domingo, 22 de abril de 2012

Transignorâncias 5: Mutantis mutandis

O Universo em que vivemos, diz-nos a física, é composto por duas coisas: energia, nas suas várias formas (incluindo a matéria), e tempo. Diz-nos também a física que quando se junta energia ao tempo obtém-se movimento. E movimento é igual a mudança.

Tudo no universo muda. Umas coisas mais depressa, outras tão lentamente que para as que mudam depressa parecem imutáveis. A velocidade da mudança depende diretamente da energia nela envolvida. Fenómenos de alto gasto energético, como a vida, mudam depressa; fenómenos onde os fluxos energéticos são baixos, como as reações químicas não vulcânicas na litosfera, mudam devagar. É por isso que a vida dos organismos passa num piscar de olhos, e os fósseis que eles geram perduram por aquilo que nos parece ser eternidades. É por isso que a vida é mudança e o fóssil, o esqueleto, a morte, são permanência.

É também por isso que as únicas línguas que não mudam são as mortas. As línguas vivas mudam, e quanto mais vivas são mais depressa mudam. Essa mudança é uma força constante, irresistível como um tsunami. É fútil tentar impedi-la. Na verdade, é pior que fútil: é estúpido.

Perante a mudança linguística há duas atitudes possíveis, as mesmas que existem na relação que vamos tendo com as inundações. Há quem tente erigir muros contra a mudança, construir diques, blindá-los, criar ilhas de imutabilidade, isolar-se das águas que as assolam. E têm sucesso enquanto a cheia é pequena. Mas quando ela é grande, e mais tarde ou mais cedo ela acaba mesmo por ser grande, a falha dos diques, inevitável, torna a catástrofe muitíssimo mais devastadora. Entre outras coisas, foi isso que nos ensinou o Katrina. De modo que a engenharia moderna procura outro caminho. Em vez de erguer barreiras contra as cheias, prefere construir pontos de fuga e escape, por onde a cheia possa seguir sem causar danos de maior às infrastruturas que temos como mais importantes. Em lugar de tentarmos reter as águas da mudança, tentamos dirigi-las, conduzi-las para locais seguros.

São também essas as duas atitudes que podemos ter perante a mudança linguística. Há quem resista a todas as mudanças, procurando criar diques cada vez mais altos, isolando-se em ilhazinhas cada vez mais pequenas de irredutível "pureza" (que nada tem de puro, visto ser fruto de milénios da mesmíssima mudança que eles procuram agora interromper... mas eles julgam que tem). Com isso só conseguirão adiar o inevitável, e ser depois completamente varridos do mapa quando o inevitável finalmente acontecer.

Outros, preferem acompanhar a mudança, tentando dirigi-la, incentivando as partes dela que consideram seguras ou benignas, e erguendo pequenas barreiras contra aquela que julgam poder causar maiores estragos. É o que fazemos nós, os que apoiamos a reforma ortográfica. Apoiamo-la por ser uma daquelas mudanças que, globalmente, dirige a vertente escrita da língua por caminhos que pouco ou nenhum estrago poderão causar no futuro. Porque sem termos de perder tempo a ensinar às criancinhas regras incongruentes e cheias de exceções sobre escrever-se, ou não, certas letras em certas palavras, talvez consigamos usar esse tempo a explicar-lhes que escreverem coisas como "nós faze-mos" é muito, muito mau. Porque se tivermos uma ortografia com alguma coerência, uma ortografia que se ensine depressa e bem, talvez consigamos arranjar espaço nos currículos e nas salas de aula para explicar aos pivôs dos telejornais, anos antes de eles se tornarem pivôs dos telejornais, enquanto ainda estão sentados nos bancos da escola, que dizer coisas como "há vinte anos atrás" é um disparate, pois o "há" já indica, por si só, que estamos a falar do passado. Em suma, porque incentivando a mudança que não estraga poderemos dedicar-nos a combater a mudança que estraga.

