É bastante simples. Se se trata da variante zoológica, basta olhar: se for equino, cinzento e tiver umas grandes orelhas e um ar robusto, está visto. Se mesmo assim persistir a dúvida, basta atentar ao comportamento: se empancar num certo sítio sem motivo aparente e daí não se mover nem que chovam pedras e lâminas de barbear, e se depois, de novo sem qualquer motivo, se puser a andar, então está mais que claro que o animal pertence a essa peculiar espécie asinina que tantas referências deu ao nosso consciente colectivo.
Se for da variante sociológica é mais complicado. Esse tipo de burro disfarça-se bem. Passamos por eles na rua sem nos darmos conta de que por nós passa zurrante jumento, embora alguns sinais forneçam pistas que ao fim de algum tempo aprendemos a detectar. Um certo olhar parado e sem vida. Uma certa apetência pelas últimas modas. Um certo ar de pasmo perante o mundo, por vezes escondido por trás de uma máscara de tédio blasé. Um algo difícil de pôr em palavras, mas que mesmo assim nos deixa a certeza: ali vai um burro.
E tal como acontece com os seus equivalentes de quatro patas, também as dúvidas relativas aos burros de duas se dissipam quando lhes damos acesso à palavra, seja oral, seja escrita.
Nos blogues, esse tipo de burro gosta de se passear pelas caixas de comentários, assinando comentários agressivos quase sempre com nome falso, à procura de causar uma reacção qualquer, em busca daquela satisfação patética de ter alguém neste vasto mundo a prestar-lhes um minuto de atenção.
Eu agora tenho por cá um. Começou com uma opinião sobre um álbum do Jiro Taniguchi que não me agradou. Nem disse que não prestava, note-se. Nem disse que era uma porcaria. Disse apenas que não me agradava, o que é uma expressão de gosto pessoal perfeitamente assumida. Mas mesmo assim, o burro sentiu-se atingido na sua fascinação cega pelo desenhador nipónico. Deixando o comentário não no post sobre o Taniguchi mas junto do pobre fanzine Phantastes, que não tem nada a ver com o assunto, coitado, o burro ordena-me que leia isto e aquilo "e depois venha cá escrever", como quem grita do alto do seu talibanismo "o menino cale-se imediatamente, que falar mal do Profeta é blasfémia". Logo a seguir, sem sequer compreender que a minha opinião pessoal se limita a um álbum e que nela não disse rigorosamente nada sobre o que quer que seja para além desse álbum específico, o burro lança a fatwa: "depois de teres lido estes dois livros, pelo menos, então podes criticar o homem", como quem diz que "és um ignorante e não sabes nada de nada". Os burros são assim: não percebem as coisas. Confundem-se. As correntes de ar que correm dentro das suas cabeças arrastam os pensamentos confusos que vão brotando dos seus cérebros pouco férteis e baralham-nos todos. Atrapalham-se. Trocam opiniões sobre um livro com críticas ao homem que o desenhou e respondem às primeiras como se das segundas se tratassem.
E chegados a este ponto, claro, temos o burro identificado com tanta certeza como se fosse quadrúpede, orelhudo e cheirasse mal. E é escusado tentar qua a criatura se mova. Não vale mesmo a pena: à semelhança dos quadrúpedes seus semelhantes, estes asnos de duas patas quando empancam não se movem um milímetro. Para ele, eu não estar disposto a ser criticado por aquilo que não escrevi (uma crítica ao Taniguchi) é sinal de que sou "um miúdo", "sem maturidade democrática" (o burro vê debates na televisão e apanha uns chavões), "virgem ofendida" ou "geniozinho". O burro acha que tem o direito de impedir que eu no meu blogue escreva precisamente o que me dá na real gana e ordena-me que "aceite os comentários e acabou". Que o blogue seja meu, que por isso seja eu o único responsável pelo que nele se escreve e que exista uma coisa chamada liberdade de expressão não lhe entra no microcéfalo. A única coisa que vê é que alguém se atreveu a não se espojar em reverência perante Sua Santidade Taniguchi, "o homem que mete o Moebius num bolso e que dá lições de BD e de humanidade absolutas". Para o burro só se pode falar do seu pequeno deus se for para dizer "amen" e "oremos irmãos". Para ele, as opiniões que não sigam a ortodoxia devem ser suprimidas. Por vontade dele, fechava-me o blogue, dava-me uma tuna de porrada e enfiava-me numa masmorra.
Isto tudo é fundamentalmente patético e dar-me-ia vontade de rir se não fosse um pequeno detalhe: este tipo de pensamento é, por natureza, fascista. E há aqui, misturado à avantajada dose de burrice de que o burro, naturalmente, dá mostras, algo de perturbador, uma maneira de pensar que causa arrepios. Gente desta é perigosa. Podemos e devemos rir-nos dela, mas não convém que nos destraiamos porque se o fizermos um dia acordamos todos a balançar na ponta de uma corda ou encarcerados numa sala sem ventilação e com um tubo cheio de verdete que verte gás.
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