quinta-feira, 30 de setembro de 2004

E o pior de tudo...

E o pior de tudo é que nem sequer podemos mandá-los roubar prá estrada!

Sobre ladrões e ladroices

Se a cleptocracia que nos assalta quotidianamente não tem dinheiro disponível em quantidade suficiente para pagar as reformas milionárias de gatunos incompetentes, não há qualquer problema: transformam-se vias rápidas em auto-estradas e cobra-se portagens aos papalvos que são obrigados a passar por elas todos os dias.

E há qualquer problema: a massa de imbecis que vota nos ladrões em todas as eleições vai continuar a votar. Afinal, para a maioria desses atrasados mentais o grande sonho de vida não é que os cleptocratas desapareçam e deixem em paz os cidadãos desta terra: é passarem, eles próprios, a fazer parte do bando.

terça-feira, 28 de setembro de 2004

Os livros que estão ali ao lado

Agora sem setinha, que vocês já sabem onde fica o "ali ao lado", eis o que há de novo e de velho nos livros que ando a ler. Desde a última vez, acabei a colectânea do Mário-Henrique Leiria Casos de Direito Galáctico (um livrinho de FC surrealista decididamente delicioso. Altamente recomendável) e o número 8 da revista Em Cena (parece-me que é consensual que este foi o melhor número de Em Cena até à data, e eu, ao menos neste caso, estou de acordo com os consensos). Para substituir estes dois títulos, chegaram:

- Um Vulto nas Trevas, de Simone Saueressig, é uma ficção juvenil onde tem relevo um casarão assombrado. Edição da autora, que pretende prosseguir com a edição destas pequenas ficções numa colecção própria (2004), 77 páginas.
- A Viagem, editada por Silvana Moreira e António de Macedo, é a última das antologias bilingues de FC&F, lançadas pela Simetria por ocasião dos encontros de Cascais. São 11 contos de outros tantos autores, em português e em inglês. Edição da Simetria (2000), 164 páginas na parte portuguesa.

sábado, 25 de setembro de 2004

Mais uma coisa que eu gostei de ler

Foi esta. Es-pe-cta-cu-lar! E tu? Votas no Hugo ou não votas?

quinta-feira, 23 de setembro de 2004

Outra coisa que eu gostei de ler

Foi esta. Uma belíssima peça de sarcasmo, para a compreensão plena da qual se aconselha a leitura (prévia ou póstuma) do post anterior.

E viva a RTP-M!

Sobre "Relatório de Activos do Sistema de Epsilon Indi"

OK, este spam fiction tem muito de que falar. Para começar, não é um conto: é uma carta comercial ficcionada. Este tipo de experiências não costuma resultar particularmente bem quando isoladas, mas integram-se muitas vezes perfeitamente em trabalhos mais longos. Esta não é excepção quanto à primeira parte (penso eu de que), e quanto à segunda, é possível que acabe por ser esse o seu destino.

Depois, que raio vem a ser Epsilon Indi? Trata-se de uma estrela anã laranja, uma das estrelas que ficam mais perto do Sistema Solar, a apenas 11,8 anos-luz de distância. Já se lhe conhecem dois companheiros substelares que, no entanto, não são planetas: são anãs castanhas. Aqui, ganha não só mais alguns planetas mas vida indígena e uma exploração comercial terrestre que obedece a todas as regras do capitalismo ultraliberal.

Depois, que é isso do "ansible"? O ansible é um aparelho "inventado" pela escritora americana Ursula LeGuin numa série de romances de FC, que permite a comunicação instantânea em distâncias interstelares. Partindo do pressuposto de que a matéria se pode reduzir a um estado especial de informação, eu tomo algumas liberdades com o venerável aparelho da não menos venerável Ursula, utilizando-o como um meio de transporte.

Quanto ao resto, acho que ou é compreensível pelo contexto, ou não interessa particularmente saber-se o que é.

Spam fiction (9)

Relatório de Activos do Sistema de Epsilon Indi


Baseado num spam intitulado "Stellar Stock Report"


De: Companhia Import-Export Ansibilina (CIEA), delegação de Epsilon Indi
Para: Sociedade Interestelar de Exploração e Transporte
Assunto: Relatório de Activos do Sistema de Epsilon Indi e Expectativas de Crescimento Futuro
REF: Comunicação Ansible nº 45552 - R - 77231 SIET



Em resposta à vossa solicitação datada de 235/2331, Calendário Padrão Universal, temos a informar o seguinte:

O relatório de activos armazenados nos porões do terminal Ansible do sistema de Epsilon Indi, em situação de pré-trânsito para o sistema Sol é o seguinte:

- Trinta e duas toneladas de bulbos optico-faríngicos de quimera-prateada em estado de preservação criogénica, com prazos de validade variáveis entre 21/2332 e 180/2335 CPU;
- Três gemas azuis de grandes dimensões, totalizando setecentas e vinte e quatro toneladas;
- O Circuito Central de Reprogramação de um robot exploratório Mitsudai. Este item tem reservada passagem de ida e volta;
- Oitenta e cinco painéis de dados pessoais, de peso padrão;
- Sete painéis de dados pessoais com protecção tipo 1 (metapersonalidades) de peso padrão;
- Cento e noventa e nove painéis de dados administrativos de peso padrão;
- Vinte e quatro painéis de dados científico-técnicos de peso padrão;
- Dois contentores com carga classificada, à responsabilidade da Central Interestelar de Alimentação. Os contentores são propriedade da CIEA e têm também reservadas passagens de ida e volta. Têm ainda restrições ao manuseio de tipo 2. O peso total é de duas toneladas e meia;
- Dois exemplares de Heptapedia indiea em hibernação induzida, armazenados em dois Recipientes de Bioamostragem EI 2 com respectivos sistemas de apoio de vida, cápsulas de emergência e técnicos agregados. Os técnicos agregados, em número de quatro e de espécie humano-terrestre, encontram-se em estado de armazenamento para fins de inventário e optimização de carga, mas na realidade estão sujeitos ao sistema-padrão de prontidão de 100 impulsos. Levando em conta a carga pessoal dos técnicos agregados, este item totaliza sete toneladas;
- Duzentos e quarenta e três carregamentos-padrão de biopetróleo;

Mais se informa que é expectável que a quantidade de activos em situação de espera nos porões do terminal Ansible de Epsilon Indi sofra um aumento de 5,8% durante o próximo ano-padrão (4,9% em volume e 6,4% em massa), o que causa preocupações quanto à logística futura do armazenamento, tendo em conta que, segundo o relatório nº 23/2331 SIET, os porões se encontram com 87% da sua capacidade ocupada e os nossos concorrentes, segundo dados do mercado, prevêm taxas de crescimento semelhantes às nossas.
Tem-se entretanto assistido a algumas situações que nos causam preocupação, nomeadamente nas prioridades atribuídas aos produtos perecíveis. Chegou ao conhecimento da nossa empresa que um grifo-de-membranas, propriedade da Indianacom, foi transmitido a 211/2331 CPU, dia em que o transmissor estava em manutenção, de acordo com a comunicação Ansible nº 43687 - T - 12596 SIET, que nos dava conta do adiamento sine die da transmissão de uma remessa dos nossos bulbos de quimera-prateada, transmissão essa já devidamente paga através dos canais oficiais. Há rumores não confirmados de outras situações do mesmo género envolvendo não só a Indianacom, mas também a Intersol e a Companhia de Desenvolvimento das Anãs Vermelhas. Ao certo sabemos que o número de impulsos em que o terminal de Epsilon Indi esteve oficialmente encerrado devido a problemas técnicos subiu 10,2% este ano, o que é um valor muito elevado em condições normais de operacionalidade.
Gostaríamos de solicitar a máxima atenção e o máximo cuidado com este tipo de situação, visto que a fiscalização se tem revelado permeável. Lembramos que temos sido desde sempre o principal cliente da SIET, e faremos todos os possíveis para manter essa condição, no respeito escrupuloso, claro está, das leis da concentração empresarial. Para tal contamos com a vossa compreensão e solicitamos a transmissão prioritária, de preferência durante os próximos três dias, dos Heptapedia que se encontram em armazém. Um prémio de boa vontade já se encontra, para o efeito, depositado na vossa conta no off-shore do Habitat Lagrange Vénus-2.
Caso nos seja fornecida uma compensação adequada para os prejuízos decorrentes do caso Indianacom, estamos preparados para fornecer um novo prémio de igual valor, a depositar noutra das vossas contas off-shore. Sabemos da existência, nos armazéns de Epsilon Indi, de um contentor funerário em más condições, pertencente à Indianacom, cujo nível de prioridade é urgente. Sem querer sugerir um adiamento, por respeito à dor da família, sem queremos contribuir para a degradação da imagem da Indianacom junto dos seus clientes, por uma questão de lealdade comercial, e no respeito absoluto pelo princípio do tempo de espera para prioridades iguais, gostaríamos, todavia, de ver pelo menos duas das nossas gemas azuis, que já estão em depósito há bastante tempo, tratadas com o mesmo nível de prioridade do contentor da Indianacom.
Sem mais de momento, e na esperança da continuação de uma relação comercial que vem sendo mutuamente benéfica, subscrevo-me,
Nicolao Han
director-executivo da CIEA, delegação de Epsilon Indi

terça-feira, 21 de setembro de 2004

A monumental gargalhada

A ministra (hahahaha) da educação (hehehehe) convocou a imprensa para produzir esclarecimentos (hihihihi) sobre o caso dos atrasos no concurso (huhuhuhu) de colocação (hahahaha) dos professores. Directo após directo, as televisões esperaram... e a ministra não apareceu. Atrasou-se...

