O Livro das Configurações, de Mário Cabral, é algo de misto entre um romance fantástico e um tratado filosófico. Confusos? Eu explico, que bem sei que isto só assim não se percebe.
Trata-se de um livro com personagens, e essa é a parte do romance (ou antes, da novela que não chega ao tamanho de romance): um avô, que conta histórias, e um confuso conjunto de crianças, desfasadas no tempo, que escutam as histórias e fazem perguntas. Confuso porque o livro começa numa conversa entre um avô (que mais tarde se esclarece que não é avô nenhum, só um velho a quem o narrador trata assim) e o narrador, mas depois este surge a contar as histórias das conversas com o avô a um sobrinho, Mário, e uma afilhada, Mariana. E é precisamente aqui que reside a primeira e principal falha deste livro. Uma narração em camadas como esta exige uma pena bastante mais hábil do que a de Mário Cabral para evitar que à terceira ou quarta iteração o leitor não fique irremediavelmente confuso quanto a quem é quem e diz o quê a quem... a não ser que dedique a esse pormenor uma atenção que terá de desviar do objetivo principal do livro, diminuindo o impacto que o autor pretende causar com ele.
Aqui, como tantas vezes acontece, o verdadeiro segredo para chegar mais perto de criar uma obra maior teria estado na simplicidade.
É que o autor pretende causar impacto. Talvez não tanto literário, mas filosófico com toda a certeza, e aqui entramos na parte do ensaio. Porque, através da narração de histórias (da velha arte aldeã da narração de histórias, tantas vezes à lareira, em que os velhos cheios delas as transmitem aos mais novos), umas histórias muito fantásticas por natureza, cheias de animais, plantas e até pedras animadas de uma espécie de alma que se transmigra de umas coisas para outras, pretende apresentar e fazer aceitar uma filosofia mistico-religiosa muito sua. Uma estranha mistura de cristianismo com religiões orientais, centrada no conceito de configuração, segundo o qual todas as entidades são eternas e se vão transferindo de configuração em configuração, de cão para árvore, para pedra, para homem e assim sucessivamente ao longo do tempo. Assim uma espécie de reencarnações sucessivas em busca do Nirvana. Mas não exatamente.
Na explanação deste conceito metafísico até tem sucesso, desde que não nos prendamos nos pormenores sobre quem diz o quê a quem de que falava acima. O texto, não sendo nada de superlativo, é em geral correto, embora o autor não saiba, manifestamente, utilizar o registo oral, muito em especial na boca das crianças. Nenhuma criança do mundo diz coisas como: "Não se deve nunca assustar Deus com discursos directos [sim, é pré-AO]. Só os filósofos se atrevem a tal, mas a maior parte deles não sabe pensar!" Outra falha que muita gente releva mas eu acho importante, somando duas falhas literárias que para mim são fundamentais.
A acrescentar a isso, ao ler este livro, e particularmente na altura em que o li, só conseguia pensar na elaboração dos castelos de vento que tanta gente constrói por ter terror da morte. Porque esta filosofia que Mário Cabral aqui elabora, cheio de arrogância contra "os positivistas" e os "filósofos que não sabem pensar", não passa disso mesmo: uma filosofia oca, sem a mínima base, uma salada de tradições religiosas oriundas de vários pontos e culturas, criada com o exclusivo propósito de explicar o facto de se estar vivo e a inevitabilidade de um dia se deixar de o estar. Uma filosofia criada por medo e para consolar esse medo. É muito cómodo, muito reconfortante, acreditar em coisas destas, em especial quando estamos a olhar de frente o feio rosto da morte. A nossa ou a de gente que nos é querida. Foram várias as vezes que durante estes últimos meses me apeteceu poder fazê-lo. Mas a comodidade e o reconforto não tornam ideias destas mais válidas. A autoilusão não é um ato de coragem, bem pelo contrário. E para mim é espantoso que tanta gente a prefira a encarar a realidade de frente.
Em suma: detestei este livrinho. Por falhas literárias e por profundíssimas falhas nas ideias. Sei bem, contudo, que estas últimas irão agradar a alguns leitores mais dados a misticismos. E quanto às primeiras, também há leitores para os quais elas não assumem a importância que têm para mim. Se é o vosso caso, arrisquem. Se não é, o melhor é ignorarem este livro.
Pergunto-me no que consiste essa "releitura" de GELO E FOGO. É mera leitura pela segunda vez, uma revisão da tradução, uma preparação para próximos volumes ou algo recreativo?
ResponderEliminarÉ basicamente reavivar de memória e reentrada no mundo ficcional. Em preparação para a tradução do próximo livro, para evitar incoerências na forma de traduzir certas coisas.
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