quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Marcel Schwob: A Cidade Adormecida

Será possível haver textos borgesianos antes de Borges? Nas topografias fantásticas do próprio Borges a possibilidade certamente existiria, mas cá fora, no mundo real, não parece existir. E no entanto...

E no entanto este conto de Marcel Schwob quase parece ser de Borges, ainda que o título, A Cidade Adormecida (bibliografia) faça lembrar mais Calvino, e ainda que Schwob tenha uma prosa bastante mais poética do que a rigorosa prosa analítica do argentino. É sobretudo uma questão de ambiente e de personagens. Aqui acompanhamos uma tripulação de um navio pirata e sobretudo o seu capitão, pois é este o protagonista. Nada de particularmente borgesiano até agora, mas olhem só: os tripulantes são "homens de todos os países, de todas as cores, de todas as línguas", irmanados apenas pela ânsia de encontrar um tal País Dourado. E cá estamos, plenamente mergulhados em Borges sem que no entanto este esteja presente.

E os piratas acabam por encontrar a cidade adormecida do título, uma cidade imensa mas morta, ou pelo menos de vida suspensa, num cenário quase de ficção científica, habitada pelos habitantes de todas as cidades com a diferença de os daqui estarem imóveis, como estátuas paralisadas de surpresa momentânea, agora estavam vivas a viver normalmente e a tratar dos seus afazeres, logo depois são um retrato eterno e tridimensional da humanidade. O desfecho do conto, que não contarei, é ao mesmo tempo previsível e inesperado, e algo horrorífico também, e contribui para fazer com que este seja realmente um conto muito bom. Mesmo.

Textos anteriores deste livro:

Sem comentários:

Enviar um comentário

Por motivos de spam persistente, todos os comentários neste blogue são moderados. Comentários legítimos passam, mas pode demorar algum tempo. Como sempre acontece, paga a maioria por uma minoria de idiotas. Parece ser assim que o mundo funciona, infelizmente.