Acho que desta vez até os professores se riram à gargalhada. Até os que ainda estão à espera dos resultados, os que já devem estar a roer os cotovelos de ansiedade, os que têm a vida no arame por causa de tamanha incompetência. Até esses devem ter ficado agarrados às barrigas respectivas de tanto rir.

Sempre se salva alguma coisa.

segunda-feira, 20 de setembro de 2004

Testicles on Waives

Bute lá disparatar um bocadinho, com mais uma coisa que recebi via email (erros de português incluídos no pacote - não tive paciência para correcções)...

O barco tripulado pela organização portuguesa Testicles On Waives abandonou hoje a sua missão na Holanda. Tendo chegado, uma semana antes, ao limite das águas territoriais Holandesas, este grupo de homens portugueses pretendia libertar as mulheres holandesas, sendo que neste pais elas engravidam muito pouco e existe um enorme número de lésbicas. O presidente da organização, Zézé Camarinha, falara-nos da sua missão "Epá, eu adoro lésbicas... daa-se, quem é que não adora? Mas agora, desde que um gajo depois possa entrar no meio, duas mulas suecas aos pinotes e estes frouxos não entram na brincadeira? É uma vergonha pá, é o terceiro mundo. Isto lá na pátria não é assim".
O governo holandês não permitiu a entrada do barco nas suas águas territoriais, alegando que havia intenção copulatória por parte dos seus tripulantes, usando como prova o elevado nível de testosterona, evidente na cobertura em pêlo do calcanhar até aos ombros de todos os tripulantes. O Ministro da Defesa enviou mesmo uma fragata para defender o direito das mulheres holandesas ao lesbianismo. Após uma semana de intensa polémica, Zézé Camarinha, bem como os restantes membros dos Testicles on Waives, mostravam-se conformados. "Epá, que posso fazer?" perguntava Zézé "Já deixámos no nosso site informações sobre em que praias do Algarve as holandesas podem vir arranjar um macho latino. Temos pena que a deslesbianização seja criminalizada neste país. È o terceiro mundo, que mais posso dizer. Lá na praia da Rocha nenhuma lésbica dura mais de dez minutos...heh, ai não, que não...!"


Isto fez-me lembrar o defunto MacJête, não sei bem porquê...

Quarenta mil

Hoje, a Lâmpada amanheceu com o sitemeter a dar conta de um total de quarenta mil visitas desde que foi instalado em Maio do ano passado. É uma cidade média. A todos, espero que tenham gostado da visita, mesmo que saiba perfeitamente que o terço que cá chegou à procura de uns minutos de masturbação com fotografias da Carla se foi embora muito desapontado.

Foi também hoje que acabou a ligação da Lâmpada ao Enetation. A partir de agora há só um sistema de comentários, e todos os antigos desapareceram, puf. A intangibilidade dos blogues é assim.

domingo, 19 de setembro de 2004

Impostos

Há dias recebi uma mensagem por email, sem informação sobre a sua autoria, que não resisto a reproduzir aqui:

Em cada 100 EUR que o patrão paga pela minha força de trabalho, o Estado, e muito bem, tira-me 20 EUR para o IRS e 11 EUR para a Segurança Social.
O meu patrão, por cada 100 EUR que paga pela minha força de trabalho, é obrigado a dar ao Estado, e muito bem, mais 23,75 EUR para a Segurança Social.
E por cada 100 EUR de riqueza que eu produzo, o Estado, e muito bem, retira ao meu patrão outros 33 EUR.
Cada vez que eu, no supermercado, gasto os 100 EUR que o meu patrão pagou, o Estado, e muito bem, fica com 19 EUR para si.

Em resumo:
- Quando ganho 100 EUR, o Estado fica quase com 55;
- Quando gasto 100 EUR, o Estado, no mínimo, cobra 19;
- Quando lucro 100 EUR, o Estado enriquece 33;
- Quando compro um carro, uma casa, herdo um quadro, registo os meus negócios ou peço uma certidão, o Estado, e muito bem, fica com quase metade das verbas envolvidas no caso.

Eu pago e acho muito bem, portanto exijo:
- Um sistema de ensino que garanta cultura, civismo e futuro emprego para o meu filho;
- Serviços de saúde exemplares. Um hospital bem equipado a menos de 20 km da minha casa;
- Estradas largas, sem buracos e bem sinalizadas em todo o País;
- Auto-estradas sem portagens;
- Pontes que não caiam;
- Tribunais Com capacidade para decidir processos em menos de um ano;
- Uma máquina fiscal que cobre equitativamente os impostos.

Eu pago, e por isso quero ter:
- Quando lá chegar, a reforma garantida;
- Jardins públicos e espaços verdes bem tratados e seguros;
- Polícia eficiente e equipada;
- Os monumentos do meu País bem conservados e abertos ao público, uma orquestra sinfónica;
- Filmes criados em Portugal;
- E, no mínimo, que não haja um único caso de fome e miséria nesta terra.

Na pior das hipóteses, cada 300 EUR em circulação em Portugal garantem ao Estado 100 EUR de receita.
Portanto Sr. Primeiro-ministro, governe-se com o dinheirinho que lhe dou porque eu quero e tenho direito a tudo isto.

Um português contribuinte.

quinta-feira, 16 de setembro de 2004

Mais uma coisa que gostei de ler

Foi esta. Mas mais do que ter gostado de ler este texto o que realmente importa foi o que gostei de relembrar uma magnífica canção do Rui Veloso, esquecida num dos seus álbuns, e que sempre me fascinou pela maneira como foge dos padrões habituais das canções e pela maneira como a música se adapta ao texto.

A vida também é feita destes nadas.

Outra coisa que gostei de ler

E desta devo dizer que gostei mesmo muito. Aliás, a verdade verdadinha é que se eu fosse editor este blog era um grande candidato a passar ao estado-papel. Não sei se o Pedro vai mandar coisas ao Luís, mas sinceramente espero que o faça.

terça-feira, 14 de setembro de 2004

Coisas que gostei de ler

De vez em quando há coisas que um tipo gosta de ler nas viagens pela blogosfera. Mas normalmente são pequenos prazeres egoístas que se têm em solitário e não se transmitem a ninguém. É má onda. Se a blogosfera permite fazer links, mais vale que eles se façam. E eu acho que vou passar a fazê-los.

Pois eu cá gostei de ler isto.

Resposta à pergunta feita ao meu umbigo

Logo vi que os gajos tinham a dizer qualquer coisa sobre o tal assunto...

segunda-feira, 13 de setembro de 2004

Uma pergunta ao meu umbigo

Pergunto ao meu umbigo (olá umbigo!) se estes gajos não terão qualquer coisa a dizer sobre isto... eu se fosse a eles, tinha. Ai tinha, tinha!...

Sobre "Caio"

A oitava (ou sexta) Spam Fiction é também a mais curta até agora, mas tem umas coisinhas a comentar, nomeadamente sobre o atravessa-rua. A história do atravessa-rua começa há muitos anos, quando eu andava na escola secundária, no princípio do caminho que iria levar ao 12º ano. O livro de português desse ano foi o mais divertido do meu percurso escolar, porque parte do programa tinha a ver com a aprendizagem da capacidade de reconhecer diferentes tipos de texto e havia lá de tudo: contos e extractos em prosa, poemas, letras de canções, artigos de jornal, e até BDs.

