domingo, 22 de dezembro de 2013

Lido: A Despedideira

A Despedideira é mais um pequeno conto de mulheres de Mia Couto, ou talvez seja mais adequado dizer que é um longo poema em prosa de Mia Couto. Sim, que embora seja habitual encontrar poesia nos textos do autor moçambicano — a poesia é, mesmo, a par com os neologismos evocativos, uma das suas mais características imagens de marca —, raramente ela é tão dominadora, sobrepujante, como aqui. Para perceberem o que quero dizer, deixem-me citar o seu início, não em prosa, como o escritor o escreveu, mas em verso:

"Há mulheres que querem que o seu homem seja o Sol.
O meu quero-o nuvem.
Há mulheres que falam na voz do seu homem.
O meu que seja calado
e eu, nele, guarde meus silêncios.
Para que ele seja a minha voz
quando Deus me pedir contas."

Estão a ver? O ritmo, as imagens, as repetições? O conto é todo assim, escrito na primeira pessoa por uma mulher poeta que se sabe que o é não se interessa e que se conta desta forma, a si e aos seus afetos. E não foi dos contos que mais me agradaram, precisamente por isso. Apesar da magnífica linguagem, gosto das coisas mais comedidas, de maior equilíbrio entre forma e conteúdo. Aqui, parece-me, a forma está demasiado presente, a ponto de sufocar o conteúdo. Quem aprecie principalmente a forma, e em especial quando esta é prosa poética, provavelmente adorará. Não foi o meu caso.

Contos anteriores deste livro:

Lido: A Irmandade

A Irmandade (bibliografia), de Carlos Patati, é um conto algo inclassificável sobre uma irmandade informal de pessoas unidas por duas coisas: ouvem vozes, que não se chega nunca a perceber bem se fantasmagóricas se oriundas de algum bizarro fenómeno de sobreposição de realidades, e possuem umas tatuagens peculiares, que surgem ligadas a um medalhão. É tudo muito vago.

Essa falta de clareza é, aliás e a meu ver, o ponto mais interessante do conto. Julgo que só funciona porque este está bastante bem escrito (pesem embora algumas gralhas) e tem uma estrutura episódica, de coleção de depoimentos em primeira pessoa. Porque nenhuma daquelas pessoas parece saber bem o que lhe está a acontecer, todas lidam com o fenómeno de uma forma ligeiramente diferente, e portanto nós, os leitores, também ficamos sem perceber bem o que se passa. Funciona. Acaba-se a leitura desejando saber mais, sim, mas com a consciência de que, da forma que Patati escolheu para elaborar a história, provavelmente não haverá mais a saber.

Por outro lado, seria bom que Patati tivesse individualizado melhor as vozes de cada uma das suas personagens. Não as que elas têm nas cabeças, mas as delas, as que nos contam as histórias. Sim, a individualidade e a personalidade de cada uma transparecem no modo como reagem às tatuagens e ao que estas trazem consigo, mas o impacto seria maior se também transparecesse no modo como falam, escrevem ou pensam, nas palavras que usam para nos contar o que se está a passar com elas. Um pouco à semelhança com o que acontece com O Pico de Hubert, de Telmo Marçal.

Mas isso não é suficiente para fazer com que este não seja um bom conto. É, ainda que me pareça que não será conto capaz de agradar à generalidade da massa leitora. Talvez seja um pouco elaborado em demasia (ou experimental em demasia) para isso.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Acerte nas Frases Célebres

Acerte nas Frases Célebres é, sem tirar nem pôr, um daqueles testes de cultura geral que a dada altura se tornaram quase obrigatórios nas revistas de fim de semana dos jornais. Este tem citações e opções de correspondência da citação ao citado, em número de quatro por citação, como parece ser de norma. E, como também é muito comum, José Alberto Braga insere algum humor na coisa introduzindo opções de resposta insólitas ou ridículas. A citação "Fiat lux" pode atribuir-se à EDP, por exemplo. Ou aos Irmãos Lumière.

Tem alguma piada, mas não é nada de especial.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Fundamentalismo Para Principiantes

Fundamentalismo Para Principiantes é um risco tremendo para o humorista. José Alberto Braga, aliás, reconhece-o numa introduçãozinha itálica em que afirma que "religião à parte, é forçoso reconhecer em Khomeini um grande concorrente dos humoristas." E é um risco tremendo porque neste texto Braga pega em seriíssimas (e religiosíssimas) proclamações do antigo líder supremo da teocracia iraniana e comenta-as. Isso, em si mesmo, já é arriscado, e que o diga Salman Rushdie. Mas há pior, oh!, muito pior: Braga corre o risco das próprias proclamações terem mais piada do que os seus comentários!

E é precisamente isso o que acontece com a maioria. Muitas das sentenças que Braga escolhe são escatológicas, preceitos sobre como o bom fiel deve urinar ou defecar (ai do que cagar virado para Meca!), coisas dessas, outras são tão hilariantemente surrealistas como a regra sobre o mínimo de relações que o marido deve ter com a mulher (Três. Por ano.), ou a estrita proibição de consumir carne de cavalo, mula e burro caso o animal tenha sido sodomizado enquanto vivo. Coisas destas.

Contra um humor involuntário tal superlativo calibre, Braga não tem a mínima hipótese. Este texto é hilariante, sim, mas mais pelas sentenças que ele escolhe do que pelos comentários que faz.

Textos anteriores deste livro:

sábado, 21 de dezembro de 2013

Lido: A Bomba é Nossa

A Bomba é Nossa é mais um daqueles textos do José Alberto Braga, em forma de lista e compostos em partes mais ou menos iguais por trocadilhos, informação e nonsense, e a que pouca graça acho. Desta feita, a ideia é definir (em parte com aspas, em parte sem elas) uma série de termos ligados à energia e em especial ao armamento nuclear, resultando em três páginas e picos de patetice voluntária e consciente. Sorri um par de vezes, mas não mais que isso.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Um Dia na Noite

Um Dia na Noite é mais um texto de Alface, e de novo composto por excertos, ou pelo menos incompleto. Mais uma vez muito bem escrito, numa prosa rica, descomplexada e até despretensiosa apesar da sua elaboração, é um texto em que se traçam retratos de peculiares personagens ou se contam pequenas histórias com essas personagens como fulcro. Novamente se trata de um texto interessante, percorrido por uma ironia fina que, no entanto, não é o seu objetivo principal. Não me parece que se trate de um texto de humor, mas um texto com humor. Tal como acontece, aliás, com os restantes textos deste autor. Embora não tenha gostado assim muito deste último, estou com a curiosidade devidamente desperta para o que terá escrito o amigo João Carlos Alfacinha da Silva. Suspeito que ainda voltarei a lê-lo um dia.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Lido: Fim de Estação

Fim de Estação é um conto insólito de Alface, contado na primeira pessoa por um narrador que teria tido no verão de 83 (mil nove e) uma bizarra profissão numa praia semiprivada e fina do Algarve. Pela descrição, provavelmente, algo para os lados do Vale do Lobo ou Vilamoura. E que profissão era essa? Pois que era virador. Viraquê? Virador, sim. Explico: uma vez que as pessoas de alta estirpe, como se sabe, não gostam de mexer uma palha, o trabalho do homem era virá-las enquanto largartavam ao sol, para ficarem uniformemente tostadinhas como a bem-parecença ordena.

Muito bem escrito e muito, muito próximo do fantástico, tanto que se não me agarrarem eu ainda sou capaz de ser gajo para o incluir no Bibliowiki, este continho não é coisa de gargalhada mas de fina ironia, por vezes prestes a resvalar para o sarcasmo. Um belo conto, que me espevitou mais um pouco a curiosidade por este autor.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Por Vós lhe Mandarei Embaixadores, o livro

Quem acompanhou a série sobre edição que vim publicando aqui na Lâmpada nos últimos tempos, terá possivelmente reparado nas fotos que a ilustraram. Todas, com a única exceção da que ilustra a página de índice, são fotografias de pormenores de páginas, capa, lombada, de um livro novo. Chama-se Por Vós lhe Mandarei Embaixadores, é romance, é meu, e a capa é esta:

Fazer esta edição em papel é um projeto já antigo, que deveria ter acontecido logo em 2008 mas, por uma série de vicissitudes, não avançou. Entretanto, foi-se passando o tempo, foram acontecendo coisas e, estranhamente, o livrinho foi ganhando cada dia mais atualidade mesmo que algumas das suas personagens subliminares tenham dado lugar a outras. Por isso mesmo, ao longo do verão passado, ao mesmo tempo que tive tempo para amadurecer as últimas ideias que vieram a desembocar na tal série sobre edição, tive-o também para me deixar de adiamentos, fazer uma última revisão global ao romance, desarrincar uma capa (que em papel é menos berrante do que aqui parece, embora o tema do livro calhe bem com uma capa berrante) e mandar imprimir uns quantos exemplares. A ideia era ter tudo pronto para o lançar no aniversário do meu velhote, a 30 de novembro, mas porque a vida me correu melhor do que estava à espera (não contava ter trabalho, e tive), não consegui preparar as coisas a tempo.

Tenho-as agora preparadas. E por isso apresento agora o livro a quem o quiser. Não é a altura ideal (loge disso, na verdade), mas foi a que se pôde arranjar. Fica a lição para o futuro: há que preparar as coisas com mais antecedência ainda.

Mas falemos do livro em si.

