A Helena Pitta dá hoje, no Blogtailors, a sua opinião relativamente às notas de rodapé na tradução. Como é disso que vivo e já tive, naturalmente, de me confrontar com a decisão de colocar, ou não, notas de rodapé nas coisas que traduzo, o título despertou-me o interesse e fui ler.
E dificilmente conseguiria discordar mais.
Um tradutor, tal como um escritor, aliás, é, antes de mais, um leitor. E muitas das opções que toma no seu ofício são, em grande medida, determinadas por aquilo que lhe agrada ver, ou não, naquilo que vai lendo. É evidente, pelo que diz, que a Helena Pitta gosta de ler notas de rodapé, e provavelmente sempre gostou. Gosta de ser arrancada ao fluxo da narrativa e dispersar-se por linhas e mais linhas de letrinhas miudinhas, cheias de informações que considera relevantes. Já eu, detesto.
Oh, bem sei que por vezes são inevitáveis. Quando traduzi O Dilema de Shakespeare (ou Ruled Britannia, no original) vi-me obrigado a explicar trocadilhos intraduzíveis porque, sem a explicação, havia partes da tradução que deixavam de fazer sentido. Também usei as notas de rodapé para deixar ao leitor a possibilidade de ler o original de alguns poemas que surgem no texto e que, naturalmente, traduzi. E, se bem me lembro, houve um único detalhe histórico que achei conveniente explicar. Mas se tivesse usado uma nota de rodapé por cada poema, por cada trocadilho, ou por cada peculiaridade histórica de eventual interesse, provavelmente teria transformado as suas 477 páginas em 774.
De modo que vejo utilidade nas notas de rodapé, não digo que não. Mas só quando são inevitáveis. Quando o tradutor tem de reconhecer as limitações da sua arte e engenho, tem de reconhecer que não é capaz de transformar este ou aquele trecho em português inteligível. É para isso que servem as notas de rodapé, segundo o meu modo de ver as coisas. Para mais nada.
Porque quando se tenta pô-las a fazer mais coisas, cai-se geralmente em ratoeiras que estão sempre prontas a caçar os incautos. Cai-se na ratoeira de mostrar ignorância quando se usam notas de rodapé para explicar coisas que toda a gente sabe, tornando evidente que só o tradutor é que teve de ir à procura daquela informação para conseguir compreender o texto. Cai-se na ratoeira de mostrar arrogância, ao partir-se do princípio que quem vai ler é ignorante sobre o tema da nota. E cai-se na ratoeira de começar a irritar solenemente o leitor que até sabe as coisas que o tradutor acha que não sabe e não está disposto a ser arrancado ao fluxo da narrativa por causa de irrelevâncias. Anos de leitura de argonautas, em que os tradutores achavam, de vez em quando, boa ideia explicar detalhes de física, química ou biologia que aprendi no secundário, e quantas vezes com explicações cheias de erros, levaram-me a nutrir uma salutar antipatia por tais sintomas de falhanço na arte de contar histórias.
Sim, porque, excepto quando se pretende com elas gerar precisamente o tipo de texto dispersivo e fragmentário que as notas originam, o que é em si mesmo um objectivo literário inteiramente válido no qual as notas são também literatura, elas são sempre um sintoma de falhanço. Um bom contador de histórias é capaz de integrar no fluxo da narrativa, e sem perda de interesse para o leitor, todas as informações de que esse leitor necessita para apreciar e compreender aquilo que está a ler. Alguém que tem de recorrer a notas de rodapé para fornecer a informação necessária é alguém que conhece mal a arte que supostamente domina.
Isto, naturalmente, na minha modestíssima opinião.
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