Há cem anos (sem "atrás" nenhum, se me fizerem esse grande favor), fez-se uma grande reforma ortográfica na língua portuguesa, tão grande que mete a atual num chinelo de insignificância. Nessa época não faltaram profetas da desgraça a antever o fim do mundo. Pois bem: o mundo ainda cá está, a língua também, houve durante estes cem anos quem a usasse com uma qualidade superlativa, quem nela inovasse sabendo muito bem o que estava a fazer e porquê, quem aproveitasse e adaptasse as melhores das mudanças para com elas fazer arte, ao mesmo tempo que, com essa seleção, combatia as piores. Houve e há grandes poetas e escritores a usar a língua com enorme qualidade, em todos os pontos do mundo em que ela vive, e o número de pessoas que dela se servem quotidianamente multiplicou-se muitas vezes. Há cem anos, não passávamos de alguns milhões os que estávamos expostos a ela todos os dias; hoje, é toda a população do planeta com uma ligação à internet, porque esta nossa língua em eterna mudança é, entre as milhares de línguas da Terra, a quinta mais usada online.

Foi este o "fim do mundo" que aconteceu após 1911. E é parecido com este o "fim do mundo" que podemos esperar desta reforma ortográfica. Um "fim do mundo" feito de crescimento e desenvolvimento, que devíamos todos acolher de braços abertos. Mas há quem não consiga perceber estas coisas. Nada a fazer.

Outros, contudo, percebem. E é com eles, e só com eles, que o futuro conta.

Transignorâncias anteriores:

8 comentários:

  1. Olá. Boa Noite. Meu nome é Ulisses e entrei em seu blog e gostei. Agora estou seguindo. Também tenho um blog e gostaria que o visitasse e também se possível o seguisse.Obrigado.
    http://olhosdnoite.blogspot.com.br/

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  2. Um magnifico texto que expressa bem o que irá acontecer. Gostei das metáforas utilizadas e dos facto nus e crus da realidade que muitos defensores do "antigo" acordo ortográfico parecem ignorar. Pessoas como o senhor Octavio Santos que obrigam a filha a escrever e a "dizer" mal do novo acordo, possivelmente tornando-a numa futura proscrita do ensino.
    Claro que chegar a uma acordo sobre uma matéria tão sensível é algo de complicado (no mínimo) e por maior que seja o consenso alcançado existiram sempre pontos de discórdia, mas tal não deve ser impeditivo de, pelo menos, se tentar. Como tantos outros nem tudo o que o novo acordo definiu me parece bem, em alguns aspectos penso que forma longe de mais noutro ficaram a aquém do esperado, mas lá está mais uma vez não se pode agrada a Gregos e a Troianos.

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  3. É isso é.

    Entretanto, posso dar-te um conselho? Don't feed the trolls.

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  4. Porque será que o Sr. Marco Lopes optou por vir aqui «denunciar» o que eu «obrigo» a minha filha a fazer, e não ao meu blog Octanas? Medo de eu não publicar o seu comentário, ou apagá-lo depois? Ao contrário de outros, não costumo fazer isso. Medo da minha resposta? Provavelmente. Ou então medo de ter de ler todos aqueles meus textos, e as dezenas de outros autores que já divulguei, que demonstram incontestavelmente, inequivocamente, que o «aborto ortográfico» é uma aberração ilegítima, ilegal e inútil, sem qualquer consistência e validade política, jurídica, cultural e social.

    E como é irónico que o Sr. Marco Lopes tenha expressado a sua «preocupação» por a minha filha se poder tornar numa «futura proscrita do ensino»… no dia 25 de Abril! Quase 40 anos depois da revolução que nos devolveu a «liberdade», é a isto que estamos reduzidos? A ter de ficar quietos e calados, a não contestar aquilo que acreditamos – e que sabemos – estar errado? A que as famílias, os pais, prescindam dos seus direitos – e deveres – de educar as suas crianças e de para elas estabelecer prioridades, deixando essas funções exclusivamente para o Estado? Isso é totalitarismo, e eu não aceito, não cedo, não me conformo, tal como muitos outros.