Como a capa diz, trata-se de uma sátira com cientistas loucos, extraterrestres drogados, políticos histéricos e pelo menos uma gaja boa. A contracapa tem elogios (inteiramente genuínos... coff coff...) ao autor e à obra. E o miolo tem o que foi publicado em 2007 e 2008 no blogue respetivo, que agora reabre como central de informações sobre a edição física, mas numa versão melhorada e ligeiramente ampliada, atualizada e acrescentada. Melhorada porque foram assassinadas implacavelmente dezenas de gralhas e foram reescritos parágrafos inteiros, que na versão primitiva estavam algo... primitivos. Atualizada porque a ortografia agora é outra. Acrescentada porque o livro em papel contém também uma breve introdução que explica a génese da coisa e um posfácio que faz parte integrante do todo mas nunca tinha sido publicado.

Quem quiser divulgá-lo tem lá no site uma sinopse (onde diz "sinopse", sim) e mais uma série de informações úteis também para quem quiser lê-lo. Mas vou acrescentar aqui mais uma:

Este livro é o primeiro que publicarei desta forma, mas não será o último. E pretendo fazer com eles outras formas de personalização, além das descritas no site do livro. Para já, são aquelas. Mas de futuro planeio descontos no segundo livro para quem comprou o primeiro, por exemplo. Concurso de melhor foto de leitor-com-livro com o segundo livro como prémio, por exemplo. Coisas dessas.

De hoje em diante, pretendo pôr cá fora, no mínimo, um livro por ano. É, entre outras coisas, uma forma de traçar um objetivo claro para a produção de ficção, embora nem todos os livros que tenciono lançar sejam de ficção. E embora esse objetivo seja uma média; pode haver anos em que publico dois livros, ou até três, pode haver anos em que não publico nenhum. E nem todos, espero, serão publicados desta forma.

Mas vou esforçar-me para estar bastante mais presente do que tenho estado até aqui, com lançamentos regulares de novidades. É uma promessa que faço a quem gosta do que eu escrevo. Eu sei que andam aí uns quantos.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Lido: Os Braços Gigantescos das Árvores

Os Braços Gigantescos das Árvores é uma noveleta de Robert Silverberg, de uma ficção científica muito flower power, muito peace and love, com uma origem muito identificável no tempo e no espaço. A história gira em volta de árvores sencientes e carnívoras (num paralelismo curioso com os Assassinos de Sobreiros do João Ventura, e numa coincidência mais curiosa ainda nos tempos de leitura) num planeta distante, que são exploradas pelos frutos que dão. O protagonista é, também aqui, o homem que cuida da plantação e que tem uma relação especial com algumas das árvores, ao ponto de lhes dar nomes (ironicamente, de personagens ilustres da História). Mas a plantação, todas as plantações, aliás, estão sob a ameaça de uma estranha doença incurável e mortífera para as plantas, que se tem espalhado de planeta em planeta sem que ninguém lhe consiga pôr travão. A trama completa-se com uma sobrinha do protagonista, por quem este sente uma atração com mais do que um pouco de pedófila (e que ela, como boa Lolita, provavelmente até incentiva), que o ajuda nas lides agricolas e que parece gostar das plantas talvez ainda mais do que o tio. E com estas breves pinceladas o quadro está completo.

E é em parte por isso que o conto não é tão bom como outros contos do autor. Porque Silverberg tenta enfiar nele demasiadas coisas, só conseguindo com isso ser não só superficial, mas também previsível. Hoje em dia, agora que os ecos do movimento Hippy já se desvaneceram quase por completo, certamente, mas julgo que mesmo em 1968, ano em que ele foi publicado pela primeira vez, o conto já o seria. Sintonizado com o seu tempo, sim, com certeza. Mas previsível.

Mas também não é um mau conto. É mediano. Mais para menos, parece-me, do que para mais.

Conto anterior deste livro:

Lido: Na Tal Noite

Na Tal Noite é mais um pequeno conto de Mia Couto, e mais um conto de mulher, muito semelhante em vários aspetos a Meia Culpa, Meia Própria Culpa. Não que aqui também haja vidas vividas literalmente pela metade, mas existe uma vida incompleta, de uma mulher que vive sozinha e pobre, com dois filhos, eternamente à espera das raríssimas visitas que o próspero e distante pai dos miúdos faz a sua casa, por alturas do Natal. O conto descreve uma dessas visitas, e é uma história deprimente, de carência e indiferença, de sedução tentada e rejeição. Uma história amargamente irónica. Uma boa história, sim. Mas não gostei particularmente dela.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 14 de dezembro de 2013

Da edição presente e futura: O futuro

(São sete os textos anteriores a este: este, este, este, este, este, este e mais este.)

 É comum pensar-se que a evolução tecnológica e cultural é uma questão de substituição. Que as novas tecnologias, que as novas tendências, que os novos ramos de conhecimento ou cultura, que as novas formas de produzir e divulgar o que se produz, surgem, implantam-se, suplantam as anteriores e levam ao seu desaparecimento.

E é verdade que por vezes é isso que acontece. No entanto, normalmente não é.

A evolução das coisas humanas, em geral, acontece em camadas. O rádio não causou o desaparecimento dos jornais, a televisão não levou ao desaparecimento do rádio, os livros encadernados não fizeram desaparecer os documentos armazenados (ou armazenáveis) em rolo, os carros não causaram a extinção do cavalo doméstico, o rock não matou os blues, a música popular não assassinou a clássica e por aí fora.

O que o aparecimento de novidades causa invariavelmente é adaptações naquilo que as antecedeu. Quando a televisão se popularizou, as radionovelas praticamente desapareceram das grelhas radiofónicas, que se viraram muito mais para a música deixando para a televisão a programação mais generalista. De igual forma, a invenção da encadernação relegou para os rolos de papel certos tipos de documentos muito específicos, como os mapas, as obras gráficas ou as plantas arquitetónicas. Os exemplos possíveis seriam quase infindáveis, mas não vale a pena perder tempo com eles. Vocês já perceberam a ideia.

Mas esta ideia tem um corolário: a criação de novas tecnologias só não leva à substituição das antigas quando nova e antiga conseguem potenciar as respetivas vantagens, transformando-se em media diferentes não só na tecnologia que têm por base, mas também nos objetivos que pretendem atingir.

Ora, é preciso compreender estas ideias para se poder pensar com alguma propriedade no futuro da edição num momento em que se está em plena revolução digital. Quanto mais não seja para evitar cair-se na armadilha de julgar que o digital vai levar ao desaparecimento da edição em papel.

Não vai.

Mas vai, sem dúvida, levar à sua adaptação.

De resto, isso já está a acontecer. Há setores inteiros do antigo mercado livreiro que já praticamente se mudaram de armas e bagagens do velho substrato celulósico para o novo substrato informático, em especial aquela parte da edição que lida com dados em estado mais ou menos puro. Enciclopédias, por exemplo. Dicionários, até certo ponto. Uma panóplia de relatórios disto e daquilo. E, em breve, os livros didáticos. Essa migração corresponde a setores que encontram no digital vantagens de monta relativamente às antigas edições em papel, em especial na facilidade e rapidez com que se fazem correções e atualizações e na possibilidade de integração de conteúdos que não se limitem a texto e material gráfico.

A saída deste tipo de material do conjunto da edição em papel é a primeira fase de um processo razoavelmente longo de reordenação, adaptação e ajuste. Quando este terminar, teremos um mercado de edição eletrónica não só bastante diferente do que existe hoje, como fundamentalmente distinto do mercado de edição em papel que continuaremos a ter (e que por sua vez também será bastante diferente do que temos hoje). Mesmo com o entrecruzamento que mencionei no artigo anterior.

Fazer previsões acarreta sempre o risco de saírem furadas e, passados anos, nos virem apontar os erros crassos no meio de abundantes quantidades de galhofa. Mas que se lixe: vou corrê-lo.

Vejo o futuro mais ou menos assim:

No digital ficará praticamente toda a edição que faz uso intensivo de dados e toda a edição barata mais ou menos massificada, aquela que noutros tempos se recolhia às edições de bolso. É provável que também fique aí aquela edição em que a distância é fator de monta a ter em conta, embora seja possível que, se se concretizar a promessa das impressoras individualizadas em livrarias, o digital se torne, nisso, mais meio de transmissão do que de consumo. Ficará certamente no digital toda a edição que misture outras coisas ao bom e velho texto, com ou sem imagens estáticas. E a interatividade.

A passagem de parte destas coisas para substrato digital vai depender da capacidade que este mostrar para gerar rendimentos. Se a mostrar, muito bem, tudo isto passará ao formato digital, e provavelmente outras coisas também; se não a mostrar, alto e para o baile. Sem haver forma de sustentar financeiramente a indústria, esta resistirá com todas as suas forças a digitalizar-se. É fácil compreender porquê: embora parte dos fluxos financeiros associados aos livros em papel deixe de fazer sentido no mundo digital (a distribuição ou o armazenamento de stocks são as primeiras coisas a vir à mente), outros mantêm-se tal e qual. O que é preciso para procurar conteúdos, ler conteúdos para avaliar o seu potencial de publicação, traduzir conteúdos ou até paginar (ou, no caso, formatar) e encapar conteúdos, entre alguns eteceteras, basicamente não muda. E os profissionais que executam esses trabalhos pretendem, obviamente, continuar a ser pagos.

Claro que há sempre a possibilidade de substituir esses profissionais por formas diferentes de fazer as coisas. Um dia, talvez haja inteligências artificiais capazes de tornar-nos a todos obsoletos e suficientemente baratas para valerem o investimento e os custos de manutenção, mas esse dia ainda vem distante. É bom não esquecer que estamos aqui a falar, em grande medida, de arte, e esta é bem capaz de ser a criação humana mais difícil de ser mecanizada. Provavelmente não impossível. Mas difícil.

