terça-feira, 22 de abril de 2008

A origem das espécies linguísticas

A-ha! Mais um dia em que o trabalho acaba e a minha cabeça ainda não está em pleno toque de finados! Devia aproveitar para saboreá-lo, pois tem sido coisa rara. Mas não. Em vez disso venho para aqui mandar mais uma posta de pescada.

Desta vez não é sobre o acordo, mas tem a ver com aquilo que lhe subjaz: a própria língua. E tem a ver com umas contestações que apareceram na caixa de comentários, principalmente com esta:

A diversidade dialectal não é função da vastidão geográfica ou demográfica. Veja-se o caso basco, p.ex.: Apesar de haver, feliz e finalmente, uma ortografia única — o euskera batua (que é eficiente, coerente, e vastamente utilizada), existe (e continua a existir, também felizmente) uma diversidade dialectal muito grande.


Nunca afirmei que a diversidade dialectal fosse função da vastidão geo ou demográfica. O que afirmei foi:

Embora uma ortografia seja sempre um compromisso entre a história da língua escrita e o estado actual da língua falada, em línguas pequenas, faladas por pouca gente concentrada em territórios restritos e com pouca variação fonética, a ortografia pode seguir a fonética de perto, se bem que nem sempre o faça. Porém, é fácil compreender que em línguas maiores, e em especial nas grandes línguas de dimensão planetária como a nossa, isso é totalmente impossível.


O que eu queria dizer com isto, e pelos vistos não fui suficientemente claro, é que só é possível criar uma ortografia fonética em línguas que obedeçam simultaneamente a todas aquelas condições. Isto é, línguas que: 1) sejam pequenas, 2) sejam faladas por pouca gente, 3) estejam concentradas em territórios restritos e 4) tenham pouca variação fonética. Estas condições estão interligadas, influenciam-se, mas não se determinam umas às outras. E se referi estas condições foi para deixar claro que a língua portuguesa, por não obedecer a nenhuma delas, não poderá nunca ter uma escrita fonética; terá sempre de ter uma escrita que resulte de um equilíbrio entre as várias fonéticas que incorpora, a história das palavras e a pura convenção.

Estamos de acordo?

Já agora, visto que me desviei do caminho principal para uma estrada secundária que tem pouca relevância para o acordo em concreto, vou segui-la até um pouco mais à frente. Tenho umas ideiazitas extra a deixar aqui. Não as vou explorar muito, que nem tenho tempo nem este é o lugar certo, mas é capaz de valer a pena esboçá-las.

Como é que se originam as línguas? Salvo casos especiais, em que existe uma intervenção criadora de um pequeno grupo de indivíduos que depois se espalha para grupos maiores (caso das línguas construídas, basicamente), as línguas têm uma evolução muito semelhante à das espécies biológicas (e a maior parte de vocês acabou neste momento de entender o título do post). Evoluem naturalmente umas das outras, através de uma sucessão de pequenas mudanças que se vão acumulando com o tempo até gerar grandes diferenças. Uma diferença importante relativamente à analogia biológica é que as línguas, salvo em circunstâncias muito particulares, estão constantemente em processo de fertilização cruzada, transferindo conceitos e fenómenos linguísticos de umas para outras, o que em geral não acontece com a vida. Mas a maior parte dos motores da evolução são idênticos. As línguas, tal como as espécies, também necessitam de isolamento para se diferenciarem, o que aliás é óbvio se olharmos para um mapa das línguas do mundo e constatarmos que as regiões onde existe um número maior de línguas por unidade de área são regiões que dificultam os movimentos ao bicho-homem, nomeadamente regiões montanhosas, florestas densas, etc. O mesmo acontece, em menor escala, dentro das línguas, com os seus dialectos, subdialectos e sotaques.

Ou seja, historicamente, quando uma determinada população se isolava de outras populações que lhe eram afins, geravam-se as condições para a divergência. Foi isso, aliás, que aconteceu com as línguas latinas, todas elas derivadas do latim comum que se falava há dois mil anos ao longo da vastidão do Império Romano. Com o fim deste, com a criação de uma multiplicidade de estados independentes, a limitação de contactos entre eles e o desaparecimento da elite romana que tendia a uniformizar a língua no Império, os vários latins vulgares começaram a divergir (provavelmente a partir de sotaques e dialectos existentes ainda nos tempos romanos) e resultaram neste grande grupo de línguas que conhecemos hoje (e mais algumas que entretanto se extinguiram), que segundo o Ethnologue são 48, faladas hoje por cerca de setecentos milhões de pessoas um pouco por todo o planeta, mas essencialmente na Europa, nas Américas e em África.

Foi também assim que surgiram as variantes do português. Todas elas, não apenas a dicotomia mais básica entre o português de Portugal e o do Brasil. Mais básica e mais preguiçosa, pois não só existem variantes de português fora dos dois principais países da lusofonia, também é facto que quer num quer noutro existem vários dialectos, muitas vezes incorporando construções linguísticas que se costuma imaginar serem características da língua falada do outro lado do oceano.

E se assim surgiram, dir-se-ia, assim continuariam a divergir até que, algures no futuro, se transformariam em línguas diferentes com uma raiz comum, como aconteceu com o latim. Há muita gente, incluindo, receio, a generalidade dos linguistas, que dá por adquirido que assim será.

Pois é, mas eu acho que não.

É que vivemos hoje num mundo que, em termos de comunicação, não tem rigorosamente nada a ver com aquele em que as variantes do português se desenvolveram. Hoje já não é necessário o contacto físico para haver transferência de padrões linguísticos entre as pessoas. Hoje, a comunicação é global e praticamente instantânea. A língua que falamos é tão determinada pela televisão como pelos nossos pais, família e vizinhos, e começa também a ser determinada pela internet. Hoje, os falantes de português em todo o planeta, por mais afastados que estejam fisicamente, estão mais próximos do que nunca, e tenderão a aproximar-se ainda mais no futuro.

É por isso que eu penso que a tendência, longe da diversificação, será a longo prazo de reunificação e uniformização. Já vejo isso a acontecer com a atenuação dos sotaques e falares regionais no português de Portugal, e também com uma aproximação visível do português de Portugal ao do Brasil desde que as telenovelas brasileiras passaram a fazer parte do dia-a-dia das nossas famílias. E julgo que é um fenómeno inevitável e imparável, precisamente devido ao desaparecimento do isolamento que é necessário à diversificação.

Que tem isto a ver com o acordo ortográfico? Muito pouco. Mas se procurarem bem, verão que até tem alguma coisa. Em todo o caso, prometo regressar a coisas que dizem respeito mais directamente a ele no próximo post.

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