Uma das BDs era uma coisa curta e divertida, na qual uns tipinhos azuis, obviamente extraterrestres, tinham uma maneira curiosa de atravessar a rua: subiam até ao telhado dos edifícios onde estava um revólver gigante, calçavam uns sapatos com ventosas, subiam para o revólver, metiam-se numa câmara vazia, esperavam pela sua vez e PUM! lá iam eles.

Ao escrever este pequeno conto, essa BD veio-me à memória, por qualquer motivo, e daí até recauchutar o aparelhómetro foi um pequeno passo.

Spam fiction (8)

Caio


Baseado num spam intitulado "Try again.........."


Caio está de novo no apartamento. Caio abre a porta para a rua com violência (blã!). Caio sai. Caio corre pela calçada neoclássica o mais rápido que consegue (tump-tump-tump-tump-tump-tump). Caio chega ao atravessa-rua. Caio entra no atravessa-rua e fecha a porta com violência (cltung!). Caio é soprado para o outro lado da rua (fuuch!) respirando com difuculdade. Caio cai do atravessa-rua já a correr. Caio corre, calçada fora o mais rápido que consegue. Enquanto corre, caio só tem um pensamento (mais rápido! Tenho de ser mais rápido! Tenho de ser). Caio chega à escadaria. Caio sobe as escadas quatro a quatro. Caio chega ao topo exausto (auch!) sem saber como conseguiu. Caio tem de parar dois segundos porque o coração parece querer saltar-lhe do peito. Mas não pode (não posso!) descansar e põe-se de novo em movimento. Caio penetra no parque, já em corrida. Caio corre pela relva o mais rápido que consegue (flut-flut-flut-flut-flut-flut). Caio esbarra contra a velha que sai de repente de trás duma árvore. Caio cai. A velha grita. Caio rebola. A velha grita e gritam as pessoas que rodeiam a velha. Caio levanta-se num salto. As pessoas no parque começam a correr atrás dele (agarra que é ladrão!). Caio é forçado a fintar uma floresta de mãos que se erguem para si (agarra que é gatuno!) e escudos pessoais que se erguem em defesa. Mas Caio corre, corre sempre. Caio penetra mais fundo no parque, deixando os perseguidores para trás. Caio já está com a cara muito vermelha do esforço e a camisa empapada de suor. Caio chega ao topo do parque. Caio desce as escadas seis a seis. Caio chega à avenida. Caio não sabe como não torceu um tornozelo vinte vezes. Caio corre pelo passeio. Caio vê-a, lá ao fundo, na paragem do jactocarro. Caio vê o assassino que se aproxima, com as mãos enfiadas nos bolsos do blusão. Caio grita (Susana!), mas ela não o escuta. Caio corre pelo passeio o mais rápido que consegue (tomp-tomp-tomp-tomp-tomp-tomp). Caio tropeça numa raiz que tenta furar o revestimento de cimento do passeio. Caio desequilibra-se e falha um passo. Caio cai (ai!) batendo com o joelho no chão. Caio levanta-se com uma faca espetada no joelho. Pelo menos é o que parece. Caio tenta correr, mas só coxeia. Caio vê o assassino que se aproxima, começando a retirar as mãos dos bolsos do blusão. Caio grita de novo (Susana!), mas ela não o ouve. Caio percebe que ela está ligada ao canal e só os olhos funcionam como interface com o mundo exterior. Caio tenta correr, mas só coxeia. Caio chega ao último (o único) cruzamento. Caio vê que o assassino já tem a arma apontada para a cabeça dela. Caio procura o atravessa-rua. Está muito longe, Caio não tem tempo. Caio tenta atirar-se a correr por entre o tráfego, mas só coxeia. Caio grita (Susana!), mas ela não repara nele. Caio é atingido pelo jactocarro. Caio pressiona o botão da máquina do tempo. O assassino dispara. Ela morre. Caio morre, atropelado.
Caio está de novo no apartamento.

Chegou a guerra a Portimão!

Ah, não. Afinal é fogo de artifício. Ganda pinta! Morteiros à 1 da manhã!

domingo, 12 de setembro de 2004

Mais um spamema na Em Cena

Rima e é verdade.

Saiu há dias o número 9 da revista Em Cena, cuja capa podem ver aqui ao lado, contendo mais um dos meus spamemas, o segundo a transitar do mundo dos bits e bytes para o mundo da celulose e dos corantes. Chama-se Olhe pela janela e é um dos primeiros spamemas a sair na Lâmpada, ainda o nome genérico da coisa não tinha sido inventado. Na Em Cena, está ilustrado pela Gabriela Soares.

Desta vez, tenho como colegas de revista, na parte escrita, Luís Ene, Isa Catarina Mateus, Danylo Americano, Isaías Fanlo, Patrícia Oliveira, Dr. Sibelius, Paulo Penisga, Prudência, Yoannan, Ana Soares, Joaquim Ferreira Morgado, Mirian Tavares, Vítor Reia, "Tuxa Vairada", Luís Arenas, "D. Raquel Cócó" e Paulo Rodrigues, entre contos, poemas (ou, no meu caso, spamema), crónicas, artigos e outros textos de mais difícil identificação.

sábado, 11 de setembro de 2004

<-------- Os livros que estão ali

Os livros que estão ali ao lado mudaram muito pouco ao longo do verão, por vários motivos. Basicamente, limitei-me a acabar O Romance de Nostradamus — O Abismo, de Valerio Evangelisti (razoável, tal como os dois volumes anteriores, muito embora seja neste que o elemento fantástico mais se acentua. Mas não é um grande livro) e a Antologia do Esquecimento, do Henrique (poesia? Eu não percebo nada disso. Mas achei irregular: gostei bastante de alguns poemas, pouco de outros e não gostei de outros, valendo a minha opinião coisa nenhuma).

Para substituir estes dois livros, chegou um livro e uma revista:

- Casos de Direito Galáctico, de Mário-Henrique Leiria, é uma compilação de... bem... casos de estudo de direito galáctico, a que se acrescentam pequenas histórias sobre o inquietante mundo de Josela. Edição da Editorial República (sem data), 83 páginas.
- Em Cena, nº 8 é uma revista de artes editada pela Sociedade Recreativa Artística Farense na Primavera de 2004. São 102 páginas de contos, poemas, crónicas, artigos, etc., tudo profusamente ilustrado.

E viva a cóltura!

Estes gajos, tudo o indica, estão marafados com a (in)existência de uma coisa chamada Faro, Capital da Cultura 2004. Deixem-se disso, meus. Que se lixe a cultura. A malta quer é cóltura! Cóltura!

Além disso, quanto pior for a cena em Faro, mais gozo terá fazer uma cena melhor em Portimão, daqui a uns anos... ;)

quarta-feira, 8 de setembro de 2004

Sobre "Avaria"

Aqui está a sexta Spam Fiction (ou a quinta, dependendo do método usado para as contar). De regresso aos contos mais curtos, este é um conto que não passa de uma sucessão de mensagens deixadas num atendedor de chamadas, o que é bastante claro para quem o ler. É, além disso, a minha primeira incursão neste tipo de história, no fundo pouco mais do que uma actualização de um velho tema. O disclaimer é o de sempre: trata-se de um primeiro esboço, etc., etc.

