domingo, 12 de abril de 2009

Conto: Ange e Damune

Hoje, em conversa no twitter, este conto veio à baila. A bem dizer, foi trazido à baila por mim, mas uma das minhas interlocutoras manifestou interesse em lê-lo, e eu lamentei mentalmente, não pela primeira vez, que seja tão simples perder a informação presente na web.

É que o conto tinha sido publicado. Foi em 2005, no site Filhos de Atena, antes de alguém ter achado boa ideia hackeá-lo, fazendo assim com que se perdesse toda a informação lá contida. Desapareceram assim da web dois contos meus, este e outro, e mais uma série de textos duma série de gente, dos quais não resta nem sinal, a não ser que algum desses autores tivesse mantido consigo cópia daquilo que lá foi publicando.

Não foi, aliás, caso único. Com o site da Intempol aconteceu algo de muito semelhante, e as dezenas de ficções e não-ficções que lá se encontravam publicadas só puderam ser recuperadas porque parte delas foi arquivada pelo Web Archive. Um desses contos também é meu. E quando David Soares decidiu mudar de blogue, apagando o antigo, também desapareceu um dos meus contos, além de tudo o que o David tinha aí escrito e de um conto de um brasileiro de que não resta rasto, nem de título nem de autor.

Mas pelo menos Ange e Damune regressa hoje à "vida". Agora mesmo.


