Se a coisa fosse assim tão heroica, teria sido mais interessante. |
As paragens mais recentes deste blogue estão explicadas e são, julgo eu, razoavelmente simples de entender. Giram todas em volta do constante rodopio de trabalho, saúde, saúde, trabalho que faz com que não reste muito tempo ou disponibilidade mental — nos últimos tempos tem sido subretudo esta última — para escrever, seja aqui, seja onde for.
Explicar a paragem de há já quase dois anos, pelo contrário, é tudo menos simples.
Em grande medida porque nem eu a compreendo bem.
E acreditem quando vos digo que passei muito tempo a tentar compreendê-la. Muito tempo mesmo.
Os factos em si não têm grande mistério. Mas os seus porquês são quase só mistério. Ainda hoje. Se fosse simples, este texto não seria tão extenso que achei melhor não espetar com ele integralmente na página principal.
Os factos são: de uma forma que na altura me pareceu ser muito súbita, no início de dezembro de 2022 senti que tinha acabado de chocar com uma parede de pedra bem rija. De repente, deixei de conseguir fazer fosse o que fosse relacionado com o texto escrito. Tentava ler e não parecia conseguir reter nada, vendo-me obrigado a regressar uma e outra e outra vez à mesma linha. Escrever mais que meia dúzia de palavras era um esforço monumental e a minha subjetividade dizia que nada do que escrevia fazia qualquer sentido, ainda que relendo agora o pouco que fui escrevendo nessa altura, a objetividade das coisas desminta essa ideia, pelo menos parcialmente. Era como se estivesse irremediavelmente exausto. Era como se tivesse nascido com uma quantidade limitada de capacidade para lidar com texto, e essa quantidade se tivesse esgotado. Era como se já não houvesse mais nada no meu reservatório interno de palavras.
Quem sabe quem eu sou, quem sabe o que faço para ganhar a vida, não terá grande dificuldade em imaginar o susto que isso me causou. Manusear palavras é como ponho o pão na mesa. Incapaz de o fazer, faço o quê?
Até hoje não sei o que causou isto. O que, como é bom de ver, não me deixa propriamente confortável. Mas sei que passou. Ou por outra, sei que foi passando ao longo dos meses que se seguiram, aos poucos e — pelo menos por enquanto — de forma incompleta.
O que fiz na altura, mais por instinto do que em resultado de alguma espécie de reflexão consciente, parece ter ajudado. Por instinto e também porque não havia mais nada que eu achasse que podia fazer.
A coisa apanhou-me entre trabalhos e, quando me foi proposto o trabalho seguinte, recusei. Não por ter chegado a alguma conclusão de que devia descansar, mas simplesmente porque não me sentia capaz de o levar a cabo. Deixei de ler quase por completo, ou mesmo por completo se não se considerar que passar os olhos pelo que vai aparecendo nas redes sociais conta como ler. Nem livros, nem artigos, nada. Deixei, obviamente, de escrever, e aqui até as redes sociais sofreram um corte significativo. Afastei-me, pura e simplesmente, do texto escrito. De certa forma, descansei. Joguei jogos. Fiz uma espécie muito tensa de férias, se é que se pode chamar férias a um período de cerca de dois meses em que a questão de "e agora o que raio vou eu fazer da vida?" não nos larga a cabeça.
Não me passou despercebida a semelhança que este vazio mental tem com alguns dos sintomas descritos para a covid, e mantive essa possibilidade no reservatório das explicações potenciais, mas há um detalhe que me levava e continua a levar ao ceticismo: até então ainda não tinha tido covid, a menos que tenha passado por uma qualquer infeção assintomática cujo único sintoma fosse mental, o que não sei bem se é sequer possível. E o ceticismo só se ampliou quando tive mesmo covid sintomático, em junho deste ano, e não sofri sintomas mentais semelhantes nem nada que se pareça.
Seja como for, em fevereiro senti pela primeira vez que estava a começar a voltar ao normal.