Spam fiction (6)

Avaria


Baseado num spam intitulado "Urgent - Call me"


Por favor, telefona-me quando chegares a casa. O carro avariou. Estou aqui perdido no meio do nada e sem dinheiro para o reboque. Não sei a quem ligar. Um beijo.
Olá, sou eu outra vez. É só para te pedir que telefones ao Zé, o de Serpa, antes de me telefonares a mim. Diz-lhe que tenho o carro avariado e não vou chegar a tempo. Ele que me ligue mais tarde, se quiser. Eu telefonava-lhe, mas esqueci-me de memorizar o número aqui no telelé. Merda de cabeça a minha. Enfim... já sabes como é. Olha, não demores em chegar a casa, ok? Um beijo.
Tou? Não acredito! Ainda o atendedor? Era só para ver se não te tinhas esquecido de ver as mensagens, mas estou a ver que ainda não chegaste a casa. Bolas. Bom, olha, não tem nada a ver com nada, mas o céu está-se a pôr feio. Ainda chove. Até logo.
Bolas! Quando voltar a casa, a primeira coisa que faço é mudar essa mensagem. Onde te meteste, Joana? Preciso de ti. Telefona-me. Chau. Ah, começou a chover, e o céu está a ficar preto. Mas preto. É só isso.
Tá? Tás-me a ouvir? Tás a ouvir esta barulheira? Trovoada. Tou com o sacana do carro avariado no meio duma trovoada enorme. Não sei se saia se fique cá dentro. E não passa ninguém por aqui, parece uma estrada fantasma. Telef... (ouviste? Este ainda foi longe)... Telefona-me com urgência. Até já.
Foda-se, Joana! Atende-me essa merda, se fazes favor! Tenho de falar contigo com urgência! Com urgência! Ur-gên-ci-a! E desculpa estar a gritar, mas começou a cair granizo há bocado. Isto está muito feio. E acho que o sol se está a pôr, mas não consigo ter certeza com este tempo. Merda!
Olha, Joana, é só para te dizer que já não é preciso telefonares-me. Resolvi ligar ao 112 e eles dizem que vem uma viatura a caminho. Ah, o granizo parou entretanto. É isso.
Tou? Sou eu outra vez. A tal viatura do 112 não há meio de chegar. Se calhar é melhor telefonares na mesma. Mas onde diabo te meteste? Começo a ficar seriamente preocupado contigo, sabias? E acho que a trovoada vem de volta. Bom. É melhor poupar bateria. Até logo.
Joana, por favor telefona-me! Estou no banco de trás do carro depois de ser corrido do banco da frente por uma granizada tão grande que partiu o pára-brisas. Agora está mais calmo, mas ainda se ouvem trovões ao longe, e o céu está cheio de clarões. Estou ensopado e cheio de vidrinhos e de frio. Não estou ferido, felizmente, mas ainda apanho uma pneumonia aqui. Ninguém atende do 112, por qualquer motivo que não consigo perceber. Começo a ficar com medo, Joana. Medo. Que raio de viagem! Telefona-me.
Nada? Continuas sem chegar a casa? Raios partam! Se tivesse aqui uma lista telefónica, era agora que começava a telefonar para os hospitais. Se tivesse uma lista telefónica ou então se alguém atendesse do 112. Que país, este, em que nem os números de emergência funcionam! Porra pra isto!
Pois, já esperava. Nem sei porque continuo a tentar... olha, agora só à meia-noite.
Joana? Joana? Atende o telefone. Merda! Será que vou ter de passar a noite aqui? Olha, ao menos já não chove. Este é o último telefonema que faço, que já percebi que isto é perda de tempo. Se ainda ouvires isto hoje, até amanhã. Não! Que raio estou eu práqui a dizer? Se ainda ouvires isto hoje, telefona-me logo, por favor. O telemóvel vai ficar ligado. Até logo.
Não é nada. Precisei de ouvir uma voz humana, mesmo gravada, foi só isso. Passar uma noite sozinho no meio de coisa nenhuma é muito esquisito. A cabeça começa a pregar partidas. Amanhã logo te conto. Agora vou desligar.
Se tiveres alguma coisa ligada, a televisão ou a aparelhagem, uma coisa dessas, desliga-a. Agora escuta. Parou. Ah! Ouviste? Um som que parecem gritos ao longe? Ali está outra vez. Ouviste? Sempre gostava de saber que animal faz um som daqueles. É de pôr os cabelinhos da nuca em pé. Começa-me a parecer que não vou conseguir pregar olho a noite inteira. Ao menos parou de chover. Lá está. Ouviste? Estranhíssimo. Vou desligar.
Tou. Olha, mudei de ideias quanto à compra de um rádio para o carro. Tinhas razão: devíamos ter um. Queria só dizer-te isso. Chau.
Sim. Espero que me consigas ouvir. Estou a falar baixinho porque anda qualquer coisa lá fora. Ouço-a a remexer nos arbustos da berma da estrada. Parece... ouviste? Agora ouviste o guincho, de certeza. Tem vindo a tornar-se mais forte ao longo da última hora e agora parece que está mesmo aqui ao lado. Acho que vou sair do carro. Estou-me a sentir encurralado aqui dentro. Só consigo ver alguma coisa de jeito através do vidro partido, que os outros estão todos embaciados. Além do mais, agora não chove. Vou sair. E vou pôr o telemóvel em modo silêncio, também. Sim, é isso mesmo que eu vou fazer.
A Lua nasceu, e de vez em quando espreita entre as nuvens, como agora. Não acreditas no que eu estou a ver. Nem eu acredito. É um... acho que olhou para cá. Desligo.
Olá, Joana. Se chegares algum dia a ouvir isto, fica sabendo que te amo. Eu sei, eu sei, sempre disse que estas conversas são lamechices inúteis, mas olha, hoje deu-me para aqui. Ver certas coisas muda um bocado as perspectivas das pessoas, sabes? Ver ou sentir, que agora que aquilo se foi embora não consigo ter a certeza de não ter sido um delírio qualquer. Não sei o que será mais assustador, aquilo ser real ou não ser. Ser ou não ser, que pensamento tão original! Chiu! É aquilo outra vez. Desligo.
Bem, são quase cinco da manhã. Provavelmente vou conseguir ver a luz do dia, mas caso não consiga, aqui vai. Tenho de aproveitar enquanto ainda tenho bateria no telemóvel, agora que aquilo se foi embora, para te dizer algumas coisas. Vi esta noite uma coisa inacreditável. Um monstro. É a única palavra possível: monstro. Nem sei descrevê-lo (até porque nunca o consegui ver bem - só um vulto escuro num luar fraco). Mas é enorme. Como um cruzamento entre um dinossauro e uma rã, ou coisa do género. Enorme. Anda pelos montes soltando aquele guincho que deves ter ouvido. Nunca percebi tão bem o velho cliché de "fazer gelar o sangue" como esta noite. Passou a noite inteira dum lado para o outro (ou então eram vários, não faço ideia), e fez várias visitas ao carro. Tenho a certeza de que se não me tivesse escondido nesta moita, não estaria agora a falar para ti. Aquilo chegou até a pegar no carro e a metê-lo na boca! Acho que tem andado à minha procura, mas nunca se aproximou muito, felizmente. Acho que não ia aguentar. Ia desatar a correr, e provavelmente a coisa apanhava-me com toda a facilidade. Claro, há a hipótese de eu estar a imaginar tudo isto. Se não ouviste guincho nenhum nas gravações, é provável que seja isso mesmo que se... olha... lá está ele outra vez. Agora está longe, se calhar não ouves. Por que gritará aquilo daquela maneira? Olha... outra vez, mais alto. Deve estar a aproximar-se. Queria dizer-te... queria dizer-te qualquer coisa, mas esqueci-me. Qualquer coisa importante. Bolas! Que... lá está ele. Esta já deves ter ouvido. Deve vir fazer outra verificação ao carro. É metódico. Até quase parece inteligente, mas provavelmente não é, é só um animal. Isto não tem importância nenhuma, eu sei. Estou aqui a falar só para ver se me lembro do que te queria dizer. Não consi... olha... está mesmo mais próximo... acho que vou calar-me.
Ele viu-me! Ele viu-me! Joana, ele viu-me! Fugi e consegui esconder-me melhor noutro sítio, mas aquilo quer mesmo apanhar-me. Veio atrás de mim. Agora está a bater o terreno com todo o cuidado. É por isso que estou a segredar. Tenho tanto medo! Porra! Isto não é hora de ser cobarde, mas tenho tanto m... merda! A bateria apitou! Espero que o monstro não tenha ouvido! Espero que... isto vai... isto vai desligar a qualquer momento. Joana, desculpa-me por tudo o que de mal te possa ter f...

terça-feira, 7 de setembro de 2004

Pesquisas

O que se escreve e põe online tem consequências curiosas. Hoje, ao ver que alguém chegou à Lâmpada através de uma pesquisa no Google por "Taiwan- venda de fetos", fiquei um bom bocado estupefacto, confesso. Depois de ano e meio, muito do conteúdo dos arquivos da Lâmpada mais não é do que vaga lembrança, e tinha-me esquecido por completo deste post indignado, no qual a expressão aparece. E assim se fecha um círculo. E com este post se fechou outro. Plop.

Às vezes, a internet parece uma imensa fábrica de bolhas de sabão.

