Às vezes, os escritores têm necessidade de escrever histórias que lhes servem fundamentalmente para exorcizar demónios, ou refletir sobre algo que os perturba. Há mesmo autores cuja obra se resume a isso, e há um certo público que acredita que só nessas histórias se encontra a verdadeira natureza da arte, porque só elas são realmente genuínas. Não partilho dessa opinião. Acho que pode encontrar-se arte e algo de genuíno até naquilo que à primeira vista mais se assemelha a plástico literário. Mas fiquemos por aqui, senão isto irá prolongar-se e eu não tenho tempo.
Vem esta espécie de intróito a propósito de Os Balões de Fogo (bib.), de Ray Bradbury. Trata-se de uma história, passada em Marte, na qual um grupo de padres católicos liderados por um sonhador de vistas largas parte para Marte em missão missionária. Lá chegados, deparam-se com globos de fogo azul que mostram não só estar vivos, como possuir mesmo um comportamento inteligente. O conto parece ser precisamente um desses casos de história muito íntima, usada pelo autor para refletir sobre algo de importante para ele. Nela, Bradbury examina a teologia do caráter divino das imagens cristãs, essencialmente o crucifixo e as representações de Cristo. É uma reflexão que poderá ser muito interessante para quem tem preocupações semelhantes mas que se torna francamente aborrecida para aqueles de nós que consideram a teologia, toda ela, um enorme castelo de cartas assente em coisa nenhuma. E devido ao caráter reflexivo (e vagamente missionário, até) do texto, a própria história, a sua qualidade, o seu ritmo, também sofre.
Sempre achei que esta história era um corpo estranho neste livro. Afinal, só aqui surgem os tais balões de fogo, não é algo que seja coerente com o resto do ambiente marciano desenhado nas outras histórias, mesmo apesar da explicação que ela contém para os globos azuis. Mas só agora, relendo o livro como um conjunto de histórias separadas e não como um romance, descubro que é a própria história que me desagrada. Só se safa a literatura, o tratamento do texto. Nisso, pelo menos, Bradbury é igual a si próprio.
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