segunda-feira, 1 de dezembro de 2003

Isto não é um parabéns a você...

O meu pai detesta dias de anos, datas festivas, efemérides. Eu percebo porquê — se há noção deprimente é a de divertimento ou alegria com data e hora marcada, festa burocrática definida pelo relógio e calendário. De que vale a alegria que não nasce espontânea do fluir da vida? Mas quando mais um ano passa, especialmente quando é um ano cheio de problemas, a celebração tem de ser feita, como quem diz ao Aziago: "Toma lá, minha besta, para aprenderes! Resistimos mais um ano!"

Por isso, pai, vou pregar-te a partida de pôr aqui um poema teu. E não protestes, que o 68º aniversário foi ontem, logo isto não é nem data marcada nem festejo obrigatório. É só festejo.

E de mim para ti não há distância
há apenas o impulso dos meus dedos
arco mordido na prisão da pele

Nas esquinas rectilíneas desta rua
arde o sol e de mim para ti passam as sombras
da angústia
feros forjados varandim suspenso
sobre os teus seios Arde o Sol nas esquinas rectilíneas
sacos de roupa branca felicidade doméstica
gatos felizes purificando a sombra

E de mim para ti não há distância
uma nesga de escada
meia porta ensolarada alguidar de roupa branca
portas abertas à música
rádios cúmplices de felicidade triste
ali em baixo uma vela que me espreita
com os seus olhos de gaivota
lá em cima andorinhas pombos brancos raparigas
e aqui o mar escoado rochas à flor da pele

Mas de mim para ti não há distância
sinto-me alegre e doce tenho sol nos teus flancos
bebo luz dos teus dedos
purifico-me de todos os remorsos
ardo dentro deste globo de quietude
numa tristeza serena
num inconsolo de escárnio e de espuma

Nesta nesga de escada permitida
irmão dos trastes domésticos
suportando nos ombros as esquinas rectilíneas
dentro desta onda serena de incertezas
pesada de memória e permanência
irrompo como uma flor e existo

porque de mim para ti não há distância
poesia

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