Aviso à navegação

Num dos próximos updates ao template, vou remover duma vez por todas o link para os comentários da Enetation. Serviram (mal) este blog ao longo de um ano, mas agora só servem para dificultar a navegação e atrasar o carregamento das páginas, de modo que chegou a hora de os mandar dar uma volta ao bilhar grande. Se alguém tiver algum comentário que queira guardar, é agora ou nunca.

segunda-feira, 6 de setembro de 2004

Sobre "O teu dia"

Eis o regresso anunciado da Spam Fiction, com o mais longo dos contos até agora concluídos, o que explica uma parte (pequena) do atraso. Além de vos desejar paciência para ler tudo isto no écran, ou então tinta no tinteiro da impressora, o único comentário que é mesmo necessário é dizer que este conto, muito definitivamente, não é de FC. E o resto, claro: que é um esboço, que até estar mesmo publicável precisa de repouso e depois de trabalho, patati, patata. Vocês sabem.

Spam fiction (5)

O teu dia


Baseado num spam intitulado "Your day"


Acordas com o sol a bater-te na cara. É sempre a mesma coisa, pensas, farto de levar estaladas com mãos onde os dedos se escoam em labaredas. Dás um grito que ecoa nas vidraças. O sol assusta-se e foge, amarelo de medo.
Voltas-te para o outro lado. A tua mulher ressona, de boca aberta, fazendo estremecer as orelhas que se enrolam na cabeceira da cama, como todas as noites. Nunca conseguiste entender, nem nunca conseguirás (digo-to eu, que sei), como é possível que ela se sinta confortável com as orelhas naquela posição. Mas anos de ressonar em harmonia e uma série de conversas sobre o assunto ensinaram-te que sente. Fazer o quê?
Resmungas qualquer coisa que nem tu entendes. Depois suspiras tão profundamente que da boca te saem mosquinhas pequeninas. Esticas um olho, no topo de um pedúnculo, até conseguires espreitar o relógio despertador que se esconde por trás da massa cinzenta da tua mulher. Consegues assim apanhá-lo desprevenido, sem lhe dar tempo para fugir. Fixas o olho no despertador, tão frio que congela o ar em volta em flocos de neve que esvoaçam em direcção da janela, soltando trinadozinhos quase inaudíveis de tão agudos. O despertador faz estremecer a sua cara de números vermelhos, e murmura:
— São horas menos dez — acrescentando depois, em baixo volume — palerma! — pensando que tu não o ouvirias.
Ouves, mas não ligas. Suspiras de novo. Pensas, como todas as manhãs, se o que se segue valerá o esforço de saíres da cama. Não chegas a nenhuma conclusão. Nunca chegas. Mas tomas duas drageias.
O sol, entretanto, volta a espreitar da janela, com sorrisos tímidos pendentes dos raios.
— O senhor dá licença? — pergunta-te.
Encolhes os ombros numa indiferença tão grande que os braços se te recolhem e ficas com duas mãos agitadas a sair directamente do pescoço. Custa-te respirar. O ar sabe-te a gelatina de morango e estremece quando lhe tocas, espalhando raios de luz distorcida em todas as direcções. É assim que reparas que o sol continua à espera de uma resposta, meio escondido por trás do reposteiro.
— Ó homem, entre duma vez, não fique aí especado! Tenha só cuidado para não acordar a minha mulher. Ela teve uma noite má. A cabeça até dormiu bem, mas as pernas andaram a passear pela casa a noite inteira.
— Muito obrigado. Com licença. — diz-te o sol, entrando, mas afastando-se com cuidado da tua cara. — Desculpe lá aquilo de há pouco. Foi uma distracção.
Tentas não voltar a encolher os ombros (precisas das mãos) mas é mesmo isso que te apetece fazer.
— Tá bem — dizes apenas.
Com alguma dificuldade, levantas-te da cama. Está calor, e suor irrompe-te de todos os poros, juntando-se num pequeno charco em volta do teu umbigo. Minúsculas rãs saltitam em torno do charco, coaxando alto demais.
— Calem-se — resmungas, arriscando uma palmada na barriga.
As rãs, com a palmada, ganham asas repletas de furúnculos, e erguem-se no ar, coaxando impropérios. Não ligas. Nunca ligas. Se não fosse essa impenetrável indiferença, a tua vida seria um inferno, por isso, todos os dias de manhã, tomas duas drageias de impenetrável indiferença que te duram o resto do dia. Só à noite passas a sentir uma penetrável diferença, mas isso é porque quando o sol se põe te crescem uns bigodes muito longos e fininhos.
Olhas para o espelho, na casa de banho. Os bigodes muito longos e fininhos pendem, com ar triste, das narinas. Ainda pensas em perguntar-lhes o porquê de tamanha melancolia, mas desistes. Impenetrável indiferença.
Fechas o ralo, pões água a correr, mostras ao espelho um esgar. O espelho estremece, principalmente os dentes. Será susto? Não te interessa. Também os teus estremecem nos alvéolos, gerando tornados de comichão por toda a tua boca. Abre-la. Deixa-los sair.
Os dentes mergulham na bacia, um a um, em trajectórias acrobáticas. Os azulejos aplaudem, fazendo soar trombetas numa estridência de piscina coberta. Depois, lavam-se uns aos outros, percorrendo atentamente raízes e coroas, removendo com cuidado os mais ínfimos sinais de tártaro. Só um fica de lado, um molar cariado que é ostensivamente ignorado pelos demais.
Não sabes porquê, nunca saberás porquê, mas gostas muito daquele molar. Se não estivesses desdentado, terias dito isso mesmo naquele instante.
Quando achas que já chega, deixas cair o maxilar, que entra na água com um ploft satisfatório. É o teu oráculo quotidiano, aquele ploft. Pela sua intensidade, duração e harmonia, e pelo número de gotinhas que levanta, sabes como vai ser o teu dia. Os teus dias só existem por via daquele ploft. Aprendeste isso da pior maneira, num dia em que te esqueceste de deixar cair o maxilar com um ploft, não tiveste dia e passaste directamente para o seguinte. Foi mau. Tiveste falta no serviço e um processo disciplinar que, para tua sorte, acabou por se revelar tão indisciplinado que o despediram duas semanas mais tarde.
Esperas, com o maxilar em baixo, que os dentes se acomodem, os de baixo nos alvéolos respectivos, os de cima sobre a língua, em duas longas filas. Recolhes o maxilar, e ao longo da subida os dentes entoam um canto alentejano, oscilando uns de encontro aos outros, criando assim um insólito acompanhamento de rangidos.
Canto alentejano acompanhado a ranger de dentes...
É assim todas as manhãs. Já conheces de cor aquele coro. Já esperas cada uma das desafinações. O friso de baixos não é mau, mas o tenor — um canino, por estranho que possa parecer — é esganiçadíssimo. Um horror.
Em todo o caso, se não estivesses com atenção e cuidado terias encolhido de novo os ombros.
Impenetrável indiferença.
Depois da cara recomposta, ordenas aos cabelos que se ajeitem e acomodem e sais da casa de banho. Já sabes que os quinze minutos seguintes da tua cabeça serão passados em gritaria, enquanto os cabelos se desempeçam sozinhos, insultando-se uns aos outros, por vezes envolvendo-se em breves cenas de pancadaria, que terminam abruptamente assim que os nós de desfazem ou um cabelo se solta ou se parte. Como todas as manhãs, os bigodes muito longos e fininhos vão-se embora, ofendidos, insurgindo-se em francês contra aquela vulgaridade, oh-là-là, sacré bleu! Suspiras. O tédio é tanto que te envolve como um casulo de seda. Já estavas preparado para ele, e sacas da tesoura que tinhas escondida numa cova da pele que te cresce como um coldre, à ilharga. Em gestos hábeis, recortas a seda do casulo, transformando-a numa camisola e numa espécie de calças sem aberturas para os pés. Não há costuras. A seda de tédio tem por supremo valor de existência envolver-te o melhor que é capaz, e és por isso forçado a enrolar as extremidades das duas peças para que a seda não continue a crescer até te cobrir por completo outra vez.
A seda hoje é esverdeada, com minúsculas risquinhas negras. Não gostas, mas não podes fazer nada. Não é como se pudesses substituir tédio verde às risquinhas pretas por tédio branco às florinhas, ou tédio liso azul-metálico. O teu tédio é o que é, embora mude todos os dias.
Regressas ao quarto. A tua mulher já começou a acordar, e tu atiras-lhe um beijo com força e boa pontaria. O beijo vai esmagar-se sobre a boca dela, um pouco descaído para o lado direito, e depois escorre devagar para a almofada.
— Ai! — grita ela, assustada, mas depois a expressão suaviza-se e as orelhas enrolam-se-lhe sobre a testa — Oh, és tu, querido? — um bocejo, devidamente acompanhado pelo sol que estende dois raios e lhe faz tilintar a úvula.
— Sou. Acorda, que está na tua hora.
A tua mulher aninha-se melhor na cama, recobrindo-se de gravetos e pedacinhos de terra, e chilreia:
— Ãin, que não me apetece nada levantar...
— Eu sei — respondes. Tu sabes. Aquele "ãin, que não me apetece nada levantar" é a frase mais típica das manhãs da tua mulher, e reverbera nas paredes daquele quarto em três quartos das manhãs. O quarto restante, a que tu chamas com ironia "quarto minguante", é composto por variações mais ou menos imaginativas da mesma ideia-base. Só uma vez, que te lembres, em todos os anos de acordar no mesmo sítio, mas em separado, a tua mulher acordou cheia de vontade de se levantar.
Foi um dia inesquecível, esse dia. Ainda hoje, tantos anos passados, sentes uma pontada de pânico quando o recordas.
— Vou comer — anuncias. — Vê se te levantas. — E sais, direito à cozinha. O nariz já tinha seguido à frente, enviado pelo estômago vazio que se procurava atapetar de odores antes de receber a sanduíche.
É mais ou menos por esta altura que o teu dia começa a parecer-se mais com o dia de uma pessoa que não tem uma vida surrealista. Sentas-te placidamente à mesa da cozinha a comer a sanduíche com um olhar contemplativo de bovino no rosto. Contrariamente ao que talvez fosse de esperar, não te crescem cornos nem manchas pretas na pele branca e as costas não se te encurvam num garrote. A comida não protesta, nem se transforma em sinais de tempo. Só os cabelos continuam a sua guerrilha, embora cada vez mais compostos e cada vez mais sossegados.
