quarta-feira, 24 de abril de 2013

Só especula quem não sabe; quem sabe informa

O David Soares, caturra ortográfico dos mais ferrenhos, publicou hoje um texto que se compõe de um excerto razoavelmente longo de um dos seus romances, "sem AO", segundo afirma, e de uns considerandos prévios à coisa. Nestes considerandos convida os leitores "à especulação de imaginarem como ficaria o texto que se segue vertido em "acordês"."

Só especula quem não sabe. Como eu sei, posso-lhe dizer precisamente como o texto que lá pôs ficaria vertido na nova ortografia. Podia colocá-lo aqui, inteirinho, com todas as 911 palavras, mas ele era capaz de se chatear. Ele é assim, chateadiço, como todos os caturras. Portanto não o vou fazer. Vou só dizer-lhe exatamente quantas e quais palavras mudariam se ele tivesse usado a nova ortografia. E o resultado é...

(rufo de tambores)

Cinco. Ou quatro, dependendo de como se conta. Ou até três. A lista completa, e sublinho completa, é:
  1. Infetada, em "como quem esvurma uma ferida infectada";
  2. Pelo, em duas frases: "e os torrões que se lhe grudaram no pêlo emprestaram-lhe um semblante pagão" e "sacudindo os grãos de terra que lhe polvilhavam o pêlo";
  3. Caráteres, em "de corpos e carácteres despidos." Mas atenção, que a supressão do c nesta palavra não é obrigatória, portanto ela podia ficar tal e qual como o David Soares a escreveu;
  4. Hemorroidas na frase "Castiguei os filisteus com ratos e hemorróidas."
Cinco, ou quatro, ou três palavras em 911. Dá, quê?, uns 0.5%? Na melhor das hipóteses?

Realmente, o "acordês" é uma catástrofe do caraças, pá! Caneco! Convenci-me!

Mas o que mais vontade de rir me dá, e confesso que soltei uma gargalhada, é o David Soares não usar a ortografia de 43. Usa uma ortografia sui generis, lá dele, mas não usa a ortografia de 1943. É que se usasse a ortografia de 1943 não teria escrito "hás de morrer e ressuscitar, numa das minhas vomições", pois a ortografia de 1943 obrigava ao uso do hífen em "hás-de", cretinice ortográfica que só foi corrigida com o AO90 que o caturra Soares diz não usar. E tampouco escreveria "mas eu não pedi para ser feito, ò Deus", pois aquele "ò" é, simplesmente, um erro ortográfico. Sim, um erro ortográfico. É que existe a interjeição "oh", que indica dor, espanto, etc., e a interjeição "ó", que invoca, e que seria o que o Soares deveria ter ali usado. "Ò" também existe, mas é uma coisinha popularucha, contração informal de "ao", como na frase "eu fui ò mercado". É usada pela mesma gente que diz "prontos, tá bem" e coisas assim. Não pela malta das "vomições."

Em suma, o trecho com quase 1000 palavras que o caturra Soares usa para mostrar às pessoas como ficaria morto como escritor se por acaso passasse a usar a abominação da nova ortografia (acha-a "inconciliável com a [sua] voz autoral, animada por um léxico muitíssimo específico, tão arcano quanto neológico", o que também me fez rir), tem 3 palavras que seriam obrigatoriamente diferentes na nova ortografia, as quais usa um total de 4 vezes, mais 1 palavra que só alteraria se quisesse, mais 1 palavra que alterou mas não devia caso quisesse recusar liminarmente a nova ortografia e ainda 1 erro ortográfico.

De facto, concordo: isto é absolutamente exemplar.

Editado: Chamaram-me a atenção para que "carácteres" também é um erro ortográfico. Toda a razão. O plural de "carácter" é "caracteres", já na ortografia pré-AO, e quem decidir suprimir o c passa a escrever "caráter" e "carateres". Pessoalmente, não gosto, mas é assim. O que torna tudo isto ainda mais exemplar. O Soares conseguiu escolher um trecho com pouco mais palavras mutáveis na nova ortografia do que erros ortográficos dele. É proeza.

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