O Jardim de Infância (bib.) é um ambiciosíssimo romance de ficção científica de Geoff Ryman do qual começo logo por dizer que me é bastante difícil falar. Por vários motivos. Um deles é a altura em que foi lido, que contribuiu bastante para que a leitura se arrastasse durante longos meses, tornando difícil, senão mesmo impossível, chegar à tal imersão na história que as boas leituras provocam nos leitores. Mas, por outro lado, mesmo que tivesse lido este livro (e nesta edição) no momento ideal tenho sérias dúvidas de conseguir atingir tal estado com ele.
É que esta edição portuguesa é uma catástrofe, do princípio ao fim.
Começando pela capa que estão a ver aqui ao lado, uma coisa ridícula que, embora não esteja totalmente desligada do conteúdo do livro (a rosa aparece de vez em quando, aqui e ali), faz pensar que ele é tudo menos uma obra complexa de ficção científica. Segue-se a própria encadernação. É algo complicado desfrutar por completo de um livro quando ele começa a desfazer-se-nos nas mãos a partir aí da 100ª página (são cerca de 450) e há que fazer malabarismos dignos dum artista de circo para o manter mais ou menos inteiro. E por fim, mas não por último, a tradução. É de Samuel Soares, o homem responsável pela pior tradução que li na vida (Roderick, de John Sladek, publicado na coleção Argonauta dos Livros do Brasil). E este livro, embora não esteja nem por sombras tão assassinado como o do pobre do Sladek, está, ainda assim, muito longe de bem traduzido.
O livro conta a história de Milena, uma jovem lésbica marginal numa sociedade distopicamente uniformizada e governada pelo Consenso. Este é um conjunto de milhões de padrões de personalidade que habitam um sistema informático global, e é ele que decide o que é melhor para cada um. As pessoas são "lidas" no início da adolescência, mas Milena não o foi. Ryman chama a isto socialismo, mas não passa duma caricatura deformada de tal coisa. O pano de fundo completa-se com uma esperança de vida reduzidíssima devido à disseminação de vírus que curam as doenças ao mesmo tempo que transmitem às pessoas conhecimentos instantâneos. Em Milena, contudo, os vírus não funcionam. É esse, aliás, o motivo para não ser lida: é que a leitura também é feita através de vírus.
Francamente, custou-me engolir boa parte da premissa da história. Esta baseia-se em grande medida numa gigantesca salganhada que confunde a natureza e o modo de funcionamento dos vírus informáticos e biológicos, tratando estes como se fossem simplesmente versões daqueles. E a ideia de que a vida é longa por causa das doenças que nos acometem também me pareceu extremamente estapafúrdia.
Ou seja, com tantos motivos para não gostar do livro, foi isso mesmo que aconteceu: não gostei do livro.
Mas desconfio que se o tivesse lido no original, ou pelo menos numa edição portuguesa decente, talvez tivesse gostado bastante mais. É que por trás da tradução espreita por vezes literatura a sério. É que Ryman dialoga no romance com obras tão relevantes como 1984, de Goerge Orwell, ou A Divina Comédia, de Dante. É que há aqui e ali sinais de que Milena pode ser uma personagem bastante mais interessante e bem construída do que é hábito na FC. Portanto este é dos tais livros que conto voltar a ler um dia, noutra edição. Uma edição portuguesa que o respeite. Ou uma edição em inglês. Só assim poderei avaliá-lo com justiça. Após a leitura desta edição é que só posso dizer duas coisas: que em geral não gostei do que li e que não faço a mínima ideia se o livro é bom ou não.
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