segunda-feira, 19 de maio de 2008

A gralha deturpadora

No mundo dos corvídeos textuais, há gralhas e há gralhas. Há gralhas, as grqlhas, que são óbvias e evidentes. Fáceis de detectar, são ainda mais fáceis de eliminar porque não fogem, não se escondem, limitam-se a ficar ali, garridamente coloridas, como toureiros a dar a capa ao touro. Depois há um segundo tipo de gralha, a grslha, ou gralha camuflada, que é simples de corrigir quando detectada, mas nem sempre é fácil de detectar. É que se esconde, muito quieta entre o ruído de fundo, sem um movimento, sem soltar um som, dir-se-ia que sem respirar. E há ainda um terceiro tipo, a gralha deturpadora, ou grelha. Estas são as piores. Não só se escondem como se chegam mesmo a mascarar daquilo que não são. Não só tentam escapar ao caçador pelo imobilismo como fogem e se esgueiram para a toca, vestidas de coelhos ou toupeiras. Astutas e terríveis, as gralhas deturpadoras exigem atenção e rapidez no gatilho e não se compadecem com cansaços e noites mal dormidas. Chegam mesmo a aproveitar-se delas.

Matei uma recentemente. No livro que acabei hoje de traduzir uma personagem reflecte sobre a sua necessidade de matar um homem. Tenta convencer-se a fazê-lo, apesar de isso ir contra a sua consciência, porque precisa de ganhar a confiança das pessoas que o acompanham e que lhe exigem que o faça. E para isso pensa: "O homem está morto. Que importa que seja a minha mão a matá-lo?"

Mas antes da gralha morta, o que a personagem pensava era: "O homem está morto. Que importa que seja a minha mãe a matá-lo?" O que é algo de muito diferente. Muito diferente mesmo.

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