A dada altura, chega o silêncio, interrompido pelo tic tac do relógio na parede e por um monumental bocejo da tua mulher, no quarto. É nessa altura que os cabelos finalmente se aquietam, dispostos em risca ao meio e atirados para trás. Passas a mão por eles, num agradecimento, que eles recebem com sussurros de prazer, depois de acabares a sanduíche e de limpares as mãos a um guardanapo. Levantas-te, vais até à sala, à procura da maleta. Quando chegas, estás vestido de fato e com uma gravata de dez metros pendurada do pescoço. Pensas, como todas as manhãs, que tens de comprar uma gravata nova, enquanto enrolas no pulso a porção em excesso. Sentes-te como um cão que segura a sua própria trela e o teu focinho subitamente distendido capta com absurda nitidez todos os cheiros dos dois quarteirões mais próximos. Soltas um leve ganido, mas depressa regressas à tua forma habitual de funcionário.
É tempo de sair de casa.
Sais de casa aos poucos, peça a peça, com cada bocadinho a integrar-se na longa fita que é o tempo no mundo lá fora. A fita leva-te, sem sobressaltos, directamente até à porta do escritório, e deposita-te aí, na ordem exacta em que nela entraste. É um pouco estranho ver surgir no passeio primeiro um dedo da mão direita, depois outro, e de seguida mais três, e depois ver um braço construir-se no chão e depois erguer-se quando o tronco aparece, quase de repente (e assim voltas a ter braços, o que é sempre boa notícia), e continuarem a juntar-se órgãos àquele corpo em crescimento até estares de novo inteiro e imaculado, com maleta e tudo. Só a gravata fica presa da fita, como todos os dias, e és obrigado a puxá-la ou a deixá-la ficar. Pensas em desistir duma vez por todas de tão incómoda peça de vestuário, mas acabas por desistir da desistência e puxas. Desistir para quê?, pensas, com um abanão de cabeça.
Impenetrável indiferença. O que é preciso é impenetrável indiferença.
Recomposto, entras no escritório na hora exacta, sentas-te, abres a maleta e a janela e pões-te a trabalhar.
Contas pássaros a manhã inteira.
É para isso que te pagam: contar pássaros.
À hora de almoço interrompes o trabalho. Sabes disso apenas porque num momento o relógio marca meio dia e trinta e um minutos e no momento seguinte já marca uma hora e cinquenta e oito. Poderias pensar que era o relógio que resolvera que era tempo de adiantar o tempo, não fora também o sol se ter deslocado no céu (não o sol que deixaste em casa a acordar melhor a tua mulher; outro), e não fora aquilo te acontecer todos os dias. Os almoços são-te sempre retirados da experiência de vida. É como se o teu corpo abandonasse o cérebro à secretária, no meio dos pássaros, e se fosse alimentar sozinho, regressando depois pelo mesmo caminho. Na verdade é isso mesmo que acontece: chegada a hora de almoço, o cérebro esgueira-se pelos olhos, ouvidos e boca como uma névoa cinzenta, deixando o corpo livre para fazer o que bem entenda. O tempo parece não passar porque, na verdade, não passa. Para um cérebro, o tempo só passa quando existe maneira de medir essa passagem (olhos, ouvidos, sensores de movimento, enfim, sentidos). E como tu és, basicamente, um cérebro agregado a um corpo, o tempo que não passa para o teu cérebro não passa para ti.
Percebeste?
Encolhes os ombros com cuidado, para evitar ficar sem braços outra vez. Não te interessa. Nada te interessa. Explicações e pormenores esbarram na tua impenetrável indiferença como num muro sem alicerces nem ameias. Só te interessas, e mesmo isso vagamente, pelo teu trabalho.
É para isso que te pagam: contar pássaros.
Contas pássaros a tarde inteira.
O fim do dia de trabalho vai encontrar-te na mesma posição de todos os dias. O fim do dia de trabalho não te tem em grande conta, e tu sabes disso porque ele nem tenta escondê-lo. Enxota-te para fora do escritório com um desprezo mal contido. E é já depois de te virar as costas que te diz até amanhã, fazendo acompanhar esta frase do blã da porta a bater, e transformando-a, portanto, em até amablã, coisa que não tem qualquer significado. Nunca chega a olhar-te, o fim do dia de trabalho. Acompanha-te fazendo os possíveis por não dar pela tua consistência.
Verdade seja dita, a tua consistência àquela hora já não é muita. Todo o teu corpo estremece, em equilíbrio precário, gotejando no passeio como manteiga derretida. Sentes-te papo-seco antes de ir ao forno, informe, tosco e vagamente amarelado.
Bem sabes que é do cansaço. Ou então é da massa.
E por isso desfazes-te na fita do tempo no mundo lá fora, onde entras agora de repente, como quem mergulha ou se deixa cair.
E é assim mesmo que sais dela, à porta de tua casa, um jorro líquido que se aglomera num charco multicolorido no passeio. Às vezes, quando queres ficar ainda um pouco a beber a luz do entardecer em copos cheios de cor de laranja, recompões-te ainda cá fora, sentas-te no lancil e fechas os olhos, à espera. Mas hoje não te apetece ganhar tempo perdendo-o, e esgueiras-te por baixo da porta. A casa ainda está vazia a esta hora, a tua mulher só chega mais tarde, e tu passeias por todas as divisões ainda em charco, recolhendo o pó e as migalhas do dia. Essa descamação da realidade que todos os dias deixam cair ao passarem pela tua casa como uma rajada é o teu lanche e tens de admitir, embora relutes fazê-lo em público, que é a refeição que consomes com mais volúpia. Adoras o sabor dos ácaros que se agarram a cabelos perdidos como se eles lhe pusessem proteger as minúsculas vidas. Deliciam-te as colónias de bactérias e bolores que tentam instalar-se nas migalhas de papo-seco que a tua mulher espalhou pela casa toda de manhã. Estalas a língua (pelo menos fazes o equivalente líquido de estalar a língua) com os restos se sol e de vento e de tempo que ficaram esquecidos pelos cantos desde o dia anterior.
Quanto a tua mulher chega, a casa está impecavelmente limpa e tu dormes a sesta dentro de um balde com o fundo coberto por uma espessa mistura de tintas de água, tintas de areia e tintas de esmalte. Gostas do cheiro, e o balde envolve-te como as muralhas de um forte, tapando-te os ouvidos já menos líquidos, já gelificados, pondo os sons de castigo fora de ti. Ficam irritadíssimos, os sons, quando os pões fora de ti, mas tu estás-te nas tintas e encostas-te ao cabo da esfregona, ronronando como um gato.
Impenetrável indiferença.
Ainda resiste, a impenetrável indiferença. Ainda se mantém impenetrável. Indiferença.
A tua mulher chega, ruidosa, arrastando as orelhas atrás de si como um véu. Quando estás acordado, gostas de assistir à sua entrada triunfal, gostas de ver o seu corpo balofo a tentar por todos os meios sair de dentro do vestido às florinhas, gostas de olhar para a nuvem de cheiros que ela carrega sempre consigo, presa às orelhas, adejante na aragem que é ela própria que provoca. É quase o único verdadeiro prazer que resta à tua vida de casado. E só funciona quando estás acordado.
Quando dormes a sesta, nas tintas dentro do balde, os trinados que dela vêm irritam-te profundamente.
— Queridinhoooo! — e tu ranges os dentes que se começam enfim a solidificar, embora os rangidos ainda saiam moles, com o som que melaço faz ao discutir com leite-creme.
— Chegueiiiiiiii! — e os punhos encerram-se em torno do teu tronco, espremendo-o como a uma laranja respingosa.
— Onde estááááááás? — e o cérebro acorda, sacode-se da tinta e aglomera-se no topo da massa gelatinosa em que te transformaste, enrolado à volta do cabo da esfregona, esculpindo-se devagar em circunvoluções, circunvalações e neurocircuncisões, bocadinhos de pele neurológica cortados e desencarapuçados.
— Ah, estás na tua sesta? — e é então que regressas à tua forma habitual de todas as noites (o sol já se pôs, bem mais discreto na partida do que na chegada), um homem de cabelos revoltos e um bigode fininho deitado sobre os lábios, molhado, coberto de pedacinhos de tintas de todas as cores, que tentas sacudir para dentro do balde sem mais sucesso que o de um lançador do disco a correr os 100 metros.
— Estava — resmungas, mal humorado, de cenho carregado como uma camioneta das mudanças, a testa orlada de mesas e cadeiras, uma cama de espaldar onde as tuas ideias dormem a sesta e uma estante coberta de bibelôs e com uma televisão desligada a um canto.
— Dá cá um beijo — exige a tua mulher, pondo-se em bicos dos pés à tua frente. Tu dás-lhe o beijo. Pegas nele com um esgar de asco (nunca gostaste de pegar em beijos, sempre os achaste vagamente asquerosos ao toque) e colocas-lho com indiferença sobre os lábios.
— Bem podias dar-me um beijo com um bocado mais de alma, que diabo! — queixa-se ela, tricotando um beicinho amuado. Era rápida: ficou pronto num instante.
— Desculpa — desculpas-te — tenho andado um bocado seco de alma ultimamente. Deve ser do calor. A alma evapora.
— E por falar nisso — acrescentas, depois duma pequena pausa — vou tomar banho.
Tomas um banho longo e fumegante, a água tão quente que a pele se te encaracola e desprende, deixando-se erodir como areia debaixo de chuva, cavando longos regos, cada vez mais profundos, até cair no fundo do poliban, rodopiar duas ou três vezes como bailarinas, envoltas em tutus de pele de bactéria, e mergulhar ralo abaixo soltando gritinhos de excitação e volúpia.
A lavagem é profunda. Chega-te aos ossos, especialmente os do crânio, que são os que estão normalmente mais próximos do mundo exterior, e em breve estás exangue e branco como uma caveira. Mas manténs o bigode fininho, não já deitado sobre os lábios, mas deitado sobre os dentes do maxilar superior, enroscando as pontas no arco zigomático.
Depois, submerges por completo, esqueleto e fiapos de carne, para que o corpo se te reconstitua envolto em sabonetes e loções. Acabas o banho como novo, limpo e perfumado como um bebé. Bolsas um bocadinho e sentes-te triste e alegre ao mesmo tempo.
É nessa altura que a tua impenetrável indiferença se deixa penetrar por uma penetrável diferença, e recolhes-te em ti mesmo, presa de todos os sentimentos que não tiveste ao longo do dia. Irritas-te ao mesmo tempo que te ris, deliciado, das coisas divertidas que te disseram ou fizeram, choras de tristeza enquanto tentas sem sucesso reprimir um bocejo do mais completo tédio (contar pássaros é uma seca) e ficas de boca aberta durante longos minutos, as cordas vocais em funcionamento contínuo num longo, looongo, looooooongo som, mais semelhante a um urro do que propriamente a um bocejo, que ainda por cima resolve andar a passear de parede em parede como macaco entre ramos, ampliando-se em ecos e reverberações que te põem as orelhas a abanar
