estranhas características daquelas espigas e do que elas realmente significam. E as consequências que tem essa descoberta, tanto para ele quanto para o mundo cá fora. É um conto muito bom, este; mais um dos grandes contos de Bradbury.
Contos anteriores deste livro:
Pois bem, não sei se Saramago leu ou não Ray Bradbury e, se leu, se terá ou não lido este conto. Podemos ter aqui contaminação de ideias, e igualmente podemos ter o desenvolvimento independente de uma ideia semelhante. Mas o que é facto é que este A Segadeira (bibliografia) tem elementos importantes em comum com um dos romances tardios de Saramago: As Intermitências da Morte.
Com efeito, também aqui temos a figura da Morte, que a páginas tantas se rebela. Não da mesma forma, no entanto. Talvez até se possa dizer que da forma oposta: enquanto a Morte de Saramago se rebela por amor, a morte de Bradbury fá-lo por desgosto. Também a morte é diferente, sendo a de Saramago a figura tradicional da Morte, nada mais sendo a de Bradbury que um pobre diabo que um certo e fatídico dia vai dar a uma quinta no oeste dos EUA, no meio, aparentemente, do período de fome generalizada que se seguiu ao Dust Bowl, nos anos 30, e onde encontra comida, uma seara pronta para ser colhida, um homem deitado na cama, morto, e um papel onde este transfere a propriedade da quinta para aquele que o encontrasse e a quisesse.
O conto segue depois o processo de descoberta por parte do homem das estranhas características daquelas espigas e do que elas realmente significam. E as consequências que tem essa descoberta, tanto para ele quanto para o mundo cá fora. É um conto muito bom, este; mais um dos grandes contos de Bradbury.
Contos anteriores deste livro:
segunda-feira, 9 de dezembro de 2019
Em novembro falou-se de...
Francamente positivo, este mês de novembro, tanto no que toca às leituras de FC portuguesa, quanto no que toca (ou sobretudo no que toca) às de FC brasileira. Mas antes, vamos à conversa habitual dedicada àqueles que encontram pela primeira vez um post destes.
O que é isto, perguntam? Está explicado aqui. É o primeiro destes posts, e aí também se explica de onde vêm os dados, que limitações têm e o que se pretende com estas listas.
Listas, interrogam-se? Sim, que são já muitas e provavelmente virão a ser ainda mais. Todos os posts destes são reunidos pela etiqueta leituras fc, e se por acaso cá caírem depois de começar 2020 é praticamente certo que encontrarão não só as que ficaram para trás como aquelas que eu ainda não escrevi no momento em que aqui desenho estas linhas. E, claro, há estas que estão aqui por baixo.
Vamos então a elas, não sem que antes vos diga que no fim deste post haverá alguns comentários sobre o que aqui fica listado.
Ficção portuguesa:
Quanto aos brasileiros, esses deram cabo de todos os recordes. 32 títulos ao todo, e nenhum é conto. É obra. Não sei ao certo (teria de ir ver e não estou com paciência), mas creio que este mês de novembro de 2019 é de longe aquele com leituras e comentários mais abundantes na FC brasileira. Tenho memória de um mês com mais de 20, mas nunca chegou aos 30. Já para não falar dos autores mencionados mais que uma vez, com destaque para Felipe Castilho (5 menções), Day Fernandes (3 menções distribuídas por dois títulos), Clovis Nicacio (4 menções) e Fausto Luciano Panicacci (6 menções), ainda que estes dois últimos devam mais agradecimentos ao marketing do que a menções "orgânicas". Suspeito que se passarão muitos meses até voltarmos a números destes.
