sábado, 8 de junho de 2013

A diferença entre uma pessoa séria e o Bagão Félix

Grosso modo (isto de começar um texto com uma expressão latina fica sempre bem), há duas formas de avaliar o impacto de uma mudança. Digamos, assim ao calhas, uma mudança ortográfica. A das pessoas sérias e a dos aldrabões.

As pessoas sérias pegam num texto qualquer, ou de preferência até em vários, e analisam o que muda nesses textos, a proporção do que se altera e do que fica igual, se há algum problema gerado pelas mudanças, etc., etc. Convém que sejam textos escritos por outras pessoas. Não é obrigatório que sejam literários, mas também não faz nenhum mal que o sejam. Convém é que sejam escritos por quem conhece a língua, por quem a usa quotidianamente (ou cotidianamente, tanto faz; é facultativo), por quem faz dela o seu instrumento de trabalho ou de expressão artística. Textos literários ou jornalísticos são um bom ponto de partida.

Ou seja, fazem mais ou menos o que eu fiz aqui com um texto do David Soares. Demonstrar o oposto do que o Soares queria demonstrar é só um bónus, e não está garantido à partida; as pessoas sérias analisam os factos tal como eles são, não retorcem a realidade para convir aos seus preconceitos.

Pelo contrário, os aldrabões escrevem textículos de propósito para a "análise", empilhando neles o máximo possível de alterações, escolhendo a dedo exemplos que possam ser problemáticos, quer façam sentido, quer não passem de uma pilha de disparates. Para potenciar o fator histeria, pintam as alterações a VERMELHO, não vá alguém correr o risco de não entender a mensagem, que isto há por aí gente burra que tem dificuldade em entender mensagens.

Basicamente o que o Bagão Félix fez com este pedacinho de... hum... enfim, chamemos-lhe prosa à falta de termo mais apropriado:


Empilhando frases sem sentido consegue "provar-se" qualquer coisa. Querem ver? Olhem: "O Bagão Félix é um ser vivo; um piolho é um ser vivo; logo, o Bagão Félix é um piolho." Viram?

E para "provar" este disparate precisei de menos palavreado que o Bagão Félix para "provar" o dele.

O que realmente se prova quando se empilha frases sem sentido, e agora "prova" vem sem aspas, é que quem o faz é claramente um aldrabão. Que não é sério.

(Abre parêntesis. Sabem que respeito me merecem aldrabões, sabem? Zero. Rigorosamente zero. Fecha parêntesis.)

E Bagão Félix consegue até ser tolo, ou pelo menos incompetente, porque entre os exemplos que dá da "nova ortografia" nem sequer foi capaz de encontrar só daquelas mudanças que o são de facto, mudanças obrigatórias. Atira-se a espetador, desconhecendo ou ignorando que essa palavra passa a ter dupla grafia e quem quiser continuar a escrever espectador pode; atira-se a andamos desconhecendo ou ignorando que essa palavra passa a ter dupla grafia e quem quiser continuar a escrever andámos pode.

O Bagão, que tem andado ortograficamente inFélix, tadito, tem todo o ar de alguém que acha tudo isto muito confuso. Mas só quem não tem grande coisa na cabeça pode achar confusas frases como "a ata não ata nem desata" (que é das poucas que fazem algum sentido naquela estúpida salganhada). Será que alguém com mais que um neurónio na cabeça vai pensar que "a ata" pode não ser um nome? Haverá alguém que seja tão perfeitamente zero à esquerda que não conheça e nem consiga individualizar a expressão "não ata nem desata"? Não compreender ou achar confusas frases como esta revela, muito mais do que maldades ou bondades do acordo ortográfico, um grau de incompetência linguística verdadeiramente atroz.

Gente como o Bagão Félix, aliás, deve ser completamente incapaz de falar e escrever português tal como ele já era antes do AO90, pois na nossa bela língua há frases como as que alguém deixou num comentário à patetice felixiana:
Eu rio enquanto junto ao rio gelo por causa do gelo que se acumulou durante a noite. Se me queimar, penso que vou ter que pôr um penso. Mas cedo cedo à dor.
E o bónus é que estas três frases fazem sentido, coisa que o Bagão Félix foi incapaz de conseguir. Tal como sentido fazem as que eu arranjei aqui há tempos para ilustrar umas noçõezinhas básicas sobre homografias, homofonias e homonomias. Se achasse que valeria de alguma coisa, aconselhava os bagões félixes que por aí andam a irem ler, para ver se aprendiam alguma coisinha. Mas não vale de nada. Porque os bagões félixes não são sérios. Não passam de aldrabõezecos ignorantes que se estão nas tintas para o conhecimento ou, sequer, para uma discussão minimamente séria das coisas. Só querem lançar a confusão, o alarmismo, fazer com que coisas que mal se notam pareçam titaniques prestes a afundar-se com todos os icebergues do mundo em cima, dizer que aumentam divergências que diminuem, gritar aqui d'el-rei que os brasileiros isto e aquilo quando quem já papa as consoantezinhas mudas quase todas na fala são os não brasileiros, etc., etc., etc. e mais etc.