Dura algum tempo, o teu momento de penetrável diferença, e quando enfim termina és apenas mais um homem, miserável como todos os homens, rodeado de silêncio, como todos os homens, ainda que no teu caso esse silêncio seja cortado por um zumbido grave, quase inaudível, o zumbido que fazem as tuas orelhas a abanar.
Mas é limpo e rosado que sais da casa de banho. Ouves os ruídos de cozinha que a tua mulher faz na cozinha, presa de um papel feminino que as outras mulheres recusam mas a tua desempenha com vontade e alegria, o de proporcionar ao seu homem bem-estar e segurança à custa do seu próprio bem-estar e segurança. Abanas a cabeça e ela protesta abanando-te a ti e é todo sacudido que pensas, como todos os dias, que não sabes bem se hás-de agradecer-lhe se de sentir pena dela, das barras que a rodeiam sem que ela as veja, uma gaiola em que ela, ave canoira, lança trinados saltitando de poleiro de mármore em poleiro de mármore, entre a bancada, o frigorífico e o fogão.
O pior de tudo ainda são os trinados.
Arrastas-te até à cozinha com dificuldade, deixando um rasto de chão molhado atrás de ti e sentindo-te caracol, com as costas enrugadas numa sugestão de espiral. Paras à porta e respiras fundo. A tua mulher chilreia num espanejar de orelhas, fazendo movimentos ritmados com as penas da crista. No fogão, algo frita, atirando ao ar uma mão-cheia de cheiros que convergem sobre ti como setas. Não resistes. Já aprendeste à tua custa que ao lidar com cheiros agressivos o melhor é não fazer ondas, deixar o soalho liso e fazer tudo o que os cheiros ordenarem. Até porque raramente ordenam coisas mais complicadas do que "senta-te!" ou "aqui!" ou "come!" ou, no fim, "arrota!", e tu estás quase sempre de acordo em fazer precisamente essas coisas. Deixas-te ir. Em breve estás sentado à mesa, de garfo na mão e um relógio a dar horas no estômago (ao segundo sinal serão dezanove horas, vinte e cinco minutos e quarenta e três segundos, piip, piip), enquanto a tua mulher pára de imitar uma sinfonia de melros (finalmente!), perde a penugem, deixa cair o bico na sopa como tempero final, mexe a panela mais um pouco e dá por terminado o trabalho, com um sorriso satisfeito a estender-se pelas bochechas em espirais iridiscentes.
Comes em silêncio, fazendo grandes pausas entre as garfadas e as colheradas, para dar tempo a que os alimentos se te aquietem no estômago. Costuma ser uma regatice pegada sempre que uma nova colherada ou garfada cai do esófago e aterra em cima das garfadas e colheradas que já se encontravam no estômago, indo lá encontrar resmungos, impropérios, aquilo que para o bolo alimentar faz as vezes de cotoveladas e muitos empurrões enquanto não se descobre, algures, um lugar para os recém-chegados que não incomode os que já lá estavam, satisfeitos nas suas saunas de ácido.
Comes em silêncio, salvo a barulheira que vai pelo teu estômago. A tua mulher, por sua vez, come também em silêncio, depenicando a comida como só ela sabe fazer, com uma delicadeza de grou. Em tempos, as perguntas sobre "o teu dia" entrecruzavam-se, abraçando-se no ar que vos separava, soltando gritinhos de reconhecimento (há tanto teeempo!) e apertando as bochechas aos pequerruchos. Mas vocês fartaram-se de ouvir sempre as mesmas respostas, de dar sempre as mesmas respostas, da barulheira cada vez mais falsa, mais postiça, mas irrealista que as perguntas faziam ao se encontrarem, e agora comes em silêncio com o longo bigode fininho a roçar, tristonho, as bordas do prato, ao lado da tua mulher, que come em silêncio, as longas orelhas acachapadas sobre a cabeça como um véu muçulmano.
Allahu akbar.
É ainda em silêncio que acabas de comer, levantas a mesa e segues com ela até à máquina de lavar, onde a sacodes, fazendo cair nos receptáculos respectivos pratos, copos e talheres e enchendo tudo de lixo. Nada se parte. Nada nunca se parte na tua casa, a não ser que seja acidentalmente que o desequilíbrio e a queda acontecem. Se por acaso dás um encontrão num copo, por mais fraco que seja, ele imediatamente se atira da mesa abaixo, guinchando ao longo da queda (ooooooh nãããuuuuuu!) e estilhaçando-se no chão em mil cacos que ficam a ralhar-te, estendidos de costas, esperneando espículas de vidro, enchendo-te os ouvidos com acusações de desastradodesastradodesastrado. Até com os talheres acontece o mesmo: se apanham um encontrão atiram-se para o chão e aí se espatifam numa miríade de bocadinhos quase invisíveis de aço inoxidável. Houve um tempo em que isto te afligia, mas aprendeste a não ligar importância e a voltar costas quando um dia em que algo te chamou a atenção para longe destes pequenos dramas reparaste que bastou deixarem de ser o alvo das tuas dores de cabeça para que as coisas partidas se recompusessem, os cacos maiores a passear dum lado para o outro a agarrar nos mais pequenos e a engoli-los atirando-te impropérios de encontro às costas (cabrão! Tanto que fazemos por ele, e não nos liga nenhuma! Cabrão!). Mas, se é de propósito que as coisas são atiradas ou deixadas cair, permanecem inteiras como se nada fosse.
Na tua vida, é assim que as coisas são.
Quando acabas de tratar da cozinha a tua mulher pendura-se a ti como um badalo e seguem os dois até à sala, tu em passos arrastados e ela a badalar (bloing bloing) de encontro às tuas pernas ao mesmo tempo que te vai lambuzando a cara. Às vezes dá-lhe assim para a ternura e enrola as orelhas no teu pescoço como se se quisesse transformar numa gravata. Tu vais protestando com suavidade (querida... não... vá lá... não... ouve... uff... espera...) enquanto começas a encurvar as costas por acção do peso que carregas. Chegas à sala corcunda e um pouco vesgo, com uma crista dorsal feita de vértebras cuja substância óssea se deslocou para o exterior do teu corpo, por falta de lugar livre de pressão no interior.
Derramas-te depois no sofá numa onda de espuma sólida na qual a tua mulher flutua. Procuras o telecomando às apalpadelas. O telecomando esquiva-se, rindo baixinho o seu riso escarninho. Consegues raspar por ele um par de vezes até que, finalmente um dedo que fizeste crescer desproporcionalmente ao tamanho não só de ti ou do sofá, mas da própria sala, logra apertar num botão, qualquer botão. De súbito obediente, o telecomando aquieta-se e ordena à televisão que se acenda. A atenção da tua mulher sofre uma viragem que já esperavas e ela murmura um que liiindo! e abranda o seu enlace, embora continue deitada sobre ti. Começas então a recompor-te, solidificando na tua forma verdadeira, ou pelo menos naquilo que em ti passa por uma forma verdadeira, meio reclinado sobre o sofá, com os pés assentes na pequena mesa que está no meio da sala precisamente para que tu lá abandones os pés enquanto o teu cérebro se vai apagando devagarinho à medida que as imagens da noite se vão sucedendo no écran.
Começa assim a parte menos surrealista do teu dia.
São três as horas que ficam os dois despejados no sofá, estáveis na forma e nas posições que vão mudando só de longe a longe, como se estivessem na cama, a sonhar com calma, e se virassem de vez em quando de barriga para cima ou de barriga para baixo. Mas para ti é como se fossem quinze minutos, porque desde que se te apaga o cérebro tu desapareces para qualquer lado e o tempo dá um salto sem que nele existas, propriamente. Com a tua mulher, passa-se o mesmo, tanto quanto saibas, e é como se a televisão enchesse a sala de pixels azulados em permanente frenesi de mudança, desalojando de lá tudo o que não fosse feito de pixels azulados em permanente frenesi de mudança. Se calhar, é mesmo isso que acontece. Tu não sabes, e nem tens como saber. A verdade é que nem quererias saber, se pudesses. Simplesmente, não te interessa.
É o regresso da impenetrável indiferença.
O feitiço, se feitiço é, quebra-se com o primeiro grande bocejo da noite. Solta-o um dos dois, nunca se sabe bem qual, mas a esse primeiro sucedem-se outros em cascata, cada vez mais dissonantes, cada vez mais volumosos, cada vez mais absolutos. E a sala, cada vez mais incomodada, começa a rebelar-se contra tal enlouquecimento (enrouquecimento?) de bocejos. Primeiro é o sofá, que desata em ondulações cada vez mais enjoativas; logo depois é a mesa que se esgueira de debaixo dos vossos pés, deixando-os cair e bater no chão com um poft mole. Depois são todos os objectos que cobrem a sala de uma camada de habitação que começam a vibrar, a ranger, a raspar, tentando contrariar dessa forma o vosso ruidoso ataque de tédio. E por fim, é a televisão, que se apaga, obedecendo com relutância às ordens do telecomando, até ele já farto dos vossos bocejos.
É então que a tua mulher se levanta, resmungando:
— Ai, que dor de cabeça! Acho que vou tomar um comprimido.
E se arrasta até à casa de banho, onde ficam as tocas de quase todos os seus comprimidos. Tu ainda ficas mais um pouco em frente da televisão, observando o modo como o écran negro reflecte o contentamento da sala, recém-regressada à sua placidez habitual. Mas também acabas por te levantares e seguires, cambaleante, o caminho do quarto.
Aí chegado, esperas que a roupa se te dissolva num pijama com aspecto velho e muito coçado e deixas-te cair sobre a cama. A tua mulher chega pouco depois, e tu ficas a observá-la pelo único canto de olho que ainda permanece livre de pálpebra, enquanto a roupa dela se dissolve num pijama não menos velho e coçado do que o teu, apenas mais florido. Há muitos anos que aquela visão não te desperta vontade de a ver nua, talvez pelo que vislumbras por baixo do pijama, talvez porque já sabes que não vale a pena, ainda que o teu pénis acorde e te pergunte o que se passa ao que tu respondes que não se passa nada. O teu pénis vira-te as costas, resmungando que nunca se passa nada e libertando depois um par de impropérios contra a puta da vida que lhe havia de calhar, caralho, enquanto que tu encolhes os ombros, segurando bem neles para que os braços não se encolham também.
A tua mulher murmura então um até amanhã e fecha a luz como quem fecha a porta. Tu revês o teu dia durante cinco minutos, pensas ociosamente que foi um dia menos mau e soltas um suspiro, não sabes se de resignação se de desalento.
Depois, deixas-te dormir.