E se é verdade que costuma acontecer que sempre que a leitura de obras lusófonas cresce a de obras traduzidas (ou na língua original) diminui, não foi isso o que aconteceu no mês passado. Com efeito, não só o número total de títulos, 88, é superior ao do mês anterior, como uma só obra foi alvo de 13 comentários, nada mais, nada menos. Coube a proeza a Stephen King, que ainda teve direito a mais um comentário a outra obra, esta escrita em colaboração. Além dele, os nomes que se destacam das leituras de novembro são Isaac Asimov, com 4 comentários distribuídos por 2 títulos, Max Brallier, também com 4 comentários mas apenas a um título, Octavia E. Butler, ainda com 4 comentários, de novo distribuídos por 2 títulos, Philip K. Dick, com 3 comentários a outros tantos títulos escritos só por ele e um 4ª a outra obra escrita em colaboração, Ursula K. Le Guin, mais uma vez com 4 comentários distribuídos por 2 títulos, e por fim H. P. Lovecraft, com 5 comentários distribuídos por 3 títulos.
E assim termina o último apanhado mensal das leituras lusófonas de FC deste ano de 2019. O próximo só chegará em 2020. Estes apanhados despedem-se até para o ano, portanto, mas eu ainda estou longe de o fazer. Até.
O que é isto, perguntam? Está explicado aqui. É o primeiro destes posts, e aí também se explica de onde vêm os dados, que limitações têm e o que se pretende com estas listas.
Listas, interrogam-se? Sim, que são já muitas e provavelmente virão a ser ainda mais. Todos os posts destes são reunidos pela etiqueta leituras fc, e se por acaso cá caírem depois de começar 2020 é praticamente certo que encontrarão não só as que ficaram para trás como aquelas que eu ainda não escrevi no momento em que aqui desenho estas linhas. E, claro, há estas que estão aqui por baixo.
Vamos então a elas, não sem que antes vos diga que no fim deste post haverá alguns comentários sobre o que aqui fica listado.
Ficção portuguesa:
- Almanaque Steampunk 2019, org. ??
- Aquilo, de Pedro Afonso (conto)
- O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias, de João Barreiros (2x)
- Terrarium, de João Barreiros e Luís Filipe Silva
- Uma Manhã em Lisboa, de Nuno Fonseca (conto)
- A Anos-Luz, de Carmen Garcia
- Facelist, de Paulo Kellerman (conto)
- Reconversão de Excedentes, de Telmo Marçal (conto)
- 7 Contos Ilustr.s, org. Fernando Esteves Pinto
- O Cão, de Isabel Cristina Pires (conto)
- Imortal, de José Rodrigues dos Santos
- Ensayo Sobre la Ceguera, de José Saramago
- Na Crista da Onda, de Luís Filipe Silva (conto)
- Histórias (Mais ou Menos) Assustadoras, org. ??
- O Primeiro Imortal, de Rodrigo N. Alvarez
- Amália Atrás de Amália, de Marco Aqueiva
- Jogos de Guerra, de J. M. Beraldo
- A Melhor Idade, de C. Nan Bianchi (2x)
- Asilo nas Torres, de Ruth Bueno
- Sob o Trópico de Capricórnio, de Pedro Carcereri
- O Jogo dos Sonhos, de Pedro Carvalho
- Serpentário, de Felipe Castilho (5x)
- Mestre das Marés, de Roberto de Sousa Causo
- As Pirâmides Revolucionárias, de Thunder Dellú
- A Eva Mecânica e Outras Histórias de Ginoides, de Daniel I. Dutra
- Colonização, de Day Fernandes (2x)
- Mundo Sombrio, de Day Fernandes
- A Era de Aquária, org. Coletivo Kriptocaipora
- Labirinto Digital, de Mario Kuperman
- Sete Faces da Ficção Espacial, org. Marcia Kupstas
- Operação Meleca Mutante, de Angélica Lopes
- Assim na Terra como Embaixo da Terra, de Ana Paula Maia
- As Cinco Esposas de Nathan, de Clovis Nicacio (4x)
- O Silêncio dos Livros, de Fausto Luciano Panicacci (6x)
- Possessão Alienígena, org. Ademir Pascale
- A Sorte dos Girinos, de Carlos Patati
- O Fruto Maduro da Civilização / O Éter Inconsútil, de Ivan Carlos Regina
- Estranha Bahia, org. Ricardo Santos, Rochett Tavares e Alec Silva
- Contos Reversos, de Romy Schinzare (2x)
- A Torre Acima do Véu, de Roberta Spindler
- A Alcova da Morte, de Enéias Tavares, Nikelen Witter e A. Z. Cordenonsi
- A Morte e o Meteoro, de Joca Reiners Terron (2x)
- As Águas-Vivas não Sabem de Si, de Aline Valek
- Viajantes do Abismo, de Nikelen Witter
- WOW! O Primeiro Contato, de Pablo Zorzi
- Histórias de Fantasmas, org. ??
