A Arte de Voar, de Antonio Altarriba (guião) e Kim (arte), foi uma das grandes surpresas das minhas leituras do ano passado. Eu, que da BD espanhola só conhecia mal e porcamente algumas coisas do Salamão e Mortadelo (ou será Mortadela? Nunca sei), mais uma prova clara de que não sou bedéfilo, foi com algum espanto que dei por mim a mergulhar nesta adultíssima biografia em banda desenhada e foi com assombro que descobri, ao fechar a contracapa, que a tinha adorado.
Há nisso, de resto como há sempre, uma mistura de razões objetivas com outras absolutamente subjetivas. Entre as primeiras, avulta uma forma muito literária de narração e de construção da história. Exemplo claro disso são os últimos três quadros das três páginas que funcionam como prólogo, nos quais, entre pensamentos do protagonista, o narrador narra o seguinte: "Posso por isso assegurar que foi assim que [o meu pai] se suicidou. Posso igualmente assegurar que, ainda que parecessem apenas segundos, o meu pai demorou noventa anos a cair do quarto andar..."
Entre as razões subjetivas, a mais importante é também a mais simples: esta história mexeu comigo de uma forma muito, muito profunda. À semelhança do livro de Jean Renoir sobre o pai, tambérm este é a reconstrução da vida de um homem, feita pelo seu filho, deixando transparecer nas entrelinhas uma enorme ternura pelo pai desaparecido. Este é, decididamente, um ponto fraco meu; isso ficou bem claro nas leituras do ano passado. Ainda por cima, neste álbum fui encontrar um homem que, embora diferente do meu pai em muitas coisas, também era semelhante em muitas outras. Era semelhante na condição de homem de aldeia transplantado para a cidade, na condição de homem de esquerda vivendo a maior parte da vida em tempos de ditadura de direita, no entusiasmo com o fim da ditadura e na desilusão com o que veio depois. O pai de Altarriba suicidou-se no fim da vida; o meu só não fez o mesmo porque não teve forças para isso.
Antonio Altarriba escreveu esta história para compreender a morte do pai, sabendo que para lhe compreender a morte teria de lhe compreender a vida. E eu, ao lê-la, ao compreender a vida e a morte do pai dele, compreendi também melhor as do meu.
Juntando a isso, e isso só por si já é muito, uma arte que não só é de grande qualidade (dizem-no os peritos; quem sou eu para negar?) como está muito próxima do tipo de traço de que eu mais gosto desde miúdo, umas sequências oníricas, ou até talvez alucinatórias, que trazem o meu querido fantástico para o terreno biográfico em que, em princípio, lhe seria impossível ganhar raízes, e uma história movimentada pelos tempos mais turbulentos do século XX europeu, o ramalhete de qualidades deste livro fica variado e frondoso e explica com total clareza por que motivo o escolhi para integrar o trio de melhores livros do ano.
Não sei se o livro é realmente excelente e, na mais pura das verdades, nem me interessa saber. Sei que gostei muitíssimo dele. Isso é mais que suficiente.
Este livro foi comprado.
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