Aconteceu numa qualquer rede social, já nem me lembro ao certo qual (mas é provável que já tenha sido no Mastodon). Pela primeira vez em meses, pus-me a brincar com as palavras, fazendo uns trocadilhos muito, muito patetas que provavelmente terão levado quem os tenha lido a pensar qualquer coisa como "este gajo não está nada bem" ou então a julgar que tinha fumado umas coisas daquelas para rir.
(E não, também não foi disso: a atividade não me é desconhecida mas já se passaram décadas desde a última vez que a pratiquei.)
Em março apareceu-me outra proposta de trabalho e aceitei.
Com muito receio.
E se continuasse sem conseguir ler? E se o texto teimasse em não sair? E se as melhorias que eu sentia fossem ilusórias?
Foi com alívio que li o livro e retive aquilo que estava a ler. Não li à velocidade a que lia antes, ainda voltei algumas vezes atrás para me certificar de algum pormenor, mas a leitura fez-se. E depois a tradução também se fez, de novo mais lenta do que era hábito mas com uma qualidade semelhante.
De então para cá traduzi três livros, dois dos quais com mais de mil páginas, e estou agora no quarto. Mas ainda não li nenhum que não fosse para o trabalho. Por receio, suponho. Por temer que voltar a mergulhar tão completamente no mundo do texto me leve a um bloqueio como o que tive em dezembro de 2022. Sei que tenho de sacudir esse receio — nem que seja apenas (e não é; o bichinho já redespertou, a curiosidade já se faz sentir) porque a leitura de texto em português, e de preferência de bom texto em português, faz parte da profissão de tradutor — mas ainda não o fiz. Tenho compartimentalizado as coisas: lido com texto quando estou a trabalhar mas, quando não estou, afasto-me dele. E sim, também é por isso que este blogue tem estado silencioso. Isto é um passatempo, cuja origem principal é outro passatempo: a leitura. Sem esta, o passatempo que é o blogue fica num limbo, e quando escrever também é atividade posta em grande medida de parte, mais um pouco.
Ajudaria se eu percebesse o que aconteceu. Tenho pensado muito naquilo, nos meses que antecederam o bloqueio e no próprio bloqueio, e cheguei a algumas conclusões, mas nada sólido o suficiente para me descansar o espírito e convencer de que, para a próxima, se próxima houver, saberei detetar os sinais. É que houve alguns sinais, pelo menos a essa conclusão já cheguei. O facto de ter sentido uma enorme dificuldade em gostar realmente do que fui lendo nos meses anteriores ao choque com a parede de tijolo é um sinal. Suponho. O facto de já me andar a sentir muito farto de traduzir ao longo de muitos meses antes daquilo, ao ponto de ter pensado muito a sério em ir pelo menos tentar fazer outra coisa qualquer com a vida, é outro. Suponho. É possível que me tivesse dado conta deles, que os tivesse entendido como o que eram, se todo o trabalho preparatório para o lançamento das Ratazanas, menos de dois meses antes, não os tivesse ocultado. Mas talvez não. E é este talvez que me tira o sono. Se talvez não, então da próxima vez, se houver uma próxima vez, talvez também não.
Seja como for, houve algumas mudanças na forma como eu encaro a literatura que me parece que ajudam e me sossegam até certo ponto. Mesmo que volte em grande medida a agir como dantes, que volte a ler e a escrever com regularidade, não tenciono deixar de reservar tempo para me afastar por completo de trabalho literário de toda e qualquer espécie. Tempo gasto longe do texto. A fazer outras coisas, completamente diferentes. E, embora isto não dependa só de mim, também vou continuar a esforçar-me por variar o trabalho que faço. Por não traduzir sempre as mesmas coisas da mesma maneira. Porque se o que provocou aquilo foi a saturação, como julgo que foi, pelo menos em grande medida, quanto menos mesmice houver na minha vida menos provável se torna que a saturação reapareça.
O problema é que tudo isto é incerto. Eu penso que a resposta pode ser esta. Mas não sei. E isso é um peso que não me larga os ombros.
Enfim, já chega. Se calhar já sobra. Mas pouca gente vai ler isto, portanto pouco importa. Vantagens de se ter o blogue congelado durante tanto tempo: a malta parte para outra, e depois, quando reviramos as tripas e as deixamos à mostra, poucos são os que estão lá para as ver.
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