Ange e Damune


— Boa tarde, damun Kahaath — disse-me a secretária, uma mulherzinha minúscula de cornichos cor de rosa, um par de desnecessários e anacrónicos óculos pendurado do nariz, cabelo apanhado no alto da cabeça e umas asas raquíticas e cinzentas a despontar das espáduas. Purgatório típico, híbrida e agarrada aos tiques, manias e modas de quem fora na antevida.
— Os ange estão um pouco atrasados — prosseguiu, mantendo o ar circunspecto de burocrata que o era por ideologia e vocação. — Se desejar, pode esperar na sala. Eles não devem tardar.
Grunhi um assentimento e mostrei-lhe os colmilhos. Não custa ser simpático, e o damune tem em alta conta as relações públicas.
A sala era vasta, dominada por uma longa mesa e decorada com aquilo que no purgatório passa bom gosto: metade repleta de não muito subtis mas bastante banais referências ao andar de baixo, a outra com não mais subtis e não menos banais referências ao de cima. Sentei-me no braço de uma das cadeiras dos ange. Apeteceu-me. Ter-me-ia sentado na cadeira propriamente dita, mas são diabolicamente incómodas, com perdão do trocadilho: nada de buraco para o rabo e umas costas que não lembram ao menino jesus, feitas de três paus verticais, juntos a meio das costas como um tridente. É para os mariconços meterem as asinhas, naturalmente, mas não há damun que se consiga enfiar naquilo, muito embora o design esteja imbuído de uma deliciosa ironia.
Levantei-me. Estava a ficar impaciente, o que era precisamente o que os ange queriam. Os antevivos que ainda pensam que a malta do andar de cima respeita escrupulosamente todas as regras deviam ser convidados para vir assistir a uma destas reuniões. Talvez perdessem as manias.
Impaciência, paciência, pum, pam, pim, tralalá, prilimpimpim, não faz mal esperar assim...
Sentei-me numa cadeira do "meu" lado, uma cadeira decente, depositei a maleta sobre a mesa, abri-a e retirei os documentos. Pus-me a ler, apesar de já os conhecer de trás para a frente.
Demonstrando um timing perfeito, os ange escolheram entrar no momento em que acabava a primeira frase.
Eram três. Saudámo-nos com simpatia. Eu mostrei-lhes os colmilhos, eles mostraram-me as bochechas e adejaram as asas, adequadamente brancas e penugentas. Penojentas, diria eu se alguém me perguntasse. Mas ninguém pergunta, pois a moda dos ange é dos ange, só dos ange e ai de quem se intrometa. Lá em baixo conhecemo-los por paneleirotes, por uma questão de tradição, mas a verdade é que se não fossem as asas e o ar bochechudo de querubins, aqueles três até escapavam do cliché efeminado. Um trazia um mohawk e um piercing na asa esquerda, outro era tão barbudo quanto a sua compleição permitia, ostentando uma valente penugem no queixo, e só o terceiro era mais tradicional, mas mesmo esse trazia uma túnica tão curta que mais parecia uma camisa, metida displicentemente para dentro de um par de calças. Aquelas asas repugnantes é que eram, por si só, um atentado ao bom gosto.
Damun Kahaath, certamente? — disse o do mohawk. Mostrei os colmilhos e grunhi. O angi prosseguiu:
— Sou o angi Fuiriri, este é o angi Toriti e este o angi Patatati. Estamos aqui para tratar do caso do senhor Costa Maclaren, não é verdade? Deve ser rápido. Dada a documentação que recolhemos, não nos opomos a que no-lo leve lá para baixo, embora, como sabe, seja nosso dever salvar o máximo de almas que for possível. Infelizmente, somos constantemente confrontados com situações em que, para nosso grande pesar, nos vemos impedidos de exercer esse desígnio dadas as falhas irremediáveis que as almas apresentam à chegada aos nossos serviços. Suponho que esteja de acordo?
O mohawk engana, pensei. Este gajo é tão chato como todos os outros, safa!
— Não — resmunguei. — Não estou nada de acordo. Pelo contrário, acho que o Maclaren é material vosso. De caras.
Os ange pareceram chocados. Genuinamente. Deviam estar à espera que isto fosse favas contadas.
— Desculpe?! — disse o da penugem quando recuperou a fala (O Toriti? Patatati? Bah, não importa).
— Naturalmente. Temos aqui provas concludentes da sua intrínseca bondade — insisti, sacudindo o maço de papéis — e não podemos aceitar gente dessa lá em baixo, de modo algum.
Os ange entreolharam-se e dois levaram as mãos à raiz dos cabelos encaracolados. O terceiro respondeu-me.
— Desculpe, caro colega, mas não me parece que seja possível encontrar nesta alma motivos de redenção. Afinal de contas, o Maclaren fez dois desfalques e assaltou uma drogaria, que diabo... oh! Perdão!...
Soltei uma baforada de fumo das narinas, querendo com isso dizer que por mim podiam falar mal do chefe à vontade.
— Por amor à família — expliquei — por amor à família. O Maclaren tinha uma mãezinha doente, como sabem, padecendo de um caso grave de esquizofrenia paranóide e uma filha aleijadinha...
— Porque ele lhe deu uma surra quando ela tinha três anos! — interrompeu um dos ange. Não lhe fiz caso e continuei a ladainha.
— Aleijadinha, coitada, necessitando de cuidados permanentes e caros que o nosso amigo não podia comportar. — Sou o maior, pensei, comigo a jogar o jogo deles estes três palhaços não têm a mínima hipótese.
— Mas e as vítimas... a propriedade privada... — exasperou-se o da túnica — o que os actos do Macdonald causou nas vidas dos inocentes que atacou!...