(Um breve parêntesis para dizer que é também este um dos principais motivos do meu crescente ceticismo perante as formas mais ou menos mecanicistas de abordar a escrita que tendem a dominar as receitas dadas nos artigos com conselhos a jovens candidatos a escritores e nos ateliês de escrita criativa: escrita mecanizada facilmente se mecaniza; ou a individualidade do autor transparece no que ele produz, ou pouco valor a coisa acaba por ter.)

Mas pondo agora de parte a ficção científica mais futurista e regressando a um futuro mais próximo, o facto de uma parte, maior ou menor, da edição se transferir para suporte digital não implica que o mesmo aconteça com toda.

Porque há uma parte da bibliofilia que consiste numa adoração, por vezes quase fetichista, pelo objeto livro. É comum ler-se e ouvir-se falar do prazer que dá abrir um livro a cheirar a novo, ou desfolhá-lo, ou saltitar ao calhas para trás e para a frente (esta ouve-se principalmente entre os amantes de poesia e/ou de ficção ultracurta), etc. Isso não desaparecerá, e é algo que o digital provavelmente não poderá nunca substituir. Tampouco poderá substituir o livro físico enquanto obra de arte em si mesma, e cuidados especiais com toda a arquitetura do livro podem ser uma das melhores formas de resistir à passagem para o digital. Um bom exemplo é a antologia Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa, que simula fac-similes de edições antigas. Mesmo sendo mais ou menos possível fazer algo de semelhante em digital, falta a um fac-simile digital a credibilidade de um físico, e não é fácil fazê-lo de forma a tornar a leitura descomplicada (ou até possível) em todos os dispositivos.

Porque outra parte da bibliofilia se alimenta da personalização dos exemplares, através de autógrafos e de outros detalhes. Sim, é certo que já existem experiências de autografia digital, mas têm pouca popularidade, e por um motivo simples que nada tem a ver com insuficiências tecnológicas: soam a falso. É muito diferente estar em frente de um autor a assistir enquanto ele assina um livro (ou mesmo que não se assista, desde que haja alguma prova de que foi realmente ele a fazê-lo naquele exemplar em concreto), e ter um ebook decorado com uma assinatura que o autor fez uma vez e depois ficou guardada num ficheiro algures, pronta a ser reutilizada quantas vezes for preciso.

O futuro que eu vislumbro, portanto, é feito de edição digital barata e relativamente banal em termos de formatos, a par de edição digital mais cara (porque mais exigente tecnicamente), que aproveita aquilo em que a tecnologia digital permite ultrapassar a experiência de leitura em papel, e livros físicos, entre os quais a edição barata praticamente desaparece e há uma aposta clara na qualidade de design e na personalização. Para a personalização, tecnologias como o print on demand serão provavelmente fulcrais, pois o print on demand, embora com um custo unitário que deverá ser sempre bastante superior ao da impressão tradicional (por causa das tais economias de escala; quão superior, ao certo, depende portanto das tiragens desta última, para livros de qualidade semelhante), permite fazer com alguma facilidade coisas como impressão nos locais de venda de livros que podem ser preparados até fora do planeta, numeração de exemplares e outras formas de personalização, como inserção de imagens ou até de palavras e frases específicas de um exemplar em concreto (ou, por outro lado, de anúncios personalizados — nem tudo é bom).

E, como é óbvio, também a relação dos autores com toda a indústria tenderá a mudar. Tempos houve em que os autores dependiam quase por completo das editoras para conseguirem chegar ao público. Hoje já não é assim, e tenderá a sê-lo menos ainda no futuro. A panóplia de plataformas, gratuitas ou quase, de que os autores podem dispor para contactar diretamente com os seus leitores faz com que a relação entre autores e editoras tenha tendência a tornar-se bastante mais equilibrada. Julgo que sempre haverá vantagens nessa relação para determinados tipos de conteúdo, muito em particular os que têm um público potencial mais amplo ou aqueles que requerem uma multidisciplinaridade mais elevada, mas para outros tipos os autores tenderão a passar cada vez melhor sem editoras, fazendo as coisas sozinhos ou com o auxílio de fornecedores de serviços, diferentes das editoras atuais.

No futuro que entrevejo, a relação autor-editora será mais simbiótica do que é hoje, e a maior parte dos autores que leva a sério o que faz editará de formas variadas aquilo que produzir. Umas vezes com recurso a editoras, em especial àquelas com dimensão suficiente para lhes poderem ser realmente úteis, outras vezes sem recorrer a elas, umas vezes digitalmente, outras em livro físico. Não só porque têm mais opções disponíveis na hora de decidir o que fazer, como até porque para fazer certas coisas certas formas de edição têm vantagens claras relativamente à edição tradicional através de editoras.

Eis um exemplo do que acabo de dizer:

Como escrevi acima, uma das tendências que vejo para o futuro da edição é a personalização. Esta pode ser em parte automática, mas para ter realmente valor deverá ser coisa feita à mão. Podemos encontrar um exemplo do que digo nas artes plásticas. Além dos quadros, pintados manualmente pelos pintores, terem um valor incomensuravelmente superior às reproduções desses quadros, o mesmo acontece com formas artísticas em que alguma reprodução já está implícita, como a serigrafia. Séries limitadas de serigrafias, assinadas pelo autor, têm um valor muito superior a reproduções executadas mais tarde. De igual forma, o livro personalizado pessoalmente tem algo de original e único que falta por completo aos automatismos.

Ora, hoje em dia, quando se personalizam livros, isso geralmente acontece em eventos específicos com local específico porque só assim é possível juntar o autor a livros produzidos em série e ao público que os comprou. Mas se um autor pretender personalizar toda uma edição com mais que um rabisco, isto é, personalizar cada livro para cada comprador em particular, depara com dois problemas: não pode usar o sistema de vendas normal, que está concebido para uma relação inteiramente anónima e distante entre autor e consumidor, e só o poderá fazer se toda a edição lhe passar pelas mãos. O primeiro problema implica a necessidade de vendas diretas, o segundo impede na prática lidar com qualquer editora que não esteja sedeada perto do lugar onde o autor vive. Noutros tempos, seria quase impossível fazer-se algo deste género. Ainda hoje é muito difícil fazer algo do género se se optar pela edição tradicional, em especial se não se encontrar nas imediações de onde se reside nenhuma editora disposta a pegar na obra. Mas agora há forma de o fazer: a autoedição com impressão em print on demand torna a ideia muito possível. Até porque para se personalizar uma edição inteira esta não poderá ser muito grande, e o POD está otimizado precisamente para pequenos volumes de edição.

Não me custa nada a imaginar, portanto, situações em que a mesma obra seja editada ao mesmo tempo (ou sucessivamente, como acontece no mercado americano com as edições em capa dura e em capa mole) em edição barata e digital, em edição física, industrial e mais elaborada, e em autoedição personalizada vendida em venda direta.

Outra coisa que não me custa nada a imaginar é autores de sucesso montarem estruturas próprias que ultrapassem o simples binómio autor-agente que tem sido tradicional em mercados desenvolvidos. É algo que tem vindo a acontecer no mundo da música de há uns anos a esta parte, e a música, não sendo um guia perfeito para o que poderá acontecer com a literatura porque possui uma componente performativa que falta à escrita, é um bom lugar onde ir buscar ideias sobre o impacto que as novidades tecnológicas poderão ter na indústria porque sentiu esse impacto mais cedo e portanto lhe respondeu também mais cedo.

No fundo, e em resumo, que isto já vai bastante longo, o que julgo que vai acontecer no futuro é uma substituição do modelo quase único que foi característico da era industrial por uma multiplicação de formas de edição, em que esse modelo industrial continua a existir mas convive num pé bastante mais igualitário com uma série de outros modelos, cada um com as suas próprias vantagens e desvantagens, cada um razoavelmente especializado em tipos de edição ligeiramente (ou algo mais que ligeiramente) diferentes uns dos outros. Será um futuro talvez algo confuso, mas interessante.

E vem a caminho. Quer eu acerte nas previsões, quer me engane, uma coisa é certa: ele vem aí com todas as respostas.

E pronto. Esta série chegou ao fim. É mais ou menos isto que eu penso agora sobre edição, livros, editoras, essas coisas boas de que a gente gosta. Sublinho o agora. Não há nenhuma garantia de que o que penso esteja certo — continuo a aprender todos os dias, e pretendo continuar a fazê-lo até ao dia em que ceder a outra coisa qualquer os 0,1 metros cúbicos de universo que ocupo.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Lido: Assassinos de Sobreiros

Assassinos de Sobreiros (bibliografia) é um conto de João Ventura, provavelmente influenciado por um célebre acontecimento ocorrido há quase uma década, em que um então governante do CDS mandou (ou deixou?... não me lembro bem) abater um montado praticamente inteiro numa zona em que se faziam sentir apetites imobiliários. Montado que, relembre-se, está protegido por lei.

Aqui temos uma história parecida ainda que com uma diferença de monta: passa-se no futuro. Os sobreiros não são propriamente as pachorrentas árvores que conhecemos hoje e também não estão propriamente indefesos; pelo menos semiconscientes, são protegidos por tecnologia de ponta, da qual uma cerca eletrificada será provavelmente a mais pré-histórica, e por equipas de assalto baseadas na casa grande da herdade. Os bandidos, por seu lado, também não são propriamente os broncos que fizeram o trabalhinho sujo pelo ex-governante do CDS, mas gente (algo) mais sofisticada. Tudo, aliás, é não só mais sofisticado, mas mais drástico também, provável resultado da produção de cortiça estar mais ameaçada do que hoje no futuro ficcional de Ventura.

