domingo, 10 de outubro de 2004

Falar e fazer

Muito se tem dito sobre a inconsistência entre o que é dito e as acções concretas de quem diz as coisas. Quem nunca ouviu algum amigo ou conhecido a queixar-se, com desprezo mal disfarçado ou não desfarçado de todo, de que "os políticos" dizem uma coisa e fazem outra bem diferente? Ou, até, de que um dia dizem uma coisa e no dia seguinte o contrário? Há actividades e pessoas de que se espera este tipo de comportamento, mas a verdade é que ninguém parece estar imune a ele.

Em geral, isso não causa grandes problemas. Uma conversa a sério, um par de murros na mesa se for preciso, devolvem os pontos aos respectivos is e, com os pedidos de desculpa que forem necessários, implícitos ou explícitos, as coisas ficam relativamente bem. A confiança sofre sempre, mas pode-se continuar a lidar com as pessoas.

O problema é quando a incongruência entre o que se diz e o que se faz se revela um padrão. Há pessoas que falam e escrevem delicodocemente, derramando mel entre cada palavra e a seguinte, mas que passam a vida em conflitos com toda a gente. Há pessoas que se dizem solidárias e leais nas decisões mas procuram deturpar subterraneamente essas mesmas decisões em favor dos seus interesses ou das suas ambições.

Trabalhar com gente desta é possível só com uma dose muito grande de paciência e diplomacia. Paciência para estar permanentemente atento às manigâncias que vão saindo daquelas cabecinhas retorcidas, diplomacia para conseguir controlá-las sem prejudicar seriamente o trabalho. Só que tarde ou cedo as coisas acabam por rebentar. Porque nem sempre se acorda com os reservatórios de paciência cheios, e porque controlar este tipo de pessoas só é possível enquanto elas não se acham com poder suficiente nas mãos para fazerem o que quiserem: quando estão em meio igualitário, rodeadas de pessoas mais normais, ou então quando estão em posições subalternas num sistema hierárquico. Se um gajo destes sobe a chefinho, está tudo estragado.

A dificuldade é detectá-los a tempo. Como os mentirosos, que são capazes de enganar a maior parte das pessoas durante a maior parte do tempo mas não todas as pessoas durante todo o tempo, estes tipos também se costumam disfarçar bem até que qualquer coisa os desmascare perante a maioria. E como os mentirosos que acreditam nas suas proprias mentiras, também muitos destes indivíduos acreditam sinceramente na sua condição angelical e que quando a sua natureza lhes causa dissabores a culpa é dos outros, sempre dos outros.

No fundo, são uns tristes. Realmente tristes, dignos de pena. Há neles uma qualidade trágica importante — poucas coisas devem ser mais trágicas para uma pessoa do que assistir ao desmoronar do seu mundo e ser incapaz de compreender porquê. Mas a pena é uma qualidade abstracta e nada produtiva, que tem tendência a sumir-se quando as acções deste tipo de gente nos prejudicam a nós.

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