segunda-feira, 9 de maio de 2011

O que faço com as regras que decorei?

Há momentos, num comentário a uma daquelas perguntas que agora há no facebook, reparei em alguém que se interrogava, a respeito do acordo ortográfico, "o que faço com as regras que decorei?"

E esta interrogação, inteiramente legítima, diga-se de passagem, põe o dedo na grande ferida de todo este processo. Uma ferida que tem muito pouco a ver com o acordo ortográfico e tudo a ver com a educação nos países lusófonos. Uma educação arcaica e estupidificante, ultrapassada, que não prepara as pessoas para aquilo que mais fundamental é na tão propalada sociedade da informação em que já vivemos e, a menos que haja algum cataclismo, viveremos cada vez mais no futuro.

Pensar.

Pensar implica ter a capacidade de recolher informação, de a analisar e de a partir dela tirar conclusões. Melhor dizendo: ter a capacidade e as ferramentas para tal. Ora, se a capacidade é em grande medida inata e depende do grau de inteligência de cada um, as ferramentas são adquiridas. E nesse processo de aquisição a escola poderia e deveria ser fundamental.

Uma escola que de facto preparasse as pessoas para pensar nunca obrigaria os alunos a decorar regras nenhumas. Explicar-lhes-ia as regras e os porquês das regras, a filosofia que lhes está subjacente. No caso da ortografia da língua portuguesa, explicar-lhes-ia que ela é um misto de história das palavras com a pronúncia que elas tomam, explicar-lhes-ia que a ortografia não é a língua, antes uma forma de a representar (tal como um mapa não é o território mas uma representação desse território), que a língua não é uma construção definitiva, um edifício estático, mas muda e altera-se todos os dias, explicar-lhes-ia de onde ela veio, quais as influências que teve, e explicar-lhes-ia também que nela não existem determinismos, que o futuro da língua não está predeterminado à partida, antes depende da vontade coletiva dos seus milhões de falantes. Mas não. A nossa escola, a nossa educação deseducativa, faz-nos decorar regras e por aí se fica.

E é precisamente daí que vem boa parte da resistência à mudança. As pessoas encaram as regras como coisas fixas, e obviamente chateiam-se quando lhes dizem que vão ter de substituir regras cujo sentido ninguém lhes explicou por outras regras que também são poucos os que se preocupam em explicar-lhes. É em grande medida daí que vem a imensa ignorância, a monumental quantidade de disparates que se dizem e escrevem todos os dias a respeito deste tema.

Mas a importância que isto tem ultrapassa em muito o simples acordo ortográfico. Porque um povo que não é capaz de pensar, na sociedade do presente e ainda mais na sociedade do futuro, está condenado ao fracasso. Está condenado a eleger eternamente líderes sem as qualidades necessárias para os cargos. Está condenado a não compreender os problemas com que se depara nem as soluções alternativas para esses problemas. Está condenado a ser enganado por vigaristas sem escrúpulos, e a ser roubado por outros vigaristas sem escrúpulos (ou pelos mesmos). Um povo que não sabe pensar é um povo que nunca deixará de ser pobre. E essa é a grande tragédia que perguntas deste género revelam: os nossos povos lusófonos não sabem pensar. Ensinaram-lhes regras, mas não lhes ensinaram a analisar o motivo por que as regras são essas e não outras ou por que mudam quando se decide mudá-las.

Que responderia eu se me fizessem esta pergunta a mim? "O que faço com as regras que decorei?" Simples: esquece-as. Esquece as regras e entende a lógica. Porque ao entenderes a lógica entendes também as regras e, mais importante ainda, estás automaticamente preparado para te adaptares com toda a facilidade a todas as mudanças com que possas vir a deparar-te.

E no mundo do presente, e mais ainda no do futuro, só uma coisa é certa: a mudança.

5 comentários:

  1. Concordo com a ideia geral: faz-nos falta pensar. Da política à filosofia, da ciência ao quotidiano, este é um problema fatal, que nos corrói. Destaco as próprias Universidades que estão, elas próprias, longe, muito longe daquilo que lhes devia ser exigido. Mas não é, porque (quase) ninguém quer saber.
    No que toca ao acordo ortográfico, tenho de fazer uma ressalva, porque há várias mudanças que não consigo aceitar, precisamente porque não lhes encontro a lógica, o sentido ou a necessidade.
    E partilho a ideia de esquecer as regras e procurar a razão. Simplesmente acho que este acordo traz mais regras sem trazer a razão. Enfim...

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  2. Que mudanças? Talvez eu consiga explicá-las.

    De resto, eu sou favorável ao acordo não por o achar perfeito mas por pensar que é um passo na direção (geralmente) certa. Há muito caminho a percorrer ainda, a meu ver.

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  3. Eu vejo este acordo como uma desnecessidade, com excepção de aspectos como as regras de hifenização, agora melhor definidas. Mas compreendo que o acordo não tem de ser imprescindível para trazer alguns benefícios, e certamente faz sentido para muita gente.
    Ainda assim, o fim das grafias “pára” e “pêlo”, por exemplo, esta para além da minha compreensão. Não conheço a razão da mudança e parece-me que não traz vantagens, antes pelo contrário.
    Talvez o acordo seja um passo na direcção certa. Contudo, continuo a perguntar-me se cumprirá s seus propósitos e se a lusofonia fica melhor com ele.

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  4. Ah, os acentos diferenciais. Também é a alteração de que menos gosto (e cheira-me que essa irá acabar revertida, mais cedo ou mais tarde). Mas tem a sua lógica.

    Ambas essas palavras são graves. A lógica genérica da língua portuguesa não acentua as palavras graves porque estas são a vasta maioria: a nossa língua põe a tónica, em regra, na penúltima sílaba. Portanto os acentos na penúltima sílaba tendem a ser diferenciais, para separar fonéticas diferentes de palavras que sem eles se escreveriam da mesma maneira. Nem sempre isso acontece, aliás. Na frase "eu jogo um jogo" há duas palavras homógrafas que não são homófonas.

    A lógica dessa mudança parece-me ser, portanto, uma espécie de testar de águas para uniformizar a grafia nesse tipo de situações, removendo os acentos em palavras graves. Em teoria, eu até posso concordar com a ideia, embora não me agrade o facto de terem deixado o trabalho a meio; continua, mesmo na nova ortografia, a haver uma série de acentos em palavras graves. Mas na prática parece-me uma mudança duvidosa por aumentar as situações de repetição de palavras homógrafas. "Passar a mão pelo pelo", por exemplo. Ou "Para para que te possa ver." Fica um bocado cacofónico. Mas também não é novidade; antes já tínhamos coisas como "se se andasse sempre dum lado para o outro". Talvez seja só questão de hábito. Tenho algumas dúvidas, porque uso a nova ortografia há dois anos e ainda não me habituei bem a essas mudanças (especialmente a do pára), mas é possível.

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  5. Obrigado pela resposta cuidada e clara. Um verdadeiro serviço público!

    Precisamente porque os acentos se mantêm noutras palavras graves e porque esta mudança aumenta as palavras homónimas é que não conseguia decifrar a lógica. Os exemplos dados evidenciam bem aquilo que me faz torcer o nariz. É que já tenho experimentado deixar cair as consoantes e não há drama, mas estes acentos... talvez me habitue, com o passar do tempo, mas a verdade é que, por já, me incomoda bastante.

    Mais uma vez obrigado pela atenção.

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