No entanto, isto é especulação da minha parte. Que nada nos seja dito sobre os motivos que levam aqueles homens a atacar (ou melhor: a tentar assassinar) os sobreiros é provavelmente a maior carência deste conto. Tudo é deixado um pouco no ar, o que faz com que pareça algo gratuito. Tirando isso, é um conto bastante interessante, cheio de ideias curiosas e bem construído. Ah, sim, e muito bem rematado também.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Da edição presente e futura: O digital

(Quem vem seguindo isto, já sabe. Para os outros, este texto vem na sequência de outros seis: este, este, este, este, este e ainda este.)

O digital surgiu como uma enorme promessa. É escusado explicar porquê pela enésima vez; os motivos são múltiplos e de monta, desde o embaratecimento radical do processo de divulgação do que se faz a obter-se instantaneamente uma audiência potencial do tamanho do planeta, ou pelo menos da parcela do planeta que está interconectada digitalmente e compreende a língua que o autor usa, passando pela imensa abreviação do tempo que pode decorrer entre escrita e leitura e por muitos outros eteceteras que já foram dissecados até à exaustão por centenas de outros escribas.

Também os problemas que o digital pode gerar ou amplificar foram já discutidos até ao adormecimento, ainda que nem sempre de forma inteligente. É verdade demonstrável, por exemplo, que o digital potencia a pirataria de obras literárias, mas afirmações de que ler em aparelhos digitais não é ler, entre outras, já caem no campo da parvoíce pura e simples. Vale a pena, portanto, refletir sobre as questões relacionadas com a pirataria, mas afirmações parvas como a exemplificada acima não devem merecer mais que um encolher de ombros, um suspiro e um abanar de cabeça.

Pessoalmente, tenho, desde o início, grandes esperanças no digital. Por isso, depressa comecei a editar online, primeiro com o E-nigma, depois com outros projetos. Mas foi com igual rapidez que fui confrontado com algumas das características perversas deste admirável mundo novo, tanto enquanto autor, como enquanto editor.

O primeiro grande choque foi um caso de pirataria envolvendo os textos publicados no E-nigma, textos de cópia livre e venda proibida, assim mesmo identificados com toda a clareza, que não obstante andaram a ser vendidos em CD-ROM no Brasil, em conjunto com uma quantidade elevada de outros textos obtidos quer da web, quer de livros em papel. Foi em parte esse choque que levou primeiro à perda de ânimo e depois à paralisação do trabalho no site.

O segundo grande choque deu-se mais tarde, com a forma como um par e meio de grandes empresas abarbataram praticamente todo o mercado de edição digital, esmagando tudo à sua passagem, fazendo uso de táticas comerciais no mínimo duvidosas e criando um padrão de relacionamento entre os leitores e a tecnologia digital de leitura que na prática exclui tudo o que não lhes passe pelas mãos. Aquilo que a princípio mais me atraiu para o digital — a enorme liberdade que ele deveria proporcionar — é posto em causa com todos os sistemas de digital rights management (que na prática fazem com que as pessoas não comprem realmente as obras, mas as aluguem, por mais que julguem o contrário), com todos os formatos exclusivos de determinados aparelhos, com todas as capelinhas geradas na procura de conteúdos, com todas as alterações unilaterais de condições, de preços, de relação autor-editor, etc., e etc., e etc.

Como consequência, hoje o meu entusiasmo pelo digital está bastante atenuado. Vejo a edição digital não como uma substituição da edição tradicional, como cheguei a ver em tempos, mas como um complemento, com objetivos fundamentalmente diferentes. Para mim, hoje em dia, e tal como se tem vindo a apresentar, o digital é o lugar das experiências descomprometidas e da divulgação, das ideias mais ou menos em bruto, das obras raras ou fora do mercado, da ficção curta e ultracurta, das coisas para ler em viagem mas não necessariamente para guardar, daquilo que, de outra forma, se torna demasiado difícil, ou impossível, de encontrar.

E do que é gratuito.

Porque me recuso a pagar por coisas trancadas em DRM. Porque não aceito estar a gastar dinheiro em ebooks que depois podem desaparecer dos meus dispositivos de leitura porque uma empresa sem rosto, algures, decide de repente mudar as regras. Ou um autor, com rosto mas também com pouco respeito pelos leitores. Porque não acho que seja assim que as coisas devem funcionar. Porque não acho que seja essa a melhor forma de transferir para os criadores alguma compensação financeira pelo seu trabalho.

Mas acho, por outro lado, que essa compensação financeira é necessária. É em parte uma questão moral, a eterna justiça que existe em ser-se pago por um trabalho de que outros desfrutam. Mas não é só isso; O profissionalismo, mesmo aquele profissionalismo mais imaginário que real dos escritores que vendem um conto de vez em quando e conseguem com essas vendas obter no máximo umas dezenas de euros por ano (ou por década), é necessário para haver uma produção de conteúdos ao mesmo tempo regular e razoavelmente bem trabalhada. É uma questão de estímulo, mas não é só uma questão de estímulo. É também uma questão de responsabilização do autor. Produzir para um público que não paga é, queira-se ou não, goste-se ou não, diferente de produzir para um público que paga, tal como produzir apenas para o próprio umbigo é diferente de produzir para o umbigo e um público, seja este qual for.

Além disso, como também acabei por ir descobrindo aos poucos, o próprio público dá mais valor àquilo que tem de pagar do que ao que obtém gratuitamente, por mais invertida que a relação de qualidade por vezes seja. Por vezes, dar tudo de mão beijada é contraproducente. Para obter reações realmente equilibradas, faz-se também necessário um certo equilíbrio entre a facilidade e a dificuldade (em sentido lato, incluindo nela coisas como o preço) na obtenção das obras. E também se dá mais valor ao que é palpável, ao que tem a solidez de um objeto tridimensional que se pode manusear, do que ao imaterial, à simples informação contida em dispositivos eletrónicos, mesmo quando o conteúdo é nestes bem mais elaborado e completo do que naqueles. É em boa parte daí que vem a persistente má fama de iniciativas como a wikipédia, por contraponto às enciclopédias tradicionais (apesar destas serem as primeiras vítimas reais do digital no que toca aos livros), mesmo havendo abundância de estudos que não encontram diferenças significativas no rigor factual entre uma e as outras.

A psicologia, provavelmente, explica.

É na questão financeira que o digital mais falha, porque não se arranjou ainda nenhuma forma genérica de o financiar de forma sustentada sem recorrer a coisas como o DRM, que violam alguns direitos básicos de quem consome. Há experiências com algum sucesso em certos casos, mas nenhuma delas é aplicável a tudo, ou sequer à maioria dos casos. Experiências de serialização, de crowdfunding, de disponibilização parcial de conteúdos, de publicação atrás de paywalls, etc., etc., etc. Todas resultam às vezes, nenhuma resulta sempre, e todas trazem consigo problemas que por vezes são suficientemente sérios para as porem em causa.

E tudo isto (aqui tratado assumidamente pela rama, porque se fosse aprofundar teria tanto ou mais pano para mangas como o que tenho gasto ao longo destes artigos) é suficiente para me levar a continuar a preferir a edição em papel à digital, seja como leitor, seja mesmo como autor (o que é algo paradoxal, bem sei, tendo em conta que publiquei mais material digitalmente do que em papel). Tenho um tablet, e leio no tablet. A minha experiência diz-me que não existe nenhuma diferença de monta entre a experiência de leitura no tablet ou em papel, a não ser o facto de ser possível, com o tablet, ler à noite e às escuras. Mas continuo não só a ler mais livros tradicionais como a preferir fazê-lo.

Por outro lado, tecnologias como o print on demand e a sua evolução lógica, máquinas de impressão e venda a pedido para instalar em livrarias, bem como sistemas de leitura eletrónica cada vez mais próximos da experiência da leitura em papel, estão a tornar crescentemente difusa a fronteira entre o papel e o digital. Não me custa nada, portanto, a imaginar um futuro relativamente próximo em que as duas coisas estejam praticamente fundidas. Mas aí já estamos a falar do futuro, e o futuro fica para amanhã.

Como é, aliás, da sua natureza.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Lido: Monólogo Informático

Monólogo Informático é mais um texto piadético de José Alberto Braga. Este consiste de uma sucessão de trocadilhos com termos informáticos em forma de carta, com menos de uma página, seguidos de página e meia de explicações sobre o real significado desses termos. Coisa antiga, há que sublinhar; isto data de antes do século novo. E nem sempre correta. Mas o problema principal que vejo neste texto nem é esse; é não ver a mínima graça na carta entrocadilhada. Às vezes o humor de Braga parece-me demasiado óbvio ou forçado, e este texto é um excelente exemplo disso mesmo. Não. Nem sequer começou a encher-me qualquer espécie de medida.

Textos anteriores deste livro:

Da edição presente e futura: Como publicar nos dias que correm?

(Este texto vem na sequência de outros cinco: este, este, este, este e mais este.)

Com a edição tradicional em crise, sufocada por um mercado encolhido artificialmente a toque de austeridade, sobrecarregada pela penetração cada vez maior das publicações e leitores eletrónicos, pressionada pela facilidade com que se importam livros na língua original e pelos preços a que mercados bem mais pujantes do que o nosso conseguem chegar, mercados em que não só as economias de escala criadas pelas grandes tiragens, como a valorização do euro face a outras divisas, como até coisas tão básicas como o próprio preço do papel, geram um forte impacto no preço de venda ao público, embaratecendo-o significativamente, publicar é uma aventura de alto risco para qualquer autor. As editoras a sério não têm margem para grandes aventuras, e, compreensivelmente, retraem-se. Umas entram pelo território das epses (ver aqui) e contrapõem contratos duvidosos a quem lhes propõe projetos, outras simplesmente recusam coisas que noutros momentos aceitariam. E assim por diante.

