segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Lido: Darwinia

AVISO: Esta opinião tem spoilers

Darwinia (bib.) é um romance de ficção científica de Robert Charles Wilson sobre, como vem escrito na capa, "um século XX muito diferente." Mas se virmos bem as coisas, não é exatamente sobre isso.

A história começa mostrando-nos um acontecimento, assim mesmo, em itálico. Algo de gigantesco e inexplicável, um milagre. A Europa ou, mais precisamente, um círculo de território terrestre que engloba a Europa e partes dos continentes limítrofes, é de um momento para o outro substituída por uma sua versão alternativa, geograficamente semelhante mas totalmente estranha no que toca à biologia. Uma Europa que não tem seres vivos reconhecíveis e, como é óbvio, não tem seres humanos. Nem as coisas que os seres humanos foram fazendo e o impacto que foram tendo na paisagem. Não só a biosfera é diferente, como o mesmo acontece com toda a sua história natural. Um continente virgem e coberto de uma vida como que vinda de outro planeta, embora simultaneamente com todos os sinais de ter evoluído ali mesmo durante os mesmos milhões de anos que nós demorámos a chegar cá. Um continente a que é dado o nome de Darwinia.

Acontece este milagre no início do século XX. O romance centra-se no espaço anglófono, e é logo aqui que reside a sua primeira falha. Porque os EUA surgem como potência dominante em toda a Europa, é como se as potências europeias da época — com a notável exceção do Reino Unido — não tivessem colónias, e como se pelo menos Portugal e a Espanha não tivessem também, à semelhança da Inglaterra, ex-colónias com capacidade e muito provavelmente vontade de intervir nas ex-metrópoles, ou naquilo em que elas se transformaram. Como se só houvesse laços familiares quebrados em famílias anglófonas, numa inverosimilhança bastante etnocêntrica e um bom bocado simplória.

Mas ultrapassada esta pequena irritação, a história é interessante, e mais interessante se torna quando começa a descobrir-se onde é que está, afinal, a FC. É que esta Terra não é a nossa, e nem sequer é uma outra Terra alternativa à nossa, localizada nalgum universo paralelo, a menos que se postule que nós, vocês e eu e toda a gente, vivemos no interior de uma singularidade e que toda a realidade que nos rodeia não passa de ilusão. Porque é precisamente isso que explica Darwinia. Na realidade do romance, todo o planeta, todo o universo, aliás, não passa de uma simulação num sistema informático imensamente poderoso, que no entanto se encontra sob ataque por parte de uns seres que pretendem destruí-lo. Algo de semelhante a vírus. E o acontecimento origina-se aí: foi um ataque, um grão na engrenagem, uma corrupção da informação que provocou uma alteração fundamental no rumo traçado para a simulação.

Não foi por acaso que este livro ganhou o prémio Philip K. Dick. Joga com a ideia de que a realidade é ilusória duma forma bem semelhante à de Dick.

No entanto, julgo que há uma falha no enredo. Ou pelo menos houve uma coisa que eu não entendi. É que depois do acontecimento, essa intrusão violenta, súbita e de escala gigantesca, o combate entre os "deuses" que dirigem a simulação e os que procuram destruí-la desce literalmente à Terra. Esses "deuses" passam a controlar indivíduos que, através dos seus atos, vão preparando o palco para uma batalha final. E eu não consigo entender que motivo poderia levar algo suficientemente poderoso para uma corrupção súbita de grande escala a ter de se reduzir a levar a cabo trabalhinho de sapa através da manipulação de avatares. A não ser, naturalmente, esse facto permitir que mais de metade do romance exista. Mas essa razão não me parece suficiente. As obras de ficção devem ter uma lógica interna, que julgo que aqui é violada. E acho a necessidade de haver uma confrontação final desagradavelmente cliché. E no entanto...

... e no entanto gostei bastante. Talvez andar a ler relativamente pouca ficção científica nos últimos tempos faça com que saboreie melhor quando me vem parar às mãos um exemplo do género com alguma sofisticação. Ou talvez Darwinia tenha mesmo qualidade, apesar das falhas. Não recomendo este livro a toda a gente, mas os fãs de Dick, pelo menos, devem gostar muito de o ler.

Este livro foi adquirido como brinde na promoção "Leve 3, pague 2" da Saída de Emergência.

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