Little Brother, de Cory Doctorow, é um romance de ficção científica que vai buscar inspiração aos EUA dos anos Bush para desenvolver uma distopia política na qual todos os abusos reais e documentados que se seguiram aos ataques de 11 de Setembro são amplificados, chegando-se muito perto da instauração de um estado fascista e policial enquanto se afirma estar-se a defender a democracia americana contra os terroristas e os "elementos subversivos seus aliados". Esta espécie de duplipensar dos tempos modernos tem ascendência evidente no 1984 de George Orwell, que é assumida por Doctorow no próprio título do romance e nos agradecimentos e bibliografia. Mas, ao contrário do romance de Orwell, quem combate o totalitarismo não é um funcionário do sistema que se apercebe do seu caráter inerentemente maligno, mas sim um adolescente, hacker, que arranja maneira de contornar os sistemas de segurança do Departamento de Segurança Interna e de outras instituições e aparelhos, e se dedica à denúncia dos abusos que estão a ter lugar na sua cidade de São Francisco depois de ter sido uma das primeiras vítimas desses abusos logo após a cidade ter sido vítima dum atentado terrorista. Enquanto o faz, e sem que o planeie, numa espécie de efeito secundário, acaba por gerar um movimento político com consequências de grande alcance.
Como acontece quase sempre com as distopias políticas, trata-se de um romance claramente ativista. Escrito em 2006, já depois de Abu Ghraib e de terem sido tornados públicos os abusos e torturas de Guantanamo e das prisões secretas em países como a Síria (ambos surgem no romance, embora a Guantanamo de Little Brother seja uma ilha na baía de São Francisco), pretende denunciar violentamente toda a atitude mental que lhes deixou o caminho livre, acabando mesmo por fazer um apelo direto ao voto, contra a apatia. E, claramente, contra o Partido Republicano.
Como tal, é uma leitura interessante mas que corre o risco de se tornar datada muito depressa, especialmente se tivermos em conta que a eleição de Obama pôs travão aos aspetos mais tenebrosos da América de Bush, pelo menos por enquanto e até ver; os que votaram em Bush e depois em McCain continuam lá, a destilar veneno, prontos a regressar à primeira oportunidade. Apesar disso, para quem partilha das convicções políticas do autor, Little Brother é um pratinho cheio, um belo acepipe, chegando por vezes a ser comovente. Os outros, achá-lo-ão talvez demasiado panfletário ou até coisas piores. Eu próprio, que até partilho das ideias de Doctorow relativamente a uma série de coisas, senti-me por vezes incomodado por esse tom panfletário, em especial na primeira metade do livro.
Mas seja qual for a ideologia do leitor, provavelmente concordará que a história está bem contada e bem escrita. E quem saiba alguma coisa sobre o que aconteceu no mundo na última década só pode achá-la verosímil, por mais que isso lhe custe. Vale definitivamente a pena ser lida. E os leitures portugueses, segundo o próprio Doctorow divulgou via twitter há um par de meses, terão essa oportunidade, não se sabe ainda quando. Tenho muita curiosidade em ver essa tradução: o meu cérebro de tradutor não parou de se assustar com a mistura de jargão informático especializado e oralismos que foi encontrando ao longo de toda a leitura. É um trabalho e pêras, e o tradutor que o consiga levar a bom termo tem o meu eterno respeito. E a responsabilidade é grande: um trabalho que fique aquém corre o risco de arruinar o livro quase por completo. É livro que comprarei de certeza.
Mas para quem não quiser esperar e/ou deseje lê-lo em inglês, o livro está livremente (e legalmente) disponível na net. Por exemplo, na DailyLit, onde foi serializado em 139 partes. Boas leituras.
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