Neste ambiente, qual será a melhor forma de publicar?

A minha resposta a esta pergunta é: depende.

Depende não só do tipo de autor que se é, do tipo de obras que se produz, mas até de cada obra em concreto. Depende de se estar, ou não, disposto a entrar no jogo das modas, das séries, do que vende, do que tem, à partida, mais possibilidade de ser aceite por alguma editora a sério, publicado e ser depois aceite também pelo público. Depende de se ter plataformas de divulgação externas ao ato literário ou não, e em particular de se ser, ou não, uma cara conhecida da TV. Depende de outras coisas menos verticais, do velhíssimo tráfico de influências que permeia toda a sociedade tuga e ao qual o meio literário não escapa nem nunca escapou; de contactos, de conexões, da capacidade de cada um para o sorrisinho e a palmadinha nas costas hipócrita nos momentos convenientes, dos amigos e dos desamigos. Depende da obra ser prosa ou poesia, contos ou romance ou outras coisas. Depende da obra ser enquadrável no mainstream ou ser obra de género, e de que género. Depende de haver nela personagens históricas reais ou não, depende de conter conspirações mais ou menos relacionadas com o Vaticano, depende de poder ser vendida como obra juvenil (ou, como está agora na moda por todo o lado, “young adult”) ou ser demasiado explícita ou elaborada para isso (e, num aparte, ainda estou para perceber quando foi que os jovens se tornaram, para as mentes marqueteiras, gente incapaz de compreender coisas com um mínimo de profundidade). Depende de ser vácua ou substantiva. Depende do seu conteúdo político ser claro ou encapotado, depende de ser politicamente correta ou não e para quem é politicamente correta (a malta tende a esquecer que o que é politicamente correto para um fascista não o é para um democrata e vice-versa). Enfim, depende.

Se vieram aqui ter em busca de conselhos quanto ao que fazer com o que vocês escrevem, o único que vão levar é: tentem evitar colaborar em fraudes. Fingir que publicam por “editoras” a quem pagaram a edição até pode enganar os mais desatentos, mas não engana mais ninguém. O prestígio que podem julgar assim ganhar só vos trará desprestígio. É melhor fazerem as coisas sozinhos, se puderem e souberem. Muitos de nós damos muito mais valor a alguém que apresenta as coisas como o que são, do que a quem procura enganar o próximo com aldrabices, mesmo que estas sejam razoavelmente benévolas.

Mas mesmo assim, há situações em que a opção certa é uma epse. Porque — lá está — depende. Não serão muitas, mas consigo imaginar algumas. Um autor que não saiba fazer nada além de escrever, nem paginar, nem encapar, nem tratar de ISBNs e outras coisas, talvez tenha alguma vantagem em meter-se numa epse. Por outro lado, mesmo assim, talvez não: há empresas de print on demand, basicamente um tipo específico de gráfica, que fornecem auxiliares para esse tipo de preparação. Exigem alguma aprendizagem, é certo, mas não muita. Mas enfim: se um autor não quer ou não consegue fazer essa aprendizagem a sua melhor opção talvez seja mesmo uma vanity, ainda que isso só aconteça devido à inexistência — que eu saiba — de empresas que prestem serviços editoriais sem se tentarem fazer passar por editoras. De resto…

De resto, o que resulta com fulano pode não resultar com beltrano, e o que resulta com este provavelmente não resultará com sicrano.

Mais: o que resulta com um romance escrito por fulano pode não resultar com uma coletânea de contos ou um livro de poemas também escritos por fulano. Porque os interessados num romance não são necessariamente os mesmos que estarão interessados num livro de contos, e estes também não coincidem por inteiro com os interessados num livro de poesia. Se as pessoas a que se vai chegar variam, é natural que a forma de chegar até elas varie também.

O que vos posso dizer é a abordagem que eu, sabendo o que sei hoje (que, é bom sublinhar, é diferente do que sabia ontem e do que saberei amanhã) não só sobre o modo de funcionamento de tudo isto mas também sobre coisas mais técnicas como como paginar um livro ou como conceber uma capa, decidi seguir.

Para começar, para mim, epses nunca. Pedir-me dinheiro para publicar é a maneira mais rápida de me porem bem longe, seja o livro qual for. Nunca verão o meu nome associado a edições dessas empresas, com a possível exceção de antologias pagas pelos organizadores, uma vez que quem submete contos a certas publicações geralmente não tem voz na forma como elas acabam por ver a luz do dia. Tirando essa eventualidade particular, nada de editoras com aspas por aqui.

Em segundo lugar, as experiências que tive com pequenas editoras ensinaram-me que não vale a pena perder tempo com a maioria. Duvido que alguma vez volte a propor um livro a alguma pequena editora, a menos que a veja a trabalhar consistentemente bem durante algum tempo. E mesmo assim é duvidoso, porque tenho plena consciência de que se o fizer o mais certo será não ganhar um tostão furado com o livro e, se é para não ganhar nada, se calhar mais vale disponibilizar tudo gratuitamente na Internet ou nalguma das várias plataformas de ebooks que vão surgindo por aí.

Restam as médias e grandes editoras ou a autoedição. Ou por outra: tirando algumas opções mais exóticas (como a edição cooperativa ou o crowdfunding, que no entanto não me parecem adequadas para o que eu faço), as que restam são essas duas.

Conhecendo a atitude dos meus caros concidadãos para com a leitura de contos, provavelmente também não perderei tempo a tentar propor a nenhuma editora a edição de coletâneas, a menos que se trate de contos suficientemente interligados para poderem ser vistos como uma espécie de romance. Tenho um projeto em andamento que cai nessa categoria, com duas histórias já escritas e publicadas, outra parcialmente escrita e uma mancheia de outras planeadas, tudo no mesmo universo e na mesma sequência temporal. Se e quando estiver tudo escrito, é possível que proponha esse livro a alguma editora (e tenho uma ideia bastante concreta de qual será a primeira), mas só decidirei na altura. Tirando isso, para editoras a sério reservo romances.

Romances que não sejam demasiado bizarros, entenda-se.

O resto? O resto sairá em autoedições. Sei paginar livros, consigo fechar textos já razoavelmente limpos de gralhas, e sei que é necessário revê-los várias vezes para limpar ao máximo as que ficarem no manuscrito definitivo. É trabalho chato, mas que eu sei fazer, até porque já o fiz profissionalmente. O meu ponto fraco são as capas, mas a verdade é que até eu consigo fazer capas melhores do que algumas das aberrações que aparecem publicadas por algumas vanities, e sem usar imagens obtidas por meios menos que lícitos na internet, como algumas empresas fazem. O mais certo será nunca conseguir criar uma capa realmente boa, mas não é menos certo que não serão minhas as piores capas do ano. É quanto baste para me contentar, até porque sempre fui de opinião de que num livro de ficção o que é realmente importante é… a ficção que ele contém.

Dito isto, devo acrescentar que estou aberto a ouvir quem me quiser tentar convencer a seguir outras vias. Como disse, o que sei hoje não é o que saberei amanhã. E também nada impede que se faça uma edição por uma via e uma segunda por outra. Mas para já as minhas opções são estas, pelos motivos expressos acima e por mais um par de outros que, como se prendem com o que vejo ser o futuro da edição, ficarão para o artigo em que falar dele.

Isto, contudo, e volto a sublinhar, sou eu. Outros autores terão necessariamente outros caminhos a seguir. É este o ponto que quero deixar claro: os caminhos de publicação são múltiplos, variados, e dependem fundamentalmente das obras e dos autores, sem que haja necessariamente relações de superioridade ou inferioridade entre eles. Tendo em conta todo o lixo que se tem publicado por editoras convencionais, é no mínimo ridículo achar-se que uma edição convencional é, por princípio, melhor que uma não convencional. No máximo terá uma maior probabilidade de possuir qualidade do que uma edição de autor, mas probabilidade é uma coisa, certeza outra bem diferente.

E porque é que eu acho importante sublinhar este ponto? Por um motivo simples: porque no afã de conseguirem editar de forma “prestigiosa” são demasiados os autores que se sujeitam a condições degradantes, nos quais toda a gente envolvida no processo editorial consegue ganhar algum dinheiro menos eles, precisamente os produtores dos conteúdos sem os quais todo o processo descarrilaria. E porque assim não são só eles que perdem, mas todos nós, todos os autores. Não cedam tão facilmente a chantagens. Lembrem-se de que os autores são o combustível da edição. Não devem nunca ser os mais prejudicados com ela.

Voltarei provavelmente a falar disto quando falar do futuro. Não será o próximo artigo, mas o outro a seguir.

O próximo será sobre o digital.

Amanhã. Talvez.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Lido: Enforcamentos

Enforcamentos é um texto de José Alberto Braga em que, com uma certa graça, com uma dose nada desprezível de humor negro, ele descreve quase comercialmente os vários nós que "o candidato ao enforcamento" pode encontrar, mencionando sobre cada um as vantagens, as desvantagens, e a que tipo de potencial enforcado ele é mais adequado. Ou seja, a que segmento do mercado se destina. Não é texto de gargalhada, também não é texto particularmente interessante no que toca à literatura, mas é, parece-me, um dos melhores textos do livro até agora.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Da edição presente e futura: Edições de autor

(Este texto vem na sequência de outros quatro: este, este, este e ainda este.)