    As anteriores grandes «reformas» e «acordos» na ortografia, em 1911 e em 1945, aconteceram sob ditaduras. Os «caudilhos» da língua, mal habituados, pensam que o tempo parou, que nada mudou, e que podem continuar a ditar e a fazer o que muito bem entendem, sem contestação e sem resistência. Como estão enganados! Nisto como em outras coisas, é (a maioria d)o povo quem mais ordena.

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  5. E não se deve conformar, meu amigo.

    O problema dos acordistas é fazerem olho cego ao verdadeiro problema do Acordo: É uma imposição de traços ditatoriais.

    Nenhum deles tem testículos para discutir esse ponto. A língua evolui, indiscutivelmente, com o povo, e em Portugal, e quase só exclusivamente em Portugal, costumam ser os governos.

    Franceses e Ingleses podem não ir muito com a cara uns dos outros, mas têm algo em comum: Tratam muito bem a língua deles.

    Já nós temos gente neste país que à primeira oportunidade tenta agradar aos "grandes", e enche-se de razão e finge-se saber mais do que sabe.

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  6. Caro Octávio

    Não foi uma denuncia visto que já o tinha dito numa entrevista, foi apenas uma constatação de um facto. E se o falei foi porque quando li as suas palavras fiquei algo chocado. Compreendo que não seja a favor do Acordo, mas acho que deve dar à sua filha a possibilidade de escolha, ou pelo menos deixar que ela aprenda também na escola. Digo isto porque imagine que a sua luta (e de outros) contra o acordo não surte os efeitos que desejam e ele acaba por ser adoptado por todos? Imagine os constantes “erros ortograficos” que ela dará, porque um dia o senhor decidiu que ela não iria aprender a nova ortografia. O senhor pode ser contra o acordo, mas é ela que terá um dia de viver com as consequencias das suas convicções. Com isto não estou a dizer que deve ignorar os seus principos, mas apenas que lhe deve explicar ambos os lados. Claro que ambos sabemos que ela irá escolher o seu, mas assim o senhor deu-lhe a liberdade de escolha.

    Acho que o senho está no seu direito de não acolher o acordo e de lutar contra ele, e digo-lhe desde já que até acho essa atitude de salutar, mas temos de saber traçar os limites, e na minha opinião envolver a sua filha, ou outras crianças que sejam é para mim o limite. Esse é o meu direito. Não fique calado, conteste, lute, mas respeite os limites de envolver as crianças em assuntos sobre os quais ainda não tem a compreenção necessaria para decidir por si. O senhor como pai não pode, nem conseguirá transformar a sua filha num clone das suas convicções.

    O texto do Jorge Candeias agradou-me porque consegue captar uma ideia que transcende o mero “sou contra ou sou a favor do acordo”. É um texto que (com ou outro ajuste minimo) poderia referir-se a outros assuntos. Claro que ambos sabemos que o Candeias é a favor do acordo, mas isso não tira a razão ao texto que escreveu, que como pode ler nem faz a apologia do novo acordo (tiram possivelmente a parte “dos braços abertos”), apenas constata que a evolução é algo inevitavel. Quando muito poderá ler-se que temos de chegar a um ponto de entendimento. E é aqui que eu acho que a parte mais importante da luta se deveria fazer: tentar chegar a um entendimento com todas as partes envolvidas, mais do que simplesmente “ser do contra”. Ir ter com todos os envolvidos, falar, propor, discutir, chegar a uma base de entendimento o mais alargada possivel, embora sempre conscientes que nunca se irá agradar a “Gregos e a Troianos”. Este é o meu desafio a si e a todos, seja a favor ou contra. Espero que o leve a serio e quem sabe se não será assim que chegaremos a bom porto.