Em suma: são desprezíveis.

(Abre parêntesis. Gente como o juiz Rui Teixeira, que acha que com o AO90 cágado passa a cagado e facto passa a fato não entram necessariamente na categoria dos aldrabões, a menos que insistam na asneira mesmo depois de se lhes explicar os factos pertinentes. Por conseguinte não entram automaticamente na categoria dos desprezíveis. Entram na dos patetas com opiniões firmes sobre assuntos que desconhecem por completo, mas não nas dos desprezíveis. Fecha parêntesis.)

E gente desprezível deve ser tratada com desprezo. Ponto final.

18 comentários:

  1. Até os macacos percebem. Ver em http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=57834&op=all

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  2. Para um acordista faz todo o sentido que "coacção" (de coagir) passe a ser o mesmo que "coação" (de coar), "óptico" (relativo à visão) passe a ser o mesmo que "ótico" (relativo à audição) e "retractar" se escreva da mesma maneira que "retratar".

    De facto, "facto" não muda para "fato", tal como "contacto" não muda para "contato", mas muitos acordistas ignorantes passaram a escrever como se escreve no Brasil. Será que também escrevem "úmido" (pt-br) em vez de "húmido" (pt-eu)?

    É certo que "cágado" não perde o acento agudo, mas teria perdido se tivesse vingado o Aborto Tortográfico de 1986, o ano em que nasceu a "lusofonia" segundo o "acordista" Fernando Cristóvão.
    O (des)acordo [des]ortográfico não é mais que um tratado político pseudolinguístico.

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    1. Nunca hei de entender o que há de tão incompreensível para vocês em palavras que se pronunciam da mesma forma passarem também a escrever-se da mesma forma.

      Quanto aos exemplos, meh, podias dar melhores. Óptico, por exemplo, é uma grafia legítima na nova ortografia. Retractar também. E coação, de coar, é palavra que praticamente não se usa. E mesmo que se usasse, achar que não faz sentido que essas duas palavras sejam homógrafas é tão absurdo como achar que não faz sentido que tantas outras o sejam. "Canto" tem múltiplos significados e não me consta que isso causa dificuldades a alguém.

      Sim, há ignorantes que escrevem à brasileira. Mas não por causa dos "acordistas", lamento. Por causa dos aldrabões caturras que intoxicaram de tal forma a opinião pública com a fraude de que íamos passar a escrever "brasileiro" que houve muita gente que acreditou. Tivesse essa gente um mínimo de vergonha na cara, um mínimo que fosse, e o grau de ignorância e, consequentemente, de calinadas, seria muito menor.

      É a tal história: gente desprezível.

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    2. Penso que está errado no que diz respeito a "óptico" e a "retractar", mas confesso que não conheço todas as variantes e interpretações do AO90. Excepto se quando fala em "grafia legítima" está a considerar tanto Portugal como o Brasil? Isso seria válido apenas para o primeiro termo. O ILTEC diz que "óptica" é uma forma brasileira, mas "retractar" foi eliminado, não sendo utilizado no Brasil. Os dicionários Priberam e Infopédia apresentam os dois sentidos de "retratar" agora agregados numa única entrada. O dicionário da PE parece confundir-se, pois não apresenta o sentido de "óptico", apenas de "ótico".

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    3. Óptico é legítimo porque pode ser usado em Portugal. A grafia é dupla em todo o espaço lusófono; também em Portugal há quem pronuncie esse p, e não se trata da hipercorreção que por vezes se vê noutros casos.

      Quanto a retractar, acabei de ir ao vocabulário da mudança confirmar o que o ILTEC diz, e não diz nada disso. Diz, tal como eu, que a palavra tem dupla grafia, simplesmente.