O chato de se fazerem alterações a meio de um texto longo é elas exigirem muitas vezes fazer-se também alterações no resto do texto. E nem sempre há tempo para isso, o que também é chato. A consequência é deixar-se para "amanhã" o que só fica pronto dias depois. Como este artigo.

Mas ficou pronto. No fundo, é o que realmente importa. Vamos lá a ele.

Se pedissem aos intelectuais portugueses uma lista dos dez escritores mais importantes do século XX, muitos incluiriam nessa lista o nome de Miguel Torga. Quando andei na escola, ler os seus Novos Contos da Montanha era obrigatório, e eu, que sempre resisti com toda a determinação a leituras obrigatórias (Os Maias, Os Lusíadas, Viagens na Minha Terra, etc. só muito mais tarde foram lidos de fio a pavio, e tenho vagas recordações de outras leituras teoricamente obrigatórias que até hoje não fiz), até li esse livro sem grande ranger de dentes. Não foi essa a leitura obrigatória que realmente me deu prazer — esse proeza coube a Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes — mas foi a segunda menos desagradável. Acho até que gostei, embora a contragosto. Eu, que odiava ler por ser a isso obrigado, e que abominava qualquer leitura obrigatória por uma questão de princípio, não me cheguei a render a Torga, como rendi a Pereira Gomes, mas não faltou muito.

Torga foi um grande escritor.

E editou toda a sua obra em edições de autor.

É provável que o principal motivo para isso tenha sido a recusa em submeter previamente os seus livros à censura, mas julgo que Torga nunca o esclareceu inequivocamente. Uma coisa é certa: escritores do nível de Torga, mesmo num momento como este, em que os condicionalismos económicos fazem com que na hora de decidir o que publicar a qualidade perca em toda a linha para o potencial comercial, não têm problemas em encontrar editoras. A razão para Torga enveredar pela autoedição, portanto, não foi não encontrar editoras interessadas em publicá-lo.

Este é o velho cliché que se associa sempre às edições de autor. Se alguém se autoedita, pensa quem pouco sabe, é, tem de ser, porque ninguém quer editá-lo. Mas a verdade, como sempre acontece, é bem mais complexa do que isso, e existe uma multiplicidade de motivos possíveis para se virar as costas às editoras e tratar de tudo sozinho ou com alguns amigos.

Obviamente que muitos o fazem por serem sido recusados. Contudo, no ponto em que as coisas estão hoje em dia, só não edita por uma editora (ou “editora”) quem não quer. Ainda que nem sempre assim tenha sido, hoje em dia há no mercado tantas empresas prestadoras de serviços editoriais (o que dá a sigla de EPSE… olhem… e se lhes chamássemos epses em vez de vanities?) disfarçadas de editoras que só fica de fora quem quer ficar de fora. E motivos para isso cada um sabe dos seus.

Pode ser por não se querer interferências editoriais na obra, mesmo que em Portugal não haja grande tradição de editores que trabalham os textos com os autores, melhorando-os, pelo menos segundo o que do seu ponto de vista é melhorar.

Pode ser por não se querer que todos ganhem com a edição mais do que o autor, o qual, mesmo quando alcança um contrato vantajoso, raramente consegue reclamar para si mais do que 10% do preço de venda ao público, e, se não é nome sonante, normalmente tem de contentar-se com muito menos, ou até com exemplares da obra gratuitos em vez de pagamento. Isto, claro, quando não lhe pedem que os pague do seu bolso.

Pode ser por se recusar a pactuar com a atividade das epses e nenhuma editora a sério ver no que escreveu potencial comercial, o que pode dever-se praticamente a qualquer coisa, desde qualidade a menos a qualidade a mais, passando por mil e um outros motivos. Um deles, em especial, é interessante: a inapetência do mercado por determinadas abordagens ou até por géneros inteiros, quer essa inapetência seja real (geralmente até é), quer seja apenas questão de perceção. É bem sabido, por exemplo, que há já muitos anos a edição de poesia vive basicamente de edições de autor, assumidas ou encapotadas. O que é irónico, tendo em conta não só que toda a gente diz à boca cheia que somos um país de poetas (poetas esses que, aparentemente, e apesar de o serem, não leem poesia), mas até porque antigamente era a poesia, não a prosa, a literatura considerada verdadeiramente nobre. Um escritor a sério era alguém capaz de desarrincar uns versos bem concebidos, não quem se dedicasse a esse ofício menor de escrever historietas em (pfff!) prosa.

Para dar um exemplo, António Ramos Rosa, outro nome de vulto nas letras portuguesas do século passado (e que perdemos há um par de meses apenas), iniciou a sua carreira em 1958, ao publicar um livro de poemas intitulado O Grito Claro. Há mais de meio século. Editora? Nenhuma. O livro foi editado por Casimiro de Brito, outro poeta algarvio, que resolveu tratar ele mesmo da edição de livros de poesia, seus e de outros poetas. Juntou-os numa coleção a que deu o título de “A Palavra”, e cujo primeiro número foi precisamente o livro de Ramos Rosa mencionado acima. A coleção foi saindo ao ritmo de menos de um livro por ano entre 1958 e 1964. O segundo volume foi Telegramas, de… Casimiro de Brito, o editor. Mais edição de autor do que isto não é possível. A esses dois livros e ao número 5, também de Casimiro de Brito, acabaram por fazer companhia obras de Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e… Candeias Nunes, meu pai, e o único dos cinco a que se pode chamar com propriedade obscuro.

Podia continuar a discorrer sobre exemplos de autoedição de alto nível, mas creio que não vale a pena. O ponto é: os motivos possíveis para se optar pela autoedição são múltiplos, muito mais do que esta breve lista enumera. A maior parte das obras autoeditadas é má ou amadora? Sim. Mas são-no todas? Não. Por isso reduzir um tipo inteiro de edição aos seus piores exemplos, como tantas vezes se vê fazer por aí, não é propriamente aquilo a que se poderá chamar inteligente.

E isto é especialmente verdadeiro em momentos em que é a contração do mercado que empurra quem se dedica a certas áreas literárias para a autoedição, por melhor que seja o que produz. Aconteceu com a poesia, mas está longe de só ter acontecido com a poesia. Aconteceu também, nos últimos anos (desde finais dos anos 90, mais precisamente), com algo que me toca bem mais de perto: a ficção científica, especialmente em forma de ficção curta. Mas se os escitores de FC tivessem continuado a escrever, autoeditando-se, estarímos bem. Infelizmente, não foi o que aconteceu. Muitos preferiram deixar de escrever e publicar a continuarem a fazê-lo através de edições de autor, as quais praticamente não têm existido. Não só porque autor que não escreve é autor que vai aos poucos deixando de saber escrever (a escrita exige um exercício constante), mas também, ou se calhar principalmente, porque só é possível ganhar e conservar um público quando se está presente no mercado, por mais que essa presença seja marginal.

E sim, também tenho culpas nesse cartório. O que nos leva à fase seguinte desta série de artigos: que perspetivas vejo eu, enquanto autor, na edição atual? Ou por outra: como e por que vias deverão os autores tentar publicar nos dias que correm?

Mas isso será amanhã, se houver tempo. Ou depois, se não houver.

sábado, 30 de novembro de 2013

É hoje! E não será hoje.

Deveria hoje publicar aqui mais uma parte da minha série de artigos sobre a edição presente e futura, mas umas alterações que fiz ao publicar a parte de ontem exigiram fazer também alterações na estrutura das próximas partes, e não tenho agora tempo. Terá de ficar para amanhã. Isso não será hoje.

Hoje é isto, às nove da noite, na Casa Inglesa em Portimão. O aniversário com aniversariante ausente, livros pelo meio e umas cervejinhas a acompanhar. Venha quem vier; eu lá estarei, sozinho ou acompanhado, pelo menos durante uma horita. Quem vier, já agora acrescento, vai poder ver uma novidade em primeiríssima mão.

E hoje é também o fim do prazo para isto. Se não fosse esta mania que toda a gente tem de escrever a computador, dir-vos-ia a propósito "força nas canetas".

A quem vier celebrar o meu velhote, até logo. A quem não vier, até amanhã aqui no blogue, ou até já nas redes sociais.

Lido: Excertos de Cá Vai Lisboa

Cá Vai Lisboa, romance de um tal Alface que eu desconhecia mas, pelo exemplo junto, provavelmente não devia, é aqui representado por quatro excertos de cerca de uma página cada. São nacos de prosa muitíssimo bem escritos, onde se conjuga na perfeição um oralismo cheio daquela vivacidade que a fala tem e a literatura muitas vezes gostaria de ter mas não consegue, cheio também de toques de um castiço lisboeta que é bem capaz de estar perdido para sempre, com rios de uma ironia que consegue ser ao mesmo tempo fina e javardolas e uma sofisticação no uso da língua que não está ao alcance de muitos. Isto, literariamente, é muito bom. Muito mesmo. Só não sei, porque os excertos não são suficientes para o aferir, se também o é na história que conta. Parece ser uma história marcadamente popular, ao jeito da Crónica dos Bons Malandros do Zambujal, mas os excertos não são suficientes para se perceber se é boa ou má, se o enredo é interessante, etc. Parece ser divertida. E fiquei certamente curioso. Mas sem garantias.

Textos anteriores deste livro:

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Da edição presente e futura: Fraude?

(Este texto vem na sequência de outros três: este, este e mais este.)