- Mundos Apocalípticos, org. John Joseph Adams
- O Poder, de Naomi Alderman
- Meg, de Steve Alten
- Fundação, Isaac Asimov
- O Fim da Eternidade, de Isaac Asimov (3x)
- Ponha o Pino A no Furo B, de Isaac Asimov (conto)
- Os Testamentos, de Margaret Atwood
- Declínio, de Jay Bonansinga
- Invasão, de Jay Bonansinga
- Raízes do Mal, de Gwenda Bond (2x)
- Os Passageiros do Tempo, de Alexandra Bracken
- Os Viajantes, de Alexandra Bracken
- Farenheit 451, de Ray Bradbury
- 4 Contra o Apocalipse, de Max Brallier (4x)
- Kindred, de Octavia E. Butler
- Ritos de Passagem, de Octavia E. Butler (3x)
- Sons da Fala, de Octavia E. Butler (conto)
- A Invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares
- Richter 10, de Arthur C. Clarke e Mike McQuay
- A Esperança, de Suzanne Collins
- Jurassic Park, de Michael Crichton
- A Cidade dos Espelhos, de Justin Cronin
- Recursão, de Blake Crouch
- A Máquina Preservadora, de Philip K. Dick
- Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick
- O Homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick
- Deus da Fúria, de Philip K. Dick e Roger Zelazny
- Man After Man, de Dougal Dixon
- Alongamento Vestigial das Vértebras Caudais, de L. Timmel Duchamp (conto)
- Angry Candy, de Harlan Ellison
- O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry
- The World of Tiers, de Philip José Farmer
- A Libélula no Âmbar, de Diana Gabaldon
- Os Escravos da Górgona, de Curtis Garland
- Transformation, de Silviu Genescu (conto)
- Neuromancer, de William Gibson
- Metro 2033, de Dmitry Glukhovsky
- Crianças do Éden, de Joey Graceffa
- A Curva do Sonho, de Ursula K. Le Guin
- A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin (3x)
- Serotonina, de Michel Houellebecq
- À Beira da Eternidade, de Melissa E. Hurst
- O Céu de Pedra, de N. K. Jemisin
- Farewell Horizontal, de K. W. Jeter
- Illuminae, de Amie Kaufman e Jay Kristoff
- Flores para Algernon, de Daniel Keyes
- O Instituto, de Stephen King (13x)
- Belas Adormecidas, de Stephen King e Owen King
- A Ascensão do Governador, de Robert Kirkman e Jay Bonansinga
- A Queda do Governador, de Robert Kirkman e Jay Bonansinga
- Contágio, de David Koepp
- A Balada do Black Tom, de Victor Lavalle (2x)
- O Ano da Graça, de Kim Liggett
- A Cor que Caiu do Céu, de H. P. Lovecraft
- Medo Clássico, vol. 1, de H. P. Lovecraft
- O Despertar de Cthulhu, de H. P. Lovecraft (3x)
- Ladra de Almas, de Sarah J. Maas
- Liberta-me, de Tahereh Mafi
- Inspeção, de Josh Malerman (2x)
- O Começo, org. George R. R. Martin
- A Estrada, de Cormac McCarthy
- Odyssey, de Jack McDevitt
- Máquinas como Eu, de Ian McEwan (2x)
- Um Cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller, Jr.