sábado, 4 de setembro de 2004

sexta-feira, 3 de setembro de 2004

Versos avulso

Beslan

A última coisa que ouviu
foram tiros
muitos tiros

Tinha só sete anos
e até aí sempre pensara que depois dos tiros todos se levantavam
sacudiam
sorriam, aos gritos, excitados pela brincadeira
e se preparavam para o próximo tiroteio

Sempre pensara que todas as mortes eram provisórias
menos as das pessoas velhas
que só os cabelos brancos faziam com que a morte fosse para sempre
que só as rugas prenunciavam a despedida

Nunca pensara que os tiros fizessem tanto barulho
tanto, tanto barulho
que a mãe, a gritar, fosse só um boneco sem som
como os da televisão quando se tirava o som
e mexesse a boca como se falasse mas sem emitir um som
só tiros, tiros, tiros

E nunca sequer imaginara que os tiros
pudessem doer mais que arrancar um dente de leite

Teve uma morte cheia de descobertas
mas o que de verdade interessa
é que a última coisa que sentiu
foram tiros
muitos tiros

quinta-feira, 2 de setembro de 2004

Spam Fiction

E ninguém me perguntou o que ia acontecer ao Spam Fiction!... Maus, maus leitores.

Mas já que não perguntam, eu digo: apesar de não ter feito mais nada nestes meses, continuei a armazenar spams vaga ou decididamente inspiradores, e tenciono retomar o projecto, agora que as coisas se começam a compor (pelo menos até ver) por aqui. Aliás, já recomecei a escrever, embora tenha decidido mudar de estratégia: agora não vou abandonar durante muito tempo contos já começados só porque a "sua" semana acabou. De modo que recomecei a mexer nos primeiros dois contos que permanecem incompletos, as spam fictions números 1 e 5. Dado o estado actual de desenvolvimento dos dois, é possível que o 5 apareça antes do 1, embora tenha quase 2000 palavras a menos neste momento.

Sim, que a ideia do 1 não dá para um conto pequeno: é demasiado complexa. Consequência: já tem 5 mil palavras e tende a crescer ainda mais.

quarta-feira, 1 de setembro de 2004