Olhemos um pouco mais de perto para o que faz uma editora a sério. Embora nem todas funcionem da mesma forma, até porque algumas são mais especializadas e outras mais generalistas e nem todas as secções do mercado livreiro têm um funcionamento exatamente igual, regra geral as editoras a sério fazem apostas em livros de retorno certo, ou quase, a fim de cobrir os prováveis (ou certos) prejuízos de apostas mais arriscadas. É daí que vem a cultura do best-seller que invadiu livrarias e supermercados. É também daí que vem a propensão para a série, e frequentemente para a série longa, que infetou boa parte da literatura mais comercial. O best-seller, em especial aquele que vende bem anos a fio, ou a série, na qual um livro se segue a outro mantendo desejavelmente um público fiel que quer saber onde a história vai desaguar, são as apólices de seguro da editora, aquilo que lhe permite manter alguma estabilidade de caixa e dinheiro para pagar a funcionários e colaboradores e para investir em compras de direitos, contratos nacionais, campanhas de marketing (que por sua vez alimentam os best-sellers), etc.

Em países como Portugal, a grande maioria dos best-sellers ou das séries é importada. São livros já testados em outros mercados que as editoras lutam por garantir para si, na esperança de resultarem também no nosso. Nem sempre resultam, e é aqui que reside o risco que este tipo de edição tem. Pode ser pequeno, o risco, mas também pode ser grande, quando a editora investe pesadamente num livro ou numa série que depois não dá o retorno previsto. Uma forma de diminuir ainda mais o risco é apostar em livros ou séries de livros associados a filmes ou séries de televisão de grande sucesso, mais raramente a outros media como os jogos de computador. Reduzir, apenas; na edição a sério não existe ausência de risco.

Outros best-sellers são nacionais: escritores (e “escritores”) com público praticamente garantido à partida, seja pela sua relevância cultural, seja porque são caras conhecidas de outros media, e também aqui o risco existe, se bem que ao editar um livro do Saramago, do Lobo Antunes ou do José Rodrigues dos Santos a editora tenha à partida alguma garantia de vendas significativas.

Chocados com a mistura entre Saramago, Lobo Antunes e JRS? Não fiquem, que na verdade a qualidade pouca influência tem em tudo isto. O best-seller tanto pode ser um livro de um prémio Nobel como pode ser uma biografia do Cristiano Ronaldo ou porno-chanchadas em tons de cinza, passando por uma série de pontos intermédios. Não importa o que seja, basta que se venda bem para que o efeito que tem sobre o funcionamento da editora seja praticamente igual.

(Só não é exatamente igual porque a cada edição está associada uma certa quantidade de prestígio ou desprestígio, embora este fator esteja em acelerada erosão: editoras que há alguns anos se recusariam a publicar certas coisas por temerem o desprestígio a elas associado, hoje publicam-nas alegremente simplesmente porque lhes dá lucros que não obtêm de outra forma.)

Se os best-sellers lhes permitem algum desafogo financeiro, as editoras mais apegadas ao seu velho papel de provedoras do gosto dedicam-se a publicar livros que consideram importantes, relevantes ou de grande qualidade, pese embora a elevada probabilidade de resultarem em vendas fracas e prejuízos. Outras, as que ainda se preocupam com o prestígio, dedicam-se, precisamente, à edição de prestígio: obras premiadas, escritores malditos ou obscuros, etc. Outras estão-se nas tintas e publicam mais do mesmo, sempre mais do mesmo, preocupadas apenas com a obsessão puramente capitalista de ampliar os resultados de tesouraria e arranjar dividendos para entregar aos acionistas.

Mas isto só acontece se e enquanto a editora tem algum desafogo financeiro. Se este desaparece, por exemplo porque o país é entregue a um bando de loucos perigosos que lhe destrói a economia em nome de amanhãs que cantam que só eles conseguem vislumbrar, a primeira coisa a ser sacrificada são as edições deficitárias. E lá se vão os livros que em princípio vendem pouco, lá se vão os autores de prestígio, lá se vai a qualidade como fator razoavelmente decisivo na hora de escolher que livros publicar. Ficam só os best-sellers, que já não o são tanto como isso (passam a ser só sellers). Ficam só as edições que trazem consigo o mínimo risco possível, a máxima garantia de retorno.

O risco, contudo, nunca, nunca desaparece. É isso que todos estes livros e todas estas editoras, apesar de toda a sua variedade, têm em comum: cada edição é um risco, cada edição é um investimento, cada edição é, pelo menos em parte, um salto no escuro.

Depois, as editoras a sério têm de competir com empresas fornecedoras de serviços editoriais disfarçadas de editoras. Estas últimas não correm riscos ou, por outra, o único risco que correm é faltarem-lhes escritores prontos a pagar para verem a sua produção em livro (e estes nunca parecem faltar). Podem vender um total acumulado de zero, que continuam calmamente a funcionar como se nada fosse e a lançar para o mercado obra atrás de obra, quantas mais melhor, porque cada obra “editada” corresponde a xis que entra nas contas bancárias da empresa.

Tenho uma historiazinha pessoal que mostra o tipo de atitude que se pode esperar quando a edição está paga aconteça o que acontecer às vendas. O meu primeiro livro, fruto de um prémio num concurso literário, foi publicado numa edição paga pela entidade que promoveu o prémio. Por conseguinte, a editora nunca se preocupou em tentar vendê-lo, tratou a edição com total indiferença. Chegou até ao ponto do ridículo quando uma conhecida minha se dirigiu à sede da editora — segundo julgo saber, tem livraria própria — para comprar um exemplar, e o funcionário lhe disse que esse livro não existia. Que não existia. Foi preciso ela insistir, dizer até que conhece o autor, para lá lhe arranjarem o exemplarzinho. O qual, milagrosamente, passou de repente a existir.

E é basicamente isto que estas editoras fazem. Põem os livros cá fora, mais ou menos a trouxe-mouxe e com pouco interesse em vendê-los porque pura e simplesmente não precisam: já têm o lucro garantido com a própria edição, podem partir para outra. O autor, que pagou, que trate também das vendas. Se quiser recuperar algum do seu dinheiro.

Aqui reside a primeira parte da fraude. Porque não são raros os autores que vão ao engano, julgando que os seus livros serão distribuídos como os de uma editora a sério, julgando vir a poder encontrá-los nas livrarias, julgando até, por vezes, que à edição vem associada alguma espécie de marketing. Por vezes, isso é-lhes explicitamente prometido, outras vezes é apenas sugerido, outras nem sugerir é preciso; basta deixar que a ingenuidade e a inexperiência da grande maioria das pessoas que embarca na fraude faça o que tem a fazer.

Depois há a parte em que os próprios autores são cúmplices, quando pagam a edição e depois se apresentam como autores de um livro publicado pela editora Tal. Como se a editora Tal tivesse analisado o manuscrito, o tivesse considerado digno de publicação e o tivesse publicado depois de passar por todo o processo por que passam os livros publicados por editoras a sério, quando na verdade o que a “editora” Tal faz é dizer dá cá o dinheirinho, toma lá o livrinho. Tem havido casos de autores que resolveram testar até que ponto chega a indiferença com o tipo de lixo que acaba publicado, propondo a edição das maiores porcarias que conseguem criar, textos manhosos, propositadamente cheios de clichés, de buracos no argumento, de erros de português, de tudo e mais alguma coisa, e acabaram por obter a lógica resposta de oh, meu caro amigo, que obra magnífica, é claro que queremos publicá-la, o preço é xis.

Não, quem assim publica não tem livros publicados por editora nenhuma. Tem edições de autor encapotadas, pelas quais paga mais do que pagaria por uma edição de autor propriamente dita, e que apresenta fraudulentamente como edições a sério, procurando enganar o público, procurando levá-lo a crer que o que produziu teve o aval de uma empresa de profissionais do ramo.

As águas tornam-se ainda mais turvas porque várias destas empresas não se assumem. À primeira vista está tudo normal, mas nos bastidores circula dinheiro no sentido errado, ou são propostos contratos em que o autor é obrigado a comprar parte da edição (o suficiente para esta ficar paga, claro; tudo o que se vender depois é lucro). Mais fraude? Pois.

Se estas empresas não agissem assim fraudulentamente, se se apresentassem como prestadoras de serviços editoriais e não como editoras, nada teria a opor-lhes. As coisas seriam claras. As edições seriam o que são na realidade: edições de autor. E os produtores de conteúdos teriam empresas onde encontrar serviços que poderiam achar necessários. Os que não soubessem fazer paginação teriam onde contratar um paginador; os que precisassem de ilustrações saberiam quanto teriam de pagar pelo trabalho de um ilustrador; quem não fosse capaz de rever os próprios textos poderia ter acesso aos serviços de um revisor, e assim por diante. E depois editariam os seus livros em seu nome, sob a sua própria responsabilidade. Tudo claro, tudo às claras, tudo honesto.

Dir-me-ão: oh Jorge, mas toda a gente sabe que as edições de autor são uma porcaria…

Toda a gente poderá saber tal coisa, mas, se assim é, toda a gente sabe mal. Isso, contudo, já é conversa para amanhã. Por hoje, fiquem-se com um nome: Miguel Torga.

Lido: Momento de Poesia

Momento de Poesia é... hm... como é que eu descrevo isto?

Bem, é um texto de O Meu Pipi. E... hum... goza com a poesia concreta, ou seja, simula um poema concreto. Ou é um poema concreto, se calhar. Nem sei. E, sendo do Pipi, tem obviamente a ver com sexo. No caso, o feminino. E tem piada. Onde? Há que encontrá-la.