    Costumo ir ao seu blog, tal como vou a outros blog's, mas é muito raro colocar comentarios, portanto não foi por fobia de qualquer tipo de “represalia” que não o fiz no seu. Para já ainda não o tenho como alguem que faz censura, e espero que nunca chegue a tornar-se nesse tipo de pessoa.

    Meu caro Octávio apesar de termos certamente muito que nos separe, tal como tenho a certeza o mesmo acontece comigo e com o Candeias, e outras pessoas, gosto de pensar que é mais aquilo que nos une, e espero um dia poder falar consigo pessoalmente, para que possamos debater as nossas ideias, e mesmo que no fim não tenhamos mudado de opinião tenho a certeza que sairemos mais ricos do que antes.

    Deixo este comentario quer no blog Octanas, quer n'A Lâmpada Mágica.

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  7. Claramente, o Sr. Marco Lopes não tem filhos… por isso é que escreve o que escreve. Mas não é só por isso que mostra ter uma grande ingenuidade, para não lhe chamar outra coisa.

    Você parte do princípio, da certeza, de que o «aborto ortográfico» vai prevalecer, vai vingar, e que, por isso, a minha filha se arrisca a ficar como que «desajustada». Não se preocupe com isso: mesmo nesse cenário (de pesadelo) ela ficará muito melhor do que os colegas e do que todas as outras crianças cujos pais desistiram ou que, usando as suas palavras, lhes deram «liberdade de escolha». Que lirismo: neste caso, essa «liberdade de escolha» significa, inevitavelmente, capitulação. As minhas filhas – não é só a mais nova – est(ar)ão muito melhor porque escrevem com mais letras. E não se sentirão confusas quando lerem e escreverem inglês – língua estrangeira sempre cada vez mais omnipresente – onde abundam palavras correspondentes a portuguesas onde não faltam «c’s» e «p’s», consoantes repetidas e até «ph’s». Acredite, a compreenSão delas, mesmo da mais nova, já é considerável.

    Veja se percebe: escrever correctamente, com todas as consoantes «mudas», acentos, hífens, e maiúsculas nos meses, não é, nem nunca será, para mim e para muitos outros (a maioria), escrever com «erros ortográficos». Os que em Portugal prescindiram da coluna vertebral, da dignidade e do sentido do ridículo é que escrevem com erros ortográficos; que, por exemplo, se obrigam a escrever «perspetiva» e «receção» enquanto no Brasil se continua a escrever «perspectiva» e «recepção». Volto a dizê-lo: juridicamente o AO90 não tem qualquer validade, tanto ao nível interno como ao nível externo, e isto é um FACTO, não está sujeito a argumentos. E mesmo que tudo estivesse «nos conformes», mesmo que tudo tivesse sido feito como deveria ser (pouco provável, mas coloquemos a hipótese…), nem assim ele teria justificação. Porquê? Porque ele não é necessário, é inútil, faz mais mal do que bem. Porque é o produto de meia dúzia de pervertidos, autêntica causa desviante e «fracturante» que, claro, encontrou em José Sócrates o «paladino» que não tivera nos 20 anos anteriores. Porque não o queremos. E ponto final.

    Quem decidiu «envolver as crianças»… foram os «acordistas», não fui eu. E com eles não é possível, nem desejável, chegar a qualquer «ponto de entendimento» porque eles querem, simplesmente, a submissão. Já se debateu, discutiu, explicou, tudo o que era preciso, e somos nós que temos razão, não eles. E como qualquer biólogo lhe poderá explicar melhor do que eu, «evolução» é um processo de mudanças que decorre durante muito, muito, muito tempo, de uma forma quase imperceptível e alargada, e precisamente, natural… e não uma alteração radical que se tenta impor quase de um dia para o outro.

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  8. Basta.

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