sábado, 12 de setembro de 2020

Hans Christian Andersen: A Sombra

Quando pensamos em Hans Christian Andersen, a associação imediata que nos ocorre é com fábulas, contos de fadas, literatura infantil. E de facto encontra-se neste conto intitulado A Sombra (bibliografia) um pouco do mesmo tom, como se o autor não conseguisse (ou não quisesse) desligar-se por completo do tipo de literatura que mais praticava. Da sua zona de conforto, por assim dizer. Mas isso não significa que A Sombra seja um conto infantil. Na verdade, está bastante longe de o ser.

O que este conto realmente é é uma história sobre o oportunismo dos videirinhos sem qualidades, que se serve do fantástico para melhor sublinhar as ideias que lhe estão subjacentes. O protagonista é um erudito que, durante uma viagem a um país quente, entrevê uma donzela, ou talvez uma entidade mágica, entre as cortinas da casa que fica na frente daquela onde está hospedado. E, meio na brincadeira, ordena à sua sombra para ir lá dentro ver de que se trata. Para sua surpresa é o que a sombra faz. E não volta.

Sem sombra, o homem prossegue a sua vida, estudando e aperfeiçoando a sua erudição, mas sem realmente subir na vida. Até que anos mais tarde a sombra regressa. Vem quase transformada em gente, e rica. Conta-lhe que a sua condição lhe permitiu ficar a saber dos podres de meio mundo e ganhou riqueza e poder com base na chantagem. E acaba por lhe fazer uma estranha proposta: pagar-lhe-ia principescamente se ele se tornasse sua sombra. E o homem, mesmo renitente, aceita. Não é boa ideia.

A alegoria é bastante clara. Andersen fala aqui basicamente de discípulos sem escrúpulos nem verdadeiro talento que se aproveitam da boa vontade dos mestres e os usam para subir na vida. E, de uma forma mais genérica, de como as pessoas realmente válidas tendem a ser espezinhadas por medíocres cujo único verdadeiro talento é serem capazes de falsificar qualidades que não têm. É um conto de denúncia algo amargurado, que se serve da fantasia para não dar os nomes aos bois ao mesmo tempo que os deixa totalmente óbvios, o que é um uso do fantástico tão bom como qualquer outro.

Textos anteriores deste livro:

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