quarta-feira, 6 de junho de 2018

Lido: O Outro

Já se sabe que Jorge Luis Borges, embora nunca tenha sido um escritor de ficção científica, namorou o género (deliberadamente ou não, pouco interessa) em vários dos seus contos, ao ponto de os ver incluídos em algumas antologias de histórias de FC. E este O Outro é precisamente um desses contos.

Apesar de ter um fundo aparentemente onírico, ou pelo menos fantástico no sentido todoroviano do termo, no sentido de o inexplicável irromper na normalidade do mundo, este é no fundo um conto bastante clássico de viagem no tempo, relacionado com o paradoxo gerado por um encontro de alguém consigo próprio noutra fase da vida. A ligação com a ficção científica é evidente, mesmo não sendo este conto FC no sentido estrito.

Borges usa este artifício para refletir sobre si próprio, para o que se usa como protagonista da história. Escrito já numa fase avançada da vida do Borges que escreve, mais ou menos a mesma em que se encontra o Borges-personagem mais velho, o conto faz o contraponto de quem o personagem (e o autor?) foi e quem é, analisando nas entrelinhas o que se manteve constante e o que mudou. Só nas entrelinhas, pois à superfície a história é quase toda ocupada pela tentativa do velho provar ao novo que é ele mesmo décadas mais tarde. Essa camada superficial contribui para que o conto esteja longe de ser tão umbiguista como poderia ter sido, e o caráter universal das mudanças que o envelhecimento causa na personalidade faz o resto. Este não será um dos grandes contos de Borges, pois falta-lhe uma certa frescura e o transbordante prazer no exercício intelectual que essas histórias costumam conter, mas não deixa de ser um conto bastante bom.

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