      O dicionário Priberam NÃO apresenta os dois sentidos de retratar agrupados numa única entrada. Apresenta TRÊS sentidos de "retratar" subdivididos em TRÊS entradas diferentes que, obviamente, surgem todas no écran ao procurar-se pela palavra. Podem confirmar: http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=retratar

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    4. Espero não o maçar por insistir, mas vou tentar ser breve e claro.

      "Óptico" em pesquisa no VOP, surge com a indicação "Brasil". Em "ótico" diz-se "também variante AO de : óptico ( Brasil)".

      Na letra O do Vocabulário da Mudança o texto é claro: "óptico não é usado em Portugal".

      "Retractar" em pesquisa no VOP: "Palavra não encontrada. A palavra retractar não se encontra no VOP".

      Na letra R do Vocabulário da Mudança:
      Ortografia antiga 1945 - Retractar
      Ortografia antiga 1943 - Retratar
      Ortografia nova - Retratar

      Não diz, de todo, que a palavra tem dupla grafia, nem sequer no sentido "internacional" que por vezes se dá à expressão. Aliás, se pesquisarmos "retractar" no VOLP brasileiro o resultado é "Nenhuma palavra encontrada na pesquisa!"

      Portanto, parece-me claro que nos termos da variante do AO 90 do ILTEC (que é a aprovada pelo Governo de Portugal) a utilização desses termos em português de Portugal não é correcta.

      Em relação ao último parágrafo tem toda a razão, claro, são três os sentidos.

      Mas em baixo diz também "Grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990: retractar" pelo que não entendo a confusão. Se mudar a opção do dicionário para "antes do AO" a nota que surge é "Grafia alterada pelo Acordo Ortográfico de 1990: retratar".

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    5. Hm... tem razão; aqui baralhei-me forte e feio, e essas palavras realmente não admitem dupla grafia. Tenho ótimos (ou péssimos, na verdade) motivos para isso, mas aos factos pouco importam esses motivos: a asneira foi minha, e exige-se um pedido de desculpa ao Pedro Pinto por essa parte da resposta, pedido esse que apresento.

      Factos são factos.

      Mas a asneira não se estende ao resto da resposta. Continuo, por exemplo, sem perceber o que há de tão incompreensível em escrever-se de igual forma palavras que se pronunciam de igual forma. Se não existem dificuldades de compreensão de homofonias, por alminha de quem existirão em homografias?

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    6. (e isto sou eu a retratar-me, o que não deixa de ser irónico tendo em conta o conteúdo da conversa)

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    7. Pois é. É tudo muito interessante, mas enquanto estas (des)acordices vão germinando por aí, é o caos, como se pode ver todos os dias no Programa Bom Dia Portugal da RTP. É ver a confusão que as pessoas fazem com a cor-de-rosa e a cor(-)de(-)burro quando foge e outros FACTOS. E pior ainda nas legendas dos filmes e nas notas de rodapé das televisões e, pior ainda nos jornais. NÃO AO (DES)ACORDO ORTOGRÁFICO

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    8. Três pontos, um que me parece óbvio, o outro que o é menos e um terceiro que é demasiadas vezes ocultado. Por ordem, começando pelo óbvio.

      É evidente que num processo de transição alguma confusão é inevitável. É das tais coisas que são perfeitamente lapalissianas. Qualquer mudança gera uma certa instabilidade. Mas, e aqui passamos para a parte menos óbvia:

      SE os aldrabões tivessem estado calados, SE os aldrabões não tivessem poluido o debate com mentiras, SE os aldrabões não tivessem enchido a cabeça das pessoas com asneiras sobre escrever à brasileira ou cágados cagados, ou tantas, tantas outras, SE tivesse havido alguma honestidade do teu lado do "debate", o "caos" seria MUITO menor. Haveria a confusão natural no início mas, sem as doses maciças de desinformação que tem havido, essa confusão já estaria a reduzir-se por esta altura. Mas em todo o caso nunca desapareceria porque, e aqui passamos ao tal facto que é escamoteado com demasiada frequência e de uma forma que não é nada inocente:

      Já havia quantidades maciças de ignorância linguística antes do AO90. Já havia erros sistemáticos, quer em legendas, quer em textos e documentos oficiais, quer até na literatura, tanto em traduções como em originais. Agora há mais? Há. Mas querer fazer crer que é coisa criada pelo AO90, é mais um sinal da aldrabice sistemática utilizada por um dos lados deste debate.

