quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Lido: As Intermitências da Morte

Apesar de já ter ouvido dizer que este livro era bem capaz de ser o mais ligeiro de todos os livros de Saramago, mesmo assim me senti surpreendido com o quão ligeiro As Intermitências da Morte (bib., muito incompleta) consegue ser, ainda para mais tratando um tema, a morte, precisamente, com um peso intrínseco tão grande. Este romance quase pode ser classificado como comédia. Bem longe de nos mostrar a morte com as suas tradicionais roupagens tristonhas, terríveis e macabras, apresenta-nos uma personagem muito humana, muito feminina, muito cheia de vida, que começa por querer pregar uma lição à humanidade e acaba por ser ela a aprender algo de novo.

Para quem não sabe, porque há sempre quem não saiba, o enredo começa num acontecimento dos mais inesperados: num belo dia de ano novo a morte para de trabalhar. As pessoas simplesmente deixam de morrer. Moribundas, sim, podem ficar. Em coma, até. Em situações irreversíveis. Mas morrer mesmo, dar o passo final, colocar o derradeiro ponto final nas histórias das suas vidas, isso ninguém faz. Não por todo o lado, note-se. Só num país em particular que, embora em muitas coisas se pareça muito com o nosso, não é o nosso. Do outro lado da fronteira, tudo continua a acontecer como sempre aconteceu e as vidas acabam como sempre acabaram. Do lado de cá, seja lá este cá onde for, não.

A primeira parte do romance vai descrevendo o impacto que esta inesperada ausência de morte vai tendo no tecido social. Com um humor bastante corrosivo e não pouco cínico, há que dizê-lo. São aqui revelados os interesses corporativos, os conflitos entre aqueles que com o fim da morte veem o seu ganha-pão ameaçado e os que, pelo contrário, encontram aí uma nova oportunidade de negócio. Muito em particular os que desenvolvem os negócios à margem da lei.

Mas a páginas tantas o romance muda de figura e de caráter. Aí, somos apresentados à personagem principal propriamente dita. A morte, que entretanto voltou ao trabalho ainda que em moldes algo diferentes. Uma mulher que daí em diante vai servir de esteio para o livro. Ela e um músico que por qualquer motivo que escapa a ambos se recusa a morrer. A ele, o motivo escapa porque provavelmente nada sabe sobre ter a vida em causa (ainda que haja algumas referências a ter 500 anos de idade, elas não são muito claras e de qualquer maneira, mesmo que seja de facto extraordinariamente longevo, é claro que não sabe porquê); a ela porque não percebe o que se passa, porque não funciona o sistema com aquela pessoa em particular. Chamem-lhe brio profissional, chamem-lhe o que quiserem, o certo é que a morte não aceita deixar as coisas assim e vai tentar descobrir o que se passa com a morte adiada daquele homem, se bem que o que acaba por realmente encontrar seja algo bem diferente duma resposta. Algo que justifica a vida. O amor.

Ou seja, o livro acaba por ter duas caras bem diferentes uma da outra, acaba por ser dois livros num só, e foi precisamente esse corte, essa mudança radical de abordagem, que nele me pareceu menos interessante. É como se Saramago se tivesse cansado da sociedade, se tivesse fartado de ser irónico e corrosivo, se tivesse subitamente suavizado e decidido contar uma história diferente, mais centrada nos sentimentos do que nas grandes tendências sociais. Não será por acaso que o livro é dedicado a Pilar del Río. Não que essas duas partes não sejam interessantes, cada uma à sua maneira; mas a sua união num livro só não me convenceu por inteiro.

Mas é um romance de Saramago, sem dúvida. Melhor: é um romance de Saramago cheio de humor e de alfinetadas bem dadas. E embora esteja algo distante dos melhores dos seus livros, também me pareceu bem melhor do que romances como A Caverna ou O Homem Duplicado. Não acho que seja obra-prima, nem perto disso. Mas gostei bastante.

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