Na quinta-feira o zague prosseguiu mais um pouco, até aos 70, e com vários títulos muito aproveitáveis, de entre os quais escolhi um "exemplar". Peguei nele e pus-me a escrever, e só reparei no tamanho do que tinha escrito quando acabei (desculpem lá). No fundo, é uma história...
Exemplar
O Campo da Ferrugem é um lugar exemplar
do quê, é a cada um que cabe decidir
Se te deixarem lá entrar
viajas por uma estrada de poeira
quilómetros e quilómetros
de arbustos e areia
onde só se mexem insectos
ratos, largartos e cascavéis
e há um abutre, de vez em quando
pairando no céu sem nuvens
servindo para colocar sentido na paisagem
como um sinal de pontuação com asas
Mas aqui ainda não é o Campo da Ferrugem
ainda tens muito que andar até lá chegar
Começas a vê-lo ao longe
se viajares de dia
Por vezes, há fragmentos de sol
que se soltam de superfícies
indecisas e te atingem os olhos
sacudindo deles a poeira
mas só te apercebes
de parte da verdade
quando ultrapassas uma colina
e vês, pela primeira vez
o Campo da Ferrugem
Pensas que te basta estender a mão para pegar
num brinquedo e brincar com ele, pô-lo a voar
Mas a estrada que te falta percorrer
é uma fita escura que desaparece
num algures sem distância
e ainda vais ter que sentir
a sede a instalar-se-te na garganta
antes de chegares, por fim
ao verdadeiro Campo da Ferrugem
Sais do carro, pões a mão em pála sobre os olhos
e o pensamento dissolve-se numa cascata de enas
O Campo da Ferrugem
ergue-se então na tua frente
como uma floresta vidro e de metal
chapa lisa, chapa esburacada
asas, carlingas, fuselagens
rodas gigantescas de borracha desgastada
umas ainda ligadas, outras espalhadas
sem ordem, por ali
spoilers, flaps, lemes e ailerons
da cor de Marte
desenrolam até ao chão cabos eléctricos
multicoloridas componentes das suas entranhas
e no chão, a areia forma pequenas dunas
esburacadas por grutas e recessos
de onde espreitam olhos assustadiços
Sobre tudo isto, o vento espalha uma sinfonia de pancadas
como que a dizer que a ferrugem também tem a sua voz
Chegaste ao lugar exemplar
sentas-te no chão como se não
pudesses mais suportar as pernas
sob o peso de toda aquela solidão
Esvaziado de substância
resta-te a esperança
de um dia, no futuro, conseguires
libertar-te da ferrugem
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