      Pessoalmente, estou convicto de que dentro de uma década, quando a poeira assentar, a quantidade de erros será não só MUITO menor do que é hoje, como será mesmo menor do que era antes do AO90. E não diretamente por causa do acordo; principalmente porque o acordo força as pessoas a pensar a língua e a aprender coisas que se calhar nunca souberam. Pelo menos as que não se recusam a aprender seja o que for.

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  3. Na Caturralândia fazem muita confusão entre "óptico" e "visual". A óptica é um ramo da Física que estuda a luz, e por extensão aplica-se a instrumentos que corrijam problemas visuais. O termo correspondente relativo aos sons é "acústica" e não "ótica", e os problemas de audição são "auditivos", não "óticos". No máximo, problemas visuais são "oftalmológicos", pois problemas "ópticos" existem nas lentes dos óculos, dos binóculos, dos telescópios, etc. Se pedir na farmácia umas gotas óticas, são para os ouvidos, porque as dos olhos são oftálmicas. Mas, já se sabe...a cultura científica em Portugal é diminuta.

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  4. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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    1. Gente desprezível deve ser tratada com desprezo, mais uma vez. E, por uma questão de higiene, posta na rua.

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  5. Se é um defensor acérrimo do Acordo Ortográfico, explique-me a seguinte frase que me aparece muitas vezes na legendagem de séries que costumo ver na televisão:

    "Para o carro!"

    Citando o Bom Dia Portugal:

    "Com o novo acordo ortográfico..." o que significa "Para o carro!"? Ir para o carro ou parar efectivamente o carro?

    E não venha, s.f.f. com a desculpa do "ah, vê-se pelo contexto", pois se assim for, só mostra que a nova grafia empobreceu a capacidade de comunicação da língua, pois com o A045, eu sabia perfeitamente o significado desta frase, COM ou SEM contexto.

    E não me rotule como o Bagão Felix por ser contra o acordo ortográfico, tenho 20 anos não sou retrógrado, conservador ou qualquer nome que me já chamaram. Todos os meus contemporâneos e conhecidos são contra o acordo. Por algum motivo será...

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    1. Esse caso do pára, como eu já disse numerosas vezes, é a única alteração do AO90 que realmente cria problemas e a única que devia ser anulada já. Apesar de eu compreender perfeitamente qual o raciocínio que está subjacente à alteração. Mas não funciona.

      Mas deixe-me que lhe diga que sim, muitas vezes vê-se pelo contexto. Essa desculpa do empobrecimento da capacidade de comunicação da língua é disparatada, não só porque isso serviria para contestar qualquer tipo de homofonias ou homografias e temos a língua cheia delas sem criarem problemas a ninguém (e não há nisso nenhuma originalidade do português; todas as línguas são assim), mas principalmente porque a língua É contexto. Não existe língua sem contexto. É sempre o contexto (o cultural, para começar, mas não só) que confere significado a algo que, de outra forma, não passaria de algaraviadas ou de garatujos.

      Quanto a serem contra o acordo, não falo nem por ti nem pelos teus conhecidos, que não conheço de lado nenhum, mas a esmagadora maioria dos anti que EU conheço são contra por um dos seguintes dois motivos: ou doses maciças de ignorância, ou por não estarem para aprender um punhado de regras novas.

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  6. Adorei o texto sobre as tolices do Bagão.

    Há dias, tive este diálogo com o senhor:

    João Nogueira da Costa 20 Março, 2017 às 22:31
    Como escreveu um jornalista, “a philosophia dos que atacam o acordo ortográfico deixa-me exhausto”…
    Ora ó, dr. Agão!

    1. António Bagão Félix 26 Março, 2017 às 12:38
    Para defender o seu ponto de vista – tão legítimo como o meu – não precisava de me mudar o nome (aliás, sem lógica). Mas já agora respondo ao seu desafio: se fosse Agão, talvez o senhor fosse Osta.

    2. João Nogueira da Costa 26 Março, 2017 às 18:25
    Muito prazer.
    «E uma hora H, sem o inicial h? seria “Ora O”?»

    3. João Nogueira da Costa 26 Março, 2017 às 18:59
    Agão ou Osta, não se preocupe; como sempre, daqui a uns trinta anos, já ninguém gasta tempo a discutir isto. Foi sempre assim com os Acordos e Reformas anteriores. O tempo não volta para trás. A próxima geração rir-se-á de toda esta polémica.

    http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2017/03/16/hora-h-para-o-ao/


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  7. A profusão de facultatividades no AO é um total disparate.

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