Acho que é isto. Acho que consegui descrever o Momento de Poesia. E nem tive de falar do subtítulo. Mas vejam por vocês mesmos, aqui. É só puxar para baixo.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Da edição presente e futura: Vaidade?

(É capaz de convir ler primeiro a primeira e a segunda parte disto)

Afinal foi ainda hoje, não amanhã.

Em inglês, empresas que tenham como clientes os produtores de conteúdos, em particular os escritores, têm um nome, depreciativo, do qual não gostam nem as empresas em si nem os que as contratam para pôr no mercado o que produzem: vanity press. Também não gosto deste nome, confesso, principalmente porque ele tende a subestimar grosseiramente o peso que a vaidade e os egos também têm na edição tradicional. Só quem não conhece escritores pode julgar que as vaidades estão restritas ao mundo das vanities e que só aí se encontra gente cuja noção de auto-importância é incomensuravelmente superior à sua importância real. Há exceções, obviamente, pois em tudo há exceções, mas de uma maneira geral um escritor (e provavelmente poder-se-ia falar aqui de artistas em geral) é um ególatra. Há uma arrogância intrínseca a acharmos que o que temos a dizer interessa a alguém ou tem alguma importância para o que quer que seja exterior ao confinamento do nosso crânio. Mas enfim, goste eu ou não, é isso que os anglófonos chamam a estas empresas. E têm sido elas a estar no centro das mais monumentais zaragatas dos últimos tempos.

E a minha opinião é:

Nada tenho contra elas. Desde que não se tentem fazer passar por editoras.

Porque, lá está, uma editora contrata produtores de conteúdos para satisfazer a procura dos clientes, os leitores, e não é isso que essas empresas fazem. O que essas empresas fazem é fornecer serviços editoriais aos produtores de conteúdos. Para a maioria pouco importa se um livro vende ou não, pouco interessa se existe procura ou esta não passa de miragem. O seu mercado não é o mercado livreiro, habitat das editoras propriamente ditas, mas o dos produtores de conteúdos em busca de ajuda. Que também ponham os livros à venda e que também obtenham lucros daí pouco importa: na generalidade dos casos não estão dependentes das vendas como as editoras a sério estão, porque as edições já foram pagas pelos próprios escritores. São estes quem corre todos os riscos.

E não são eles quem colhe as recompensas, se recompensas existirem.

Apesar disso, não, não tenho nada contra elas, por princípio.

Tal como nada tenho contra um escritor contratar um agente para potenciar a sua carreira. Ou tal como nada tenho contra um escritor que pretende autoeditar-se pagar a uma gráfica para lhe imprimir os livros. Não vejo nenhum mal em empresas fornecerem serviços editoriais, sejam eles quais forem, aos produtores de conteúdos e também não vejo nenhum mal em tentarem lucrar com isso. Se uma empresa pretende funcionar, digamos, como ponto de encontro entre produtores de conteúdos de vária índole — entre escritores e ilustradores, por exemplo — ou entre estes e outros técnicos envolvidos na produção de livros — paginadores, gráficos, etc. — e se conseguir sobreviver assim, atribuindo um preço a cada serviço e informando claramente o que os clientes obtêm desse serviço, parece-me uma atividade económica tão válida como outra qualquer. Nem sequer me parece mal que uma empresa dessas se faça pagar por serviços que se podem obter gratuitamente, como a obtenção do ISBN, desde que o preço não seja exorbitante, ou seja, desde que não ultrapasse um ou dois euritos: não deixa de ser trabalho que alguém tem de fazer, não deixa de exigir gastar-se algum tempo. Se um escritor acha que não tem tempo ou paciência para se informar sobre como se solicitam os ISBN e depois para os solicitar, não vejo que venha nenhum mal ao mundo que pague a quem o faça por ele… desde que não vá ao engano, desde que saiba que, se quisesse, o poderia fazer ele próprio sem gastar um cêntimo.

Não, o problema não está na existência dessas empresas e nem sequer na sua atividade. Está no modo como essa atividade se processa. Está em fazerem-se passar por editoras. Aí é que a porca torce o rabo. Aí é que há fortes elementos de fraude, da qual as empresas são culpadas e os produtores de conteúdos que com elas trabalham são ao mesmo tempo vítimas e cúmplices, embora a lista de vítimas não se restrinja a eles.

Dir-me-ão: fraude, Jorge? Não estarás a exagerar?

Não, não me parece que esteja. Amanhã explico. E desta vez fica mesmo para amanhã.

Lido: Vem Para a Minha Cave

Vem Para a Minha Cave é um conto de Ray Bradbury que mistura, ao típico modo bradburiano, a ficção científica e o horror. O cenário e as personagens são também bastante característicos da ficção do autor americano: algures nos subúrbios de uma qualquer cidade americana, uma família da classe média constituída por pai, mãe e um filho, bem integrada na comunidade. O filho, como milhões de outros, assina a Popular Mechanics, e é daí que lhe chega uma encomenda de cogumelos que se apressa a cultivar na cave. Bradbury vai-nos dizendo tudo isto, levando-nos pela mão, ao mesmo tempo que vai inserindo no texto, com toda a subtileza, notas cada vez mais dissonantes, cada vez mais inquietantes. Um amigo do pai que tem pressentimentos e logo desaparece e depois envia um misterioso telegrama, uma outra vizinha que se dedica, furiosa, a arrancar cogumelos que lhe infestam o jardim. Um... mas não, sobre o enredo nada mais digo. Acrescento apenas que o conto é muito bom, muito bem escrito, extremamente eficaz em gerar a inquietude que pretende gerar, e que há alienígenas metidos ao barulho.

Provavelmente.

Da edição presente e futura: Editoras?

Se caíste aqui sem passar pela casa de partida, aconselho a dar lá um salto primeiro.

Antes de mais nada, se calhar convém pensarmos um pouco sobre alguns termos para sabermos bem de que estamos a falar. Começando pelo termo “editora”, que se presta a numerosos equívocos, até por a realidade a que diz respeito estar em mutação.

A verdade é que as editoras que conhecemos são, basicamente, uma realidade do século XX. Nasceram no século anterior, de uma aliança entre as livrarias e as tipografias destinada a dar resposta à industrialização que a crescente classe letrada procurava nos produtos ligados à palavra, mas foi só no século XX, quando a alfabetização ganhou massa crítica, que realmente se geraram as condições para o florescimento da atividade editorial. São, portanto, empresas intimamente ligadas à industrialização, e uma das causas das suas dificuldades atuais reside precisamente aí. É que a industrialização tem como base a produção em série de grande volume de produtos iguais. É isso que embaratece o produto final por gerar economias de escala. Mas para que tal seja viável é necessário que haja procura massificada de produtos iguais. Produção em série necessita de procura em série. Ora, se hoje, como muitos defendem, estamos em plena transição para uma época pós-industrial, em que a procura se pulveriza e a unicidade recupera a primazia, a organização tradicional das editoras fica logo aí em xeque.

Mas esta é a parte puramente económica da coisa. Tem influência, por vezes decisiva, mas está muito longe de constituir alguma espécie de todo.

É que as editoras também serviram durante muito tempo como uma espécie de provedores dos leitores. Sim, é verdade que respondiam à procura. Mas, como a literatura é, sempre foi, uma atividade de prestígio, elas também formatavam a procura. Até os aspetos económicos ganharem a primazia que têm hoje (processo que veio decorrendo paulatinamente ao longo de décadas, por mais que pareça ter acontecido de repente há uns anos quando as editoras começaram a ser compradas quase por atacado por grupos económicos poderosos), autor que se visse publicado podia gabar-se de um certo relevo na cultura de um país. Autor que se visse publicado com consistência mais um pouco.

O que nunca obstou à publicação de lixo com fartura, claro. Porque sempre houve editores mais interessados na parte comercial da atividade do que na cultural, porque sempre houve editores com pouca ou nenhuma perspicácia para distinguir o que pode ter relevo cultural do que não o terá nunca, porque sempre houve quem se autoeditasse sem ter conhecimentos ou qualidade suficiente para tal, porque sempre houve amigos, conveniências, mau gosto, cunhas, jeitinhos, censura, gente politicamente influente a mexer cordelinhos, em especial nos tempos da ditadura, em que a resposta dada aos cordelinhos mexidos por gente politicamente influente podia acarretar perigos vários, enfim, um nunca acabar de impurezas a macular os róseos Olimpos que por vezes se gosta de apresentar, em especial quando se fala do passado.

As coisas nunca foram rosadas. Sempre houve sordidez no meio, golpes baixos, interesses em compita, o diabo a quatro.

E no entanto, as editoras aí estão. Passaram por tudo isso, umas morreram, outras transformaram-se, outras nasceram cheias de genica e ideias, e aí estão.

Só que há um problema: nem todas as empresas que se intitulam editoras merecem que as chamemos assim.

Simplificando bastante para que melhor se entenda: uma editora é uma empresa que é cliente dos produtores de conteúdos e que tem como clientes os leitores, e isto não muda quando a transição pós-industrial acontece. Para que se possa falar com propriedade de editoras, as empresas têm de funcionar assim. Compram os conteúdos aos produtores — escritores, designers, paginadores, tradutores, etc. —, pagando-lhes, e juntam tudo para criar um produto novo, que depois comercializam.

Só que não é assim que funcionam bastantes das autoproclamadas “editoras” que existem por aí, e tem sido esse o principal foco de polémica em tempos mais recentes. Há empresas, e em bom número, que por mais que se disfarcem de editoras não o são, pois têm como clientes não só os leitores, ou até não principalmente os leitores, mas os próprios produtores de conteúdos.

E há uma monumental confusão à volta delas. Da qual falarei amanhã.