A Louca do Sacré-Coeur é um mirabolante álbum de banda desenhada de Moebius e Alejandro Jodorowsky, dividido em três partes, que segue o lento mas inexorável mergulho de um tal Alain Mangel, seriíssimo (ou talvez não tanto) professor catedrático de filosofia na Sorbonne, no mais absoluto delírio místico-sexual.
O livro é, parece-me, no fundamental um grande gozo. Um gozo a uma certa forma pretensiosa e oca de intelectualismo, para começar. Mangel, a princípio um respeitado catedrático, decompõe-se sem qualquer esforço num caco humano, incapaz, cobarde e manipulável, incapaz de resistir à atração sexual por jovens vinte ou trinta anos mais novas (e invariavelmente loucas) e aos seus caprichos e às consequências que estes têm.
Um gozo, também, à crise masculina da meia idade, àquela pulsão que certos homens sofrem por partir numa busca frenética por qualquer coisa que lhes traga de volta a juventude perdida. No mundo real, esta pulsão é frequentemente destrutiva, mas é raro que o seja tanto como no caso de Mangel.
Um gozo, ainda, ao misticismo new age; embora esta história date dos anos 90, há aqui uma clara influência do substrato cultural dos anos 60 e 70. Drogas? Temos. Guerrilheiros nas selvas da América Latina? Temos. Xamãs? Temos. Mistura de sexo e misticismo? Temos, oh se temos! Particularmente hilariante é uma cena em que a seita de quatro em que Mangel se mete, mais ou menos a contragosto, e que tem como objetivo gerar o novo Messias, o batiza, dando-lhe o nome de Zacarias. Como é feito o batismo? Forçando-o a dar a sua semente a "Cristo-Maria" (uma das duas loucas da seita, filha de um barão da droga colombiano). Coisa que ele desejava muito fazer, aliás. O que Mangel não esperava era que a sessão de sexo acabasse com ele amarrado e... enrabado por "São José", o outro homem da seita, um pequeno criminoso cujo verdadeiro nome é Mohamed.
Sim, o livro tem bolinha vermelha ao canto superior direito. Aliás, a própria capa o sugere.
E sim, é muito divertido. Quase todo.
O que, a meu ver, o estraga é a última parte. O desenho perde consistência e torna-se abonecado e o gozo torna-se significativamente menos gozativo, pois tudo aquilo que até aí era misticismo sem consistência passa a ser apresentado como realidade. Temos aqui um dos raríssimos casos em que a introdução de uma fantasia mais concreta numa história (em oposição a um fantástico que pode ou parece ser apenas questão de imaginação de alguma personagem, o qual existe desde o início) acaba por a piorar. Quando as certezas estapafúrdias dos loucos que levam Mangel da Sorbonne à selva colombiana acabam por se concretizar numa sessão alucinatória de onde Mangel sai sarado de todas as suas maleitas e rejuvenescido, num final feliz delicodoce, quase à filme de Hollywood, toda a troça que fica para trás perde fôlego e consistência. E isso é de lastimar.
Com um desenlace diferente, teria gostado muito deste livro. Com este...
Bem, mesmo com este não posso dizer que não tenha gostado; afinal de contas, o final não consegue apagar o que ficou para trás. Mas que deixa um gostinho um pouco amargo na boca, isso deixa.
Mais um livro comprado.
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