— Inocentes? Quais inocentes? — Escolhi uns maços de folhas e atirei-lhos através da mesa. — Têm aí os vossos "inocentes". São todos clientes nossos, salvo a Cátia Castilho, que ainda está anteviva mas já tem um ficheiro lá em baixo bastante agradável e sem dúvida acabará por juntar-se-nos mais cedo ou mais tarde. O Maclaren não só roubou pela família, como escolheu muito bem quem roubava...
— ... ou teve uma sorte diabólica — resmungou o da barbinha, folheando os documentos. Desta vez nem se incomodou em pedir desculpa: estava a ficar zangado. Óptimo!
— Seja — disse o do mohawk, pondo os documentos de lado. — Aceitemos por agora que os roubos são inconclusivos. Isso não invalida o facto de que o Costa Maclaren assassinou duas pessoas a sangue-frio. Como pode sugerir que acolhamos um assassino lá em cima?
Reprimi a tentação de responder que não seria o primeiro. Não seria bom para a negociação. Em vez disso, escolhi uma tangente.
— Qual é o valor que se preza mais lá por cima?
— Como?
— Que é que vocês mais prezam? Qual o valor que está no topo da vossa escala?
— O amor?
— Tá bem, o amor, mas que amor? Isto é, o amor a quê?
— Não percebo onde quer chegar, damun.
— É ou não é verdade que lá em cima o valor supremo é o amor ao vosso chefe? O amor ao que é transcendente? Àquilo que não é humano?
— Bem, sim, mas...
— E é ou não é verdade que é bem aceite lá por cima fechar os olhos a pecadilhos menores quando eles são resultado e consequência desse amor?
— Não propriamente. Nós...
— Não? Então aquilo que você disse no começo da nossa conversa é mentira?
— Como?! Os ange nunca mentem, damun! Nós...
— Desculpe. Mas julgo tê-lo ouvido dizer que é "vosso dever salvar o máximo de almas que for possível". Disse isto, não disse?
— Disse e é verdade! O nosso...
— Certo. E, segundo a última versão do manual operativo dos agentes ange, que os vossos serviços amavelmente nos ofereceram, capítulo terceiro, parágrafo 54, alínea f, cito, "os dilemas e casos omissos devem ser resolvidos a favor da alma sempre que sejam resultado, no todo ou em parte, de amor transcendente ao não humano". Confirmam que citei correctamente, não confirmam?
— Confirmo, sim. Mas se nos deixar argumentar e não nos interromper gostaríamos de salientar que não vemos nenhuma relação entre esse ponto do nosso regulamento e o caso em análise.
— Ah, mas ela existe. Conhecem o caso da cadelinha?
— O caso da cadelinha?!
— Sim, a cadelinha que o Costa Maclaren teve em criança.
— Ah, sim claro. Uma tragédia. Pobre animal.
— Exacto. Pois bem, os nossos serviços psicométricos determinaram, sem margem para dúvidas que no momento de ambos os assassínios o Maclaren evocou a sua cadelinha. Têm aqui os resultados da análise. Ora bem, o que isto significa é que no momento dos assassínios ele não estava em nenhum estado que nos interesse a nós e, bem pelo contrário, se encontrava em pleno êxtase místico, repleto de amor, defendido do pecado por um sentimento que, ainda por cima, obedece às determinações do vosso manual operativo. Segundo os vossos regulamentos, aqueles actos não têm peso e a alma deve ser, como vocês dizem, salva.
Quando me calei os ange olhavam-me de boca aberta e breves lampejos de fúria no mais fundo dos olhos. Provavelmente continham-se para não arrancar a fina camada de bondade e compreensão com que se vestiam todos os dias de manhã e desatar aos palavrões e aos socos na mesa. Quanto a mim, também me continha mas para não me rir. O nó estava atado. E não tinha maneira de ser desatado.
— Isto é, isto é... — acabou por gaguejar o da barba — isto é altamente irregular.
Não disse nada. Limitei-me a mostrar os colmilhos.
O do mohawk estudava a análise psicométrica, provavelmente à procura de falhas. Chato mas inteligente, pensei, mas não vais encontrar nada: não te preparaste suficientemente bem para um caso que pensaste que ia ser apenas rotina e não vais ser capaz de ver para lá dos resultados mais óbvios. Acabou por colocar o documento sobre a mesa e olhar-me, de bochechas rosadas e um tremor pouco saudável nas asas.
— Parece estar tudo em ordem, realmente. Parece que não temos outro remédio senão aceitá-lo... quer dizer — corrigiu rapidamente — teremos todo o gosto em salvar mais esta alma dos tormentos lá de baixo, para maior glória do andar de cima. Como sabe, vivemos imersos em compaixão, o que este caso comprova à saciedade.
Pois, pois, pensei, lá por baixo damos outros nomes a esse tipo de compaixão. Mas disse apenas:
— Assinamos?
— Com certeza.
Fui o último a sair. Os ange esgueiraram-se a toda a pressa assim que puseram um trio de rabiscos ilegíveis no documento de entrega da alma do Maclaren ao andar de cima, levando consigo a sua cópia e a que se destina aos serviços de encaminhamento do Purgatório. Muito simpáticos. Arrumei a minha tralha com todo o vagar. Tinha sido fácil, afinal de contas. E muito divertido.
Quanto ao Costa Maclaren, era um pulha, um canalha, um javardolas da pior espécie. Merecia o inferno sete vezes. Mas para ele, ficar lá em baixo seria como passar a eternidade num parque de diversões. Agora lá em cima... no meio dos chatos todos do universo...
Danação eterna!
Quase que tive pena do homem.
Quase.
Em vez disso, soltei por fim a gargalhada que trazia atravessada. Saiu bastante diabólica. Foi uma boa gargalhada.

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