Tinha pensado começar esta série de textos com temas sugeridos pela resposta abortada ao comentário do Henry de que falei na semana passada. Mas durante a semana li uma frase num dos livros que tenho atualmente em leitura que me fez começar por algo mais genérico. Ei-la: “A ignorância é o terreno do pensamento.”
Esta frase é uma versão de tradutor de algo escrito por Ursula K. LeGuin, muito provavelmente a melhor escritora de ficção científica de sempre e claramente membro do grupo de elite de grandes escritores que o género deu à literatura durante o século XX, mesmo quando retiramos o sexo da equação.
E o motivo que me levou a começar estes textos por aí é achá-la inteiramente certeira ao mesmo tempo que a vejo também como incompleta. E porque me sugeriu o palavrão com que intitularei genericamente estes posts. E, bem, porque me apeteceu.
Sim, a ignorância é o terreno do pensamento. É na ignorância que o pensamento se processa, só a ignorância, aliás, o permite. Um ser que de facto fosse omnisciente, um ser que realmente soubesse tudo o que há para saber, nunca pensaria, limitar-se-ia a saber. Não procuraria respostas porque já as conheceria a todas, não faria perguntas porque também estas conheceria por inteiro. Seria dotado de um acervo estático de conhecimento. Infinito, sim, mas estático. A sua atividade mental resumir-se-ia a encontrar nessa biblioteca infinita as parcelas de conhecimento que lá estariam guardadas e, como também o local de armazenamento de cada informação faz parte de toda a informação que há para conhecer, uma criatura omnisciente nem precisaria de procurar. De novo, limitar-se-ia a saber. E assim, de uma forma muito concreta, criatura que fosse omnisciente pura e simplesmente não pensaria.
Lembrem-se disto da próxima vez que vos disserem que deus é omnisciente.
A não-ignorância, portanto, sufoca o pensamento. Mas a ignorância não basta. É preciso também ter-se dela consciência. Julgar que se sabe as respostas é um inibidor quase tão eficiente de perguntas como sabê-las de facto. Ou seja, se é certo que a ignorância é o terreno do pensamento, este só se processa quando essa ignorância é consciente.
Seria bom se se soubesse sempre por onde passa a fronteira entre o que se conhece e o que não se conhece. Seria bom poder traçá-la, plantar solidamente os pés mentais do lado do conhecido e atirar o pensamento ao desconhecido, mergulhando-o naquilo que se ignora. Mas geralmente não é assim. No máximo, sabe-se que essa fronteira está algures por ali, difusa e pouco nítida. No máximo, há a consciência de que é perfeitamente possível que terreno que se julga sólido esteja minado, cheio de bichezas. De preconceitos, ideias falsas, verdades parciais ou parcelares, carunchos vários. Quando há essa consciência pode-se ir pensando de uma forma interativa, regressando atrás de vez em quando para verificar se as conclusões a que o pensamento leva confirmam ou põem em causa o que se julgava saber. É essa a única maneira de se pensar bem.
Quando essa consciência de terreno minado não existe, quando se julga saber o que na realidade não se sabe, só por grande e afortunado acaso será possível evitar pensar mal. É possível pensar, sim, pois para o fazer basta a ignorância, mas do resultado pouco ou nada se aproveitará. Com base em coisa nenhuma, pode construir-se grandes e detalhados castelos de vento, cheios de torres e muralhas, ameias e adarves, mas só por sorte haverá na sua essência algo mais que nada.
O que quero dizer com isto é que a ignorância será o terreno do pensamento, sim senhora, dona Úrsula, mas a consciência é o seu motor e o combustível que o faz funcionar. A consciência e uma espécie muito peculiar de humildade. A mesma humildade de que os homens de ciência se socorrem quando aceitam submeter as suas elaboradas teorias ao tira-teimas da experiência.
Olá Jorge. :-)
ResponderEliminarCurioso como um texto pode nos levar a fazer conexões que nada ou pouco tem em comum com a essência do mesmo. Ou como pode nos fazer pensar isso...
"Esta frase é uma versão de tradutor..."
Foi aqui que fiz a primeira "conexão" que não parece ser importante em relação ao texto.
Algum tempo atrás li um livro com quatro contos: Noite dentro, MOÇAMBIQUE. E outras narrativas, de Laurent Gaudé. Fiquei fascinado pelo mesmo.
Mas depois pus-me a pensar: Raios! Não faço a mínima ideia se o autor é um bom escritor (mentira, até faço alguma ideia, rs). Mas a verdade é que o que li, em parte, é obra da tradutora: Isabel St. Aubyn. Depois disso, comecei a olhar com outros olhos para todas as obras traduzidas que eu li...
Continuando, a segunda conexão tem mais relação com o texto, ou melhor, com a descrição de uma personagem curiosa: deus, e sua onipresença.
Isso porque ele é personagem de uma história em que tenho trabalhado. Apenas ideias, por enquanto. Aliás, pus-me imediatamente a escrever algumas que me surgiram, antes de continuar a ler o texto.
De resto, e, neste contexto, o mais importante (ou nem por isso), é o que penso do assunto. Certa vez um professor afirmou, categoricamente, que a grosso modo, as pessoas não dialogam. Elas monologam. Mesmo quando parece que estão escutando o outro, na realidade estão apenas procurando informações passíveis de serem utilizadas no contra-ataque iminente: a réplica.
Talvez venha daí a falta de consciência que mostramos, diariamente, de que realidade escura e fria de que nossas certezas, se calhar, não deveriam tem razão de ser...
Ou pelo menos que, olha lá, se calhar, a coisa não é bem assim...
Falei demais.
A propósito, já li Sally e confesso que nem me passou pela cabeça, esta mesma que se vangloria de normalmente conseguir prever com bastante antecedência como as coisas vão acabar, que a personagem,a tal, afinal de contas... Aliás, tão pouco percebi logo o que é que se passava... O que manteve, muito, o meu interesse no texto.
Enfim...
Abraços!!!