quinta-feira, 1 de maio de 2003

O braço partido

Uma senhora que viu muito do século passado e tanto deste como todos nós, não viu um lancil que se esgueirou para a frente do seu pé no parque de estacionamento de um centro comercial algarvio. Se fosse na América, tal acto de incúria daria direito a processo legal multimilionário através do qual a senhora e a sua família teria uma óptima hipótese de enriquecer à custa do tal centro comercial (cujos donos enriquecem à nossa, claro). Aqui, na terra dos tribunais que bocejam e se revolvem em camas forradas a papéis inúteis, nem vale a pena pensar nisso. Mas divago.

A senhora, puxada pelas amarras decobertas pelo chato do Newton, espalhou-se ao comprido e soltou um grito de quebrar vidros a dezenas de metros de distância. O marido, que estava mesmo ao lado, ficou instantaneamente aflito e surdo, e enquanto a senhora se contorcia no chão com dores, ele olhava à volta, atarantado, sem saber o que fazer. Acorreu, claro, a multidão do costume, composta apenas por médicos e enfermeiros, todos com firmes opiniões clínicas, abalizadas pelas respectivas ausências de diploma na área da saúde.

Às tantas, um senhor autoritário olhou em volta e gritou: "Onde está o marido desta senhora?" "Estou aqui", tartamudeou o marido, atrapalhado. "Você?!", indignou-se o autoritário, olhando para o outro de um modo superior e cheio de desprezo. O enredo começava a adensar-se.

Sorte que a senhora, no meio da sua névoa de dores, teve presença de espírito suficiente para confirmar o casamento. É que o pobre do marido já começava a ter fama de facínora entre a multidão. Tinha, tudo o indicava, empurrado a pobre velhota, fazendo-a estatelar-se e partir um braço (soube-se mais tarde) em dois lugares diferentes. O malandro! E ainda teve o desplante de fazer-se passar por marido, certamente para fugir a responsabilidades! Porco!

Tivesse a senhora desmaiado, coisa que costuma acontecer a quem tem acidentes deste género, que teria acontecido ao marido, sozinho no meio da turba?

O povo é sereno, dizia o outro. Pois é. Sereníssimo. Mas é melhor não lhe cair nas mãos na altura errada, quer-me parecer.

Ah, e caso estejam em dúvida, esta história é verdadeira. Contaram-ma os meus pais ao regressar do hospital.

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