- Carbono Alterado, de Richard Morgan
- A Mulher do Viajante no Tempo, de Audrey Nieffenegger
- Quem Teme a Morte, de Nnedi Okorafor
- Starters, de Lissa Price
- A Chave Maldita, de James Rollins
- Em Tempos Havia os Bois..., de Charles W. Runyon (conto)
- História Verdadeira, de Luciano de Samóstata
- Seres Mágicos & Histórias Sombrias, org. Al Sarrantonio e Neil Gaiman
- Mindscan, de Robert J. Sawyer
- A Última Colônia, de John Scalzi
- Vilão, de V. E. Schwab
- Between the Strokes of Night, de Charles Sheffield
- Sight of Proteus, de Charles Sheffield
- Aniquilação, de Jeff VanderMeer
- Assimilação de Tian Shan-Góbi, de Jeff VanderMeer (conto)
- Através do Vazio, de S. K. Vaughn
- À Volta da Lua, de Jules Verne
- A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells (2x)
- Impostores, de Scott Westerfeld (2x)
- A Estrada Subterrânea, de Colson Whitehead
- Ascensão da Força Sombria, de Timothy Zahn
- Knight of Shadows, de Roger Zelazny
- As Horas Vermelhas, de Leni Zumas
- Atmosfera Rarefeita, de Alfredo Suppia
- A Arte do Cinema: Star Wars, de anónimo
- Monstros Fabulosos, de Alberto Manguel (2x)
- Un Mundo Robot, de Javier Serrano
- Stranger Fans, de Joseph Vogel
- The Infinite Future, de Tim Wirkus
Quanto aos brasileiros, esses deram cabo de todos os recordes. 32 títulos ao todo, e nenhum é conto. É obra. Não sei ao certo (teria de ir ver e não estou com paciência), mas creio que este mês de novembro de 2019 é de longe aquele com leituras e comentários mais abundantes na FC brasileira. Tenho memória de um mês com mais de 20, mas nunca chegou aos 30. Já para não falar dos autores mencionados mais que uma vez, com destaque para Felipe Castilho (5 menções), Day Fernandes (3 menções distribuídas por dois títulos), Clovis Nicacio (4 menções) e Fausto Luciano Panicacci (6 menções), ainda que estes dois últimos devam mais agradecimentos ao marketing do que a menções "orgânicas". Suspeito que se passarão muitos meses até voltarmos a números destes.
E se é verdade que costuma acontecer que sempre que a leitura de obras lusófonas cresce a de obras traduzidas (ou na língua original) diminui, não foi isso o que aconteceu no mês passado. Com efeito, não só o número total de títulos, 88, é superior ao do mês anterior, como uma só obra foi alvo de 13 comentários, nada mais, nada menos. Coube a proeza a Stephen King, que ainda teve direito a mais um comentário a outra obra, esta escrita em colaboração. Além dele, os nomes que se destacam das leituras de novembro são Isaac Asimov, com 4 comentários distribuídos por 2 títulos, Max Brallier, também com 4 comentários mas apenas a um título, Octavia E. Butler, ainda com 4 comentários, de novo distribuídos por 2 títulos, Philip K. Dick, com 3 comentários a outros tantos títulos escritos só por ele e um 4ª a outra obra escrita em colaboração, Ursula K. Le Guin, mais uma vez com 4 comentários distribuídos por 2 títulos, e por fim H. P. Lovecraft, com 5 comentários distribuídos por 3 títulos.
E assim termina o último apanhado mensal das leituras lusófonas de FC deste ano de 2019. O próximo só chegará em 2020. Estes apanhados despedem-se até para o ano, portanto, mas eu ainda estou longe de o fazer. Até.
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