Lido, que é como quem diz relido.
Reler um romance muitos anos depois da primeira leitura — e neste caso foram mais de duas décadas — é uma experiência curiosa. Por um lado, há aquela familiaridade, aquela sensação de dejà vu, que impede a frescura da primeira leitura. Por outro, essa familiaridade é enganosa: há sempre algo que surpreende, pormenores esquecidos, coisas que não acontecem exatamente como a memória as recorda. Parte dessas surpresas podem inclusive ser mais do que um simples reavivar da memória, podem ser coisas que nos tinham passado despercebidas na primeira leitura. É que a pessoa que relê nunca é a mesma que leu — nem o Peter Pan fica absolutamente imutável — e olha para a obra com olhos que são sempre diferentes.
Já não sei bem o que pensei deste livro há vinte e tal anos. Sei que me embasbacou, que me deixou siderado, que o achei na altura das melhores coisas que me passaram pelos olhos, mas nada recordo dos pormenores.
Após a releitura, continuo a achar o Solaris do Stanislaw Lem (bib.) dos melhores romances de ficção científica de todos os tempos. Embora esteja já algo envelhecido, esse envelhecimento acontece apenas nas margens do romance, no envoltório tecnológico que lhe serve de cenário. O fulcro, aquilo que constitui a sua espinha dorsal, é tão novo hoje como foi em 1961, ano em que saiu em polaco, ou em 1983, ano da sua primeira edição portuguesa.
O título do romance revela o assunto: Solaris é um planeta, mas também um oceano vivo que cobre o planeta por completo e se comporta como uma imensa entidade inteligente, capaz das coisas mais mirabolantes e incompreensíveis. É a esse oceano que os cientistas terrestres dedicam décadas de estudo sem, no entanto, chegarem a nenhuma conclusão realmente definitiva, e o outro protagonista da história é precisamente um desses cientistas, que chega a uma estação de investigação que flutua na atmosfera acima do oceano e é confrontado com o desconhecido.
E aqui está a camada subjacente a esta história complexa: o desconhecido e a incapacidade humana para realmente passar a conhecê-lo, o incompreensível e a nossa perplexidade quando deparamos com ele, a futilidade dos esforços que fazemos para desvendar o que nele se esconde. No fundo, é este o verdadeiro tema deste romance, e, aliás, nesse aspeto Solaris não está isolado no contexto da obra de Lem. Romances como A Voz do Dono ou Fiasco andam também muito por esses territórios, cada um à sua maneira. Mas é Solaris a sua obra mais famosa e marcante.
Porquê?
Em grande medida por causa dessa criação magistral que é o oceano. E porque funciona mesmo violando sistematicamente todos os mandamentos que se ensinam nos ateliers de escrita criativa formatados à americana. Ação, por exemplo, quase não há; o romance é fundamentalmente contemplativo. O mandamento que reza "show, don't tell", é esfrangalhado por longas digressões teóricas sobre o oceano, contando muito e não mostrando nada. E no entanto, deve haver muito poucas pessoas com gosto por algum conteúdo na sua FC que não considerem o todo magnífico. Esta ideia é, aliás, comprovada por Solaris ser dos poucos — muitas vezes o único — livros de origem não anglófona a conseguir sistematicamente lugar nas listas de clássicos da FC, sejam eles escolhidos pelos leitores, sejam escolhidos por estudiosos do género.
Solaris não é um romance emocionante. Também não é, com duzentas e poucas páginas, um romance grande. Mas é sem sombra de dúvida um grande romance, e um romance que perdurará durante muito, muito tempo.
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