quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Lido: Desgraça

Desgraça, do sul-africano J. M. Coetzee, é um grande romance.

Descrevendo a vida de um professor de literatura na Universidade do Cabo depois de se entregar a uma relação com uma aluna, o livro é uma dura reflexão sobre as relações de poder numa sociedade à deriva e em transição entre o poder repressivo duma minoria e o poder da maioria pós-apartheid, e onde o racismo nunca se encontra coberto por mais do que uma fina película de recém-adquirida tolerância, quando está coberto por alguma coisa.

O protagonista começa o romance no topo da escala social, como professor respeitado, pelo menos na aparência, ainda que tenha a sensação de que na realidade não está a ensinar nada a ninguém. Divorciado, encontra em prostitutas a forma de dar vazão às suas necessidades sexuais, até que uma das suas alunas lhe desperta a atenção. Sedu-la, valendo-se para isso do poder que detém enquanto professor. Não chega propriamente a violá-la, mas não anda longe. E cai em desgraça quando a rapariga faz queixa.

Começa logo aqui o jogo de Coetzee com as relações de poder na sociedade em que vive (ou vivia, quando escreveu o romance; hoje vive na Austrália e tornou-se entretanto cidadão australiano), mas ele leva-as muito mais longe. O professor, caído em desgraça (embora lhe tenha sido oferecida a oportunidade de se redimir com um pedido público de desculpa, que ele não aceita), vai viver com a filha lésbica que tem terras e uma espécie de canil numa zona rural distante. Aí conhece um dos vizinhos da filha, antigo empregado e recente proprietário que está em plena ascenção social. Negro, claro. E é na dinâmica da relação entre a filha (e o próprio professor) e este vizinho que Coetzee baseia a sua analogia com a África do Sul como um todo.

Numa sociedade em mudança, o burguês intelectual, que nunca escondera o seu snobismo, e a sua filha, proprietária rural, dois tipos naturais de repressores de tempos idos, acabam na condição de vítimas quando um grupo de criminosos viola a filha (engravidando-a) e espanca e quase queima vivo o pai. Criminosos que, marcados pela sua antiga condição de vítimas, se acham agora no direito de passar a repressores, desencadeando uma violência que é como um espelho daquela a que foram antes sujeitos. Têm desculpa? Será preciso, ou até possível, levá-los à justiça e fazê-los pagar pelos seus atos? É nesta discussão que se abre um abismo entre o pai e a filha. Aquele procura vingança, ainda que duma forma inconsequente e ineficaz; esta prefere esquecer, e prepara-se para ter o filho e cuidar dele, aceitando a proteção do vizinho (familiar de um dos agressores) e a sua nova condição de impotência.

Escrito num estilo adequadamente seco e objetivo, nu de rodriguinhos, este livro é grande literatura, sem sombra de dúvida. Uma história interessante e bem contada, personagens credíveis, diálogos verosímeis, um estilo adequado e, acima de tudo, muitíssimo conteúdo. É verdade que eu prefiro outras literaturas à realista, como esta, mas não é menos verdade que livros como este quase me levam a fazer as pazes com o mainstream literário. Muito bom.

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