quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

O ser-se português e a crítica literária

O ser-se português e a crítica literária

Não tive grande pachorra para mergulhar fundo na mais recente polémica estéril a sacudir a blogosfera, desta vez uma patetice qualquer sobre crítica literária, que opõe o José Mário Silva ao João Pedro George. Mas porque o assunto crítica literária até me interessa, acabei por deixar um comentário na Aspirina B, que transcrevo em seguida, e que complemento depois. O comentário foi este:

Com polémicas destas nunca se chegará a discutir realmente o que importa: que há crítica literária honesta, em que o crítico faz o melhor que sabe e pode para discorrer sobre os livros sem se prender em aspectos assessórios como o nome do autor, da casa editora, do tradutor, etc. e que há crítica literária desonesta, em que o crítico faz fretes a torto e a direito. E que saber separar uma da outra faz toda a diferença.

Um crítico honesto deve escrever sobre livros de amigos, sim senhor. Se eu tivesse o tipo de mentalidade do João Pedro George poderia dizer que ao não escrever sobre livros de amigos o crítico honesto está a prejudicar esses livros ao não lhes dar a "visibilidade" que os livros dos não amigos recebem. Como não tenho essa mentalidade, direi apenas que um crítico honesto deve escrever sobre todos os livros que achar que merecem que sobre eles escreva. Ponto final. Parágrafo.

Mas aqui há um mas: há muito pouca crítica literária em Portugal, quer seja honesta quer seja desonesta. Muito menos do que a que devia haver. Numa situação ideal, deveria haver alguém para escrever sobre todos os livros que aparecem no mercado, sem excepção. Nem que fosse meia dúzia de linhas. Fosse para dizer bem, fosse para dizer mal, fose para dizer assim assim.

E claro que como há muito menos crítica literária do que a que devia haver, inevitavelmente quem é ignorado pela crítica - e mais ainda quem é sistematicamente ignorado pela crítica - tem tendência a suspeitar de compadrios. É apenas humano que isso aconteça. Portanto os críticos também têm de estar preparados para apanharem de vez em quando com sovas deste tipo, por mais injustas que elas sejam. Vem com o território.


O complemento:

Há em Portugal uma doença gravíssima, que por vezes chega a parecer terminal: o amiguismo. É uma verdade insofismável, estende-se a todos os ramos de actividade, e tem consequências gravíssimas que levam ao predomínio da cunha sobre a competência, à escolha dos indivíduos com melhores relações sociais em detrimento daqueles que estariam melhor preparados para desempenhar as tarefas, a um ambiente em que, em geral, aquilo que se faz tenha muito menos importância do que aquilo que os zunzuns dizem que se faz. O boatério, o diz-que-disse, as comadres, são instituições enraizadas com séculos de experiência nos seus mesquinhos tráficos de influências. E a consequência mais óbvia é o péssimo desempenho do país em tudo aquilo que exige o profissionalismo de grupos razoavelmente grandes de profissionais.

Todos sabemos disso. E portanto não é novidade nenhuma o que João Pedro George acha que descobriu no meio literário português. O meio literário, como parte da sociedade que é, sofre precisamente dos mesmos sintomas do resto da sociedade: amiguinhos e inimiguinhos, capelinhas, mesquinharias variegadas, promoção da mediocridade pelos medíocres e uma atitude de enorme desconfiança perante os outsiders, em especial os outsiders com qualidade.

Agora, entendamo-nos: a solução para o problema não é tapá-lo com uma capa de hipocrisia, que é o que João Pedro George sugere. É, isso sim, torná-lo transparente e ter a inteligência suficiente para separar o trigo do joio. De pôr de um lado os que fazem crítica literária de forma honesta e do outro os que não a fazem, e de não crucificar os honestos por falarem de amigos. É que um crítico honesto é mais credível a escrever sobre um amigo do que um desonesto a escrever sobre o que quer que seja. Um crítico desonesto é frequentemente pago (em numerário, em géneros ou com emprego) para escrever sobre os livros que interessam da maneira que interessa, ao passo que pode perfeitamente acontecer a um crítico honesto ter de desancar livros de amigos. Um crítico que é desonesto não passa milagrosamente a ser honesto por não escrever sobre o que escrevem os amigos, nem passa um honesto a desonesto por fazer o contrário.

Assumir que alguém, lá porque escreve sobre os amigos, está necessariamente a ser sintoma da doença nacional é, isso sim, sintoma da doença nacional. É pôr, uma vez mais, a aparência das coisas à frente da sua substância. É julgar pelo embrulho e não pelo conteúdo.

Não conheço nem o João Pedro George nem o José Mário Silva. Não frequento os seus meios. Raramente leio o que escrevem fora da blogosfera. Ambos me parecem críticos razoavelmente honestos, o que, admito, pode ser apenas boa vontade de quem está grandemente por fora e que acha que devia haver muitas mais pessoas a fazer crítica literária neste país. Adorei a descasca do JPG à Margarida Rebelo Pinto. Mas neste caso, francamente, e tendo tido oportunidade de ler a crítica do JMS, parece-me que quem está doente de portuguesice crónica é o JPG, não o JMS.

E sempre gostava de saber se, digamos, no meio literário do Liechtenstein também há broncas destas. É que lá, se houver algum João Pedro George no principado, ninguém deve ser autorizado a escrever sobre ninguém. Porque, a não ser que ao crítico seja reservada a condição de eremita e lhe seja oferecida uma gruta nos Alpes, deverá bastar estar presente no lançamento de um livro para ficar a conhecer pessoalmente todo o meio literário do país. Já viram os tráficos de influências que isso deve gerar? Upa, upa!

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