quarta-feira, 16 de abril de 2008

Acordo ortográfico - orto grafias

Ora bem, cá estamos de novo, com algum tempo livre e a cabeça razoavelmente desanuviada.

Antes da breve interrupção zinkiana, tínhamos ficado na candente questão de as mudanças na oralidade implicarem, ou não, mudanças na ortografia. Mas ainda antes de tratarmos da candência, vamos fazer mais um pequeno desvio para mais alguns factos.

Já vimos que uma ortografia é um conjunto de normas altamente abstractas para exprimir uma determinada oralidade. Mas, em parte porque são abstractas, nem todas as formas de escrever seguem a mesma filosofia. Algumas formas de escrever, como os ideogramas chineses, por exemplo, nem sequer representam sons, preferindo-se a representação de conceitos e ideias (daí o nome, né?). Outras formas de escrever representam sílabas, noutras, como o hebraico, escrevem-se apenas as consoantes deixando as vogais subentendidas, etc. Nas línguas escritas em alfabetos derivados do grego, como a nossa, cada letra tende a representar um som, embora haja, como todos sabemos, sinais especiais que alteram o significado básico da letra, combinações de letras que representam um único som... ou letras que não representam som algum.

Além disso, línguas diferentes têm abordagens diferentes quanto à adaptação da escrita à fala. Embora uma ortografia seja sempre um compromisso entre a história da língua escrita e o estado actual da língua falada, em línguas pequenas, faladas por pouca gente concentrada em territórios restritos e com pouca variação fonética, a ortografia pode seguir a fonética de perto, se bem que nem sempre o faça. Porém, é fácil compreender que em línguas maiores, e em especial nas grandes línguas de dimensão planetária como a nossa, isso é totalmente impossível. O compromisso tem, pois, de existir sempre.

Algumas dessas línguas, como o inglês e o francês, resolveram esse problema adoptando uma ortografia mais atenta à origem e história escrita das palavras, à sua etimologia, do que à fonética. É por isso que em francês algo que se diz "uázô" se escreve "oiseaux", algo que se diz "ô" se escreve "eau" e "pré" se escreve "prêt". E é por isso que palavras inglesas tão diferentes como "dou" e "taf" se escrevem "though" e "tough", respectivamente, é por isso que "tchec" se escrever "czech" enquanto que "china" não se diz "caina" mas sim "tchaina", entre muitas, muitas outras rasteiras que a língua inglesa nos reserva.

Esta abordagem tem a vantagem de exigir mudanças na ortografia mínimas e espaçadas no tempo, embora tenha a clara desvantagem de ir tornando a escrita crescentemente incoerente, de modo que ao fim de algum tempo acaba à mesma por ser preciso fazer reformas ortográficas, a menos que se queira continuar a escrever numa língua que na prática é uma língua diferente daquela que se fala (e isto acontece em algumas línguas, como o grego).

O português que se escrevia no século XIX seguia também esta abordagem. Era devido à etimologia de "farmácia" que a palavra se escrevia "pharmacia". Era por causa da etimologia que nunca ninguém praticava a escrita, mas sim a "escrypta". Era devido à etimologia que os campos se cobriam de "hervas" na primavera. E etc., e etc., e etc. Pegue-se numa publicação anterior a 1911 e encontrar-se-ão páginas e mais páginas de etimologias que hoje têm um sabor positivamente arcaico. Porquê?

Porque a implantação da República, em 1910, trouxe com ela a vontade de simplificar a escrita do português, tornando-a mais consentânea com a sua fonética, que não fazia distinção entre os f expressos com "f" e expressos com "ph", os i expressos com "i" ou com "y" ou os p expressos com "p" ou com "pp", que emudecera uma quantidade razoável de consoantes, que não pronunciava nada que se parecesse a um z em Portuguez, etc., etc. E assim, a ortografia do português foi pela primeira vez afastada da abordagem etimológica clássica, e foi pela primeira vez quebrada a unidade ortográfica da língua, porque o Brasil, nem tido nem achado na reforma de 1911, continuou ainda a escrever à antiga.

Mas isso ficará para uma próxima oportunidade, que hoje já se foram bem mais do que cinco minutos e a hora começa a pesar.

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