quinta-feira, 8 de junho de 2017

Lido: Mau Agoiro

Há contos realistas que o são sem ponto nem vírgula, descrevendo acontecidos e supostos com toda a verosimilhança das realidades conhecidas, como quem nota em rodapé "se não aconteceu podia ter acontecido." Outros há, no entanto, que, mesmo não sendo menos realistas, é como se o fantástico espreitasse pelos interstícios, seja na descrição dos ambientes, seja na construção das personagens, seja no tratamento da língua que neles se faz, seja onde seja. Mau Agoiro, conto de Vitorino Nemésio, açoriano até à medula de que é feita a língua (refiro-me ao conto, mas até se aplicaria também ao autor), é destes últimos.

Conta vivências de uma velha taralhouca, miserável, a quem o rei ou qualquer outro manda-chuva "que bebe o sangue aos pobres" leva o único filho deixando-a sozinha. Desventuras e mais desventuras; ora é um raio que dá fogo à casa, ora uma rabanada de vento que parte uma janela, e num rasar de asa se passam meses. O cenário seria ideal para um conto de horror, daqueles carregados de sobrenaturalidades e fantasmagorias. Mas não é desse horror que Nemésio quer dar conta; é do horror da vida dos necessitados, e em consequência a sua piscadela de olho ao fantástico nunca chega a passar disso.

No deve e haver de qualidades e defeitos o que acaba por realmente sobressair é a escrita, muitíssimo boa mesmo quando o entendimento pelo pobre continental que sou sofre com a grande abundância de açorianismos, tanto lexicais como de pronúncia, que a grafia escolhida preserva. Este não é conto que se leia sem pensar muito; tanto as múltiplas situações de "que raio quer isto dizer?" como os inesperados saltos temporais na narrativa impedem que o seja.

Se gostei? Gostei. Quanto mais não seja porque há aqui pormenores que são outras tantas lições de bem escrever.

Contos anteriores deste livro:

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