A Canção de Kali (bib.), de Dan Simmons, é um romance que já acabei de ler há algum tempo (praticamente dois meses) mas do qual, por um motivo ou por outro, só agora arranjei tempo para falar. Se o mesmo acontecesse com certos outros livros isso causar-me-ia problemas. Há histórias que começam a desvanecer-se da memória assim que o livro se fecha, quando não é ainda com ele aberto, e falar delas alguns meses mais tarde torna-se quase impossível. Mas não é o caso deste romance.
Como o título sugere, a ação desenrola-se principalmente na Índia. O protagonista é um americano, casado com uma emigrante indiana, que é encarregado de investigar o misterioso aparecimento de um novo manuscrito escrito por grande poeta indiano que consta estar morto. Para isso embarca com a mulher e uma filha pequena num avião para Calcutá, uma das maiores cidades da Índia (e do mundo), descrita como um lugar caótico, repleto de miséria e sujidade e centro de um culto à deusa hindu da destruição, Kali, consorte do deus da morte, Shiva.
Mas Simmons, com esta matéria-prima nas mãos, resiste à tentação da facilidade. Não mergulha o leitor de cabeça e à bruta no horror sobrenatural que se poderia supor. Pelo contrário, meio romance é passado em pleno realismo, com não mais que subtis indicações de que algo de realmente invulgar se passa naquela cidade, algo que transcende as simples consequências do sobrepovoamento e do subdesenvolvimento. Algo que não se explique apenas com crime organizado e seitas religiosas clandestinas e fanáticas.
É em boa parte por causa dessa pintura de um cenário inteiramente realista, ao mesmo tempo que vai preparando o leitor para o que está para vir, que este livro está tão bem conseguido. Por causa da subtileza que percorre todo o romance, por ter todos os fios que constituem a trama tão bem amarrados. Por estar muito bem escrito, com um ritmo impecável, com tudo no sítio. No que acontece ao protagonista e sua família, nas várias personagens que se vão cruzando com eles, no retrato — nada lisongeiro — da cidade de Calcutá e da própria Índia, não parece haver nada a mais nem nada a menos. Tudo está onde e como deve estar.
Achei A Canção de Kali dos melhores livros que li nos últimos anos. E é dos poucos livros que recomendo sem reservas a quase qualquer leitor, sejam quais forem os seus gostos, à exceção de quem não goste de livros perturbadores. Porque A Canção de Kali, pese embora toda a sua subtileza, é um livro perturbador. Ou talvez por causa dessa subtileza. É mais fácil acreditar que por trás das aparências algo de negro se move quando essas aparências são tão palpáveis do que quando a descrença é violentada desde o início com as tentativas desajeitadas de chocar com que tantos autores menores se comprazem. E Simmons, basta este livro para o dizer, e bastaria mesmo que nada mais de bom tivesse escrito ao longo de toda a carreira, não é um autor menor.
Este livro foi comprado.
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