Já há algum tempo que venho sentindo vontade de escrever qualquer coisa aqui na Lâmpada sobre o caso Cachapa, e só não o fiz ainda porque das várias vezes que me sentei a pôr alguma coisa no papel sobre esse assunto achei que a abordagem não estava a ser inteiramente correcta.
Para quem não sabe o que é o caso Cachapa, algum enquadramento:
Possidónio Cachapa escreveu e publicou um livro chamado Materna Doçura que o levou a ser citado num relatório do SIS, ao lado de outros autores como Thomas Mann e André Gide, como um escritor que escreveu livros que "apresentam a pedofilia a uma luz favorável". O caso foi divulgado num certo tipo de imprensa, nomeadamente o Crime e o Correio da Manhã.
Ora bem, eu não li o livro em causa, logo não faço ideia se ele apresenta ou não a pedofilia a uma luz favorável, embora me custe a crer que o faça. Mas o simples facto de uma coisa como o SIS se dar ao trabalho de elaborar um Index inquisitorum de livros "subversivos" é revelador do estado fascizante em que vamos mergulhando cada vez mais profundamente. Desde o 25 de Abril que não havia um corpo de atrasados mentais a vasculhar produtos culturais à procura de indícios incriminatórios. Nessa altura, a coisa chamava-se PIDE e era célebre e notória pela absoluta imbecilidade de que dava mostras naquilo que cortava e deixava passar; hoje, o SIS parece querer ir pelo mesmo caminho, com o beneplácito dos mesmos poderes vigentes que procuram a todo o transe controlar ou, pelo menos, influenciar a comunicação social.
Um livro é uma coisa complexa. Um bom livro é-o mais ainda, e tem níveis de leitura variados e por vezes contraditórios: lido superficialmente parece uma coisa, lido aprofundadamente é outra, muitas vezes bem diferente. Só livros pastilha-elástica são lineares e óbvios como o sabor da própria pastilha-elástica, mas mesmo nestes as leituras possíveis dependem das experiências e sofisticação de quem lê. Em muitos livros (naqueles que têm personagens e pelo menos um esboço de enredo), há gestos, ideias e atitudes que coincidem com as do autor e outras que estão, por vezes, nos seus antípodas. Em livros onde não existe um narrador que comenta e opina, saramaguianamente, sobre aquilo que as personagens vão fazendo, é tarefa no mínimo complexa ter uma ideia, ainda que vaga, sobre a "luz" a que certos factos são vistos pelo autor. Na maior parte dos casos, é mesmo impossível.
Mas claro que os cretinos censores não sabem de nada disto. Para eles, a sua leitura, deformada pelos seus preconceitos e ideologia, é a única leitura possível. Para este tipo de gente, se um escritor procurar explorar os comos e porquês que podem levar alguém, por exemplo, a tornar-se pedófilo, está a fazer a apologia da pedofilia. Um escritor que escreva sobre crimes e não retrate os criminosos como marionetas sem alma, é um criminoso potencial. Um escritor que se debruce sobre terroristas sem fazer deles caricaturas simplificadas do Pinguim, arqui-inimigo do Batman, é alguém que de certeza que financia a Al Qaeda.
A vontade que dá é escrever sobre tudo o que esta gente acha subversivo. Escrever sobre pedófilos, ateus, comunistas, terroristas, homossexuais, apoiantes de John Kerry, opositores a Santana Lopes, cientistas, artistas, pessoas livres. Escrever sobre tudo o que não é eles, sobre a imensa panóplia de actos, coisas e pessoas que eles nunca serão capazes de compreender. Escrever, no fundo, sobre o mundo.
E também escrever sobre eles, mostrando-os como realmente são: uma corja de gente minúscula, mesquinha, subterrânea e emaciada que olha para o mundo através de perversões que tenta esconder até de si própria mas que são bastante evidentes para todos os demais.
E depois há os "jornalistas" do Correio da Manha e do Crime. Mas isso é toda uma conversa nova...
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