E se de repente toda a gente desaparecesse e te visses sozinho num planeta inteiro? É uma ideia que pouco tem de novo, tendo já sido desenvolvida variadíssimas vezes em ficção e provavelmente muito mais vezes na especulação indolente de miúdos sem muito que fazer, sozinhos na cama à espera de adormecer. Sim, estou a falar de mim e a supor que não sou caso único: na já distante época em que fui pré-adolescente foram várias as vezes em que passei horas insones a especular sobre como reagiria num cenário destes. Antes ainda de sequer saber que havia uma coisa chamada "ficção científica", apesar de já ter lido quase todo o Júlio Verne publicado na coleção da Bertrand.
Luiz Bras não se limitou a especular: escreveu. E não se limitou a escrever uma vez, pois ainda há uns meses publiquei aqui na Lâmpada uma outra opinião a outra obra com o mesmo título e mais ou menos o mesmo tema. Mas só mais ou menos. Sim, a base do indivíduo que se vê subitamente sozinho é igual, mas ao passo que a Sozinho no Deserto Extremo original se ambientava na biblioteca infinita de Borges, esta versão ambienta-se numa grande cidade brasileira, pelo menos de início. Tem portanto um fundo mais realista, o que a aproxima mais da ficção científica. E há outras diferenças, a começar pela óbvia: a primeira obra é uma vinheta, esta é um romance.
A estrutura narrativa também é bastante diferente. A vinheta é sequencial. No romance, porém, Bras vai repescar a mesma estrutura narrativa que utilizou noutra vinheta de que também aqui falei há pouco tempo, Olho por Olho, Dente por Dente: uma estrutura não linear, em que os episódios se misturam no fluir da narrativa e é necessário estar particularmente atento às datas que os identificam para se perceber o que antecede o quê ou o que tem o quê como consequência.
De resto, trata-se de uma história obviamente distópica, com uma certa atmosfera em comum com o Ensaio Sobre a Cegueira do Saramago. Numa grande cidade brasileira (São Paulo?), um publicitário acorda para um novo dia e descobre a família misteriosamente desaparecida. Desesperado, tenta procurá-la, mas depressa se apercebe de que não é só a sua família que desapareceu, a mulher, os filhos, mas também todas as outras pessoas, substituídas por pilhazinhas de roupa espalhadas por toda a parte. Há nisto fortes ecos do arrebatamento milenarista cristão, mas o desenvolvimento da história é, tal como acontece com a obra de Saramago mencionada acima, fundamentalmente de ficção científica, seguindo o leitor o que o protagonista faz e pensa à medida que vai tomando consciência da situação em que se encontra, vai fazendo o luto pelos seus entes queridos, e vai tentando perceber o que pode fazer com o resto da vida.
Um detalhe, porém, é pouco rigoroso em termos de FC, pressupondo que esta história se ambienta mais ou menos no nosso presente (e dá todos os sinais disso): a resistência das comodidades da civilização à ausência de atenção e manutenção. A luz, a internet, canais de televisão, a água canalizada, por aí fora, tudo vai deixando de funcionar aos poucos, é certo, mas perdura durante bastante mais tempo do que perduraria na realidade.
Mas isto é só um detalhe, relativamente pouco importante.
A primeira parte do romance é apenas o que ficou sugerido acima: a confrontação de um homem com a sua solidão e o desespero que daí advém. Mas um toque de telefone muda tudo. Um toque de telefone que lhe mostra que afinal não está inteiramente sozinho no mundo, um toque de telefone que ao mesmo tempo que lhe devolve alguma esperança de, pelo menos, poder existir alguma espécie de futuro, lhe traz também uma sombra de perigo à existência, pois onde há uma pessoa pode haver mais, e quem sabe que tipo de pessoas serão? E o que poderão fazer e sobretudo fazer-lhe, desaparecida como está toda a rede social de segurança e justiça?
E nesse momento, o romance transforma-se numa história de estrada e sobrevivência, com cada indivíduo por si, uma espécie de Mad Max tropical, no qual o protagonista vai entrar num confronto mais profundo com a loucura e um punhado de outras personagens (e por falar em loucura, será que essas personagens são mesmo reais? Ou frutos da sua imaginação endoidada?) enquanto serpenteia de lambreta por uma selva de veículos acidentados até sair da cidade e fugir a um homem que aparentemente o quer matar, por nenhum motivo que consiga compreender. Uma fuga acompanhada por uma boneca insuflável (que ele insufla de personalidade, o que provavelmente é uma pista relevante) e por muito pouco mais.
No fim, ele acaba como começa, sozinho no deserto extremo, como provavelmente seria inevitável desde o início.
Este é um romance sobre a solidão, claro, mas também sobre a condição humana de animal social, e ainda sobre a absoluta falta de sentido de todas as realizações humanas a partir do momento em que deixa de haver seres humanos para lhes conferirem esse sentido, desde as de grande escala, como uma metrópole, até às mais impalpáveis, como um livro ou um filme. Tudo contado de uma forma cronologicamente sinuosa que contribui para acentuar a sensação de estilhaçamento da realidade que está na base da história. Um romance que, tal como o Ensaio Sobre a Cegueira, é de uma espécie de ficção científica cheia de impurezas. E bom.
Este livro foi-me oferecido pelo autor.
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