sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Conto: Escultura-Homenagem

Haverá melhor maneira para começar um ano do que escrevendo um conto? Provavelmente há. Mas, convenhamos, há-as bem piores. Ir ouvir o Emanuel debaixo de chuva, por exemplo.

Este conto foi escrito ontem de madrugada. Pouco mais de uma hora de trabalho, e estava pronto, três páginas de texto, pouco mais de mil palavras. Hoje, meia hora de revisão e ficou melhor. Publicável. Pronto para vos ser oferecido neste primeiro dia de 2010. De modo que aqui o têm.


Escultura-Homenagem

A abertura nada tem de impressionante. Apenas um buraco redondo numa parede branca, pequeno demais para que Henrique não seja obrigado a dobrar-se, com cuidado para não tropeçar. É o que faz, apertando ao peito o pictogramógrafo. Da entrada parte um túnel, cujo diâmetro se vai alargando progressivamente até desembocar numa espécie de gruta, iluminada por uma luz difusa que parece vir das paredes, e obstruída por uma floresta de estalactites nitidamente artificiais, cones perfeitos que terminam em pontas agudas a centímetros do chão. Mas é claro não se tratar de nada de sólido ou pesado, pois basta a leve aragem criada pelos movimentos de Henrique para as fazer oscilar lentamente. Pêndulos solenes.
Olha em volta, olha para cima. Dá dois passos para um lado, outros quatro para outro, examinando a disposição das estalactites, tentando encontrar nelas algum motivo escondido. Nada encontra. Outra abertura escancara-se, negra, ao seu lado direito e é para lá que se dirige. Esta está concebida de modo a que possa ser percorrida confortavelmente, mas Henrique precisa de parar alguns momentos para conseguir adaptar-se à escuridão e ver um muito ténue veio de luz a sobressair no negrume e a indicar-lhe o caminho. Segue-o. Um pouco mais adiante, o corredor vira à esquerda, e vai desembocar numa segunda sala, esta brilhantemente iluminada com pequenos projetores multicoloridos que derramam todas as cores do arco-íris através duma miríade de estruturas que se assemelham a uma espécie de biombos translúcidos que lhe chegam aos ombros. Alguns fios de seda prendem-nos ao teto, e outros, mais grossos, geram padrões abstratos e variados nos próprios biombos. O caminho aberto entre eles leva Henrique a atravessar o centro da sala, onde todas as cores se fundem em brancura e os padrões formam um desenho em mutação constante, de novo causada pela levíssima aragem dos seus movimentos.
Henrique para um momento, maravilhado. Aquilo é, lembra a si próprio, o resultado de pouco mais de vinte e quatro horas de trabalho ininterrupto.
Continua a avançar. A saída da sala é, desta vez, uma larga arcada tapada por uma cascata de fios de seda aos quais estão presas a intervalos regulares minúsculas gotas iridescentes de algo que parece um líquido. Hesita antes de lhes tocar, instintivamente convencido de que aqueles filamentos são pegajosos e se lhe irão prender nas mãos ou no corpo. Mas ao vê-los ondular com a aragem da sua respiração, apercebe-se de que não se prendem uns aos outros, não se entrelaçam, não se emaranham, antes deslizam como se estivessem imunes a qualquer tipo de atrito. Por isso avança uma mão, tateia os filamentos com dedos cautelosos, sentindo-os fluir e fazer cócegas como longos cabelos secos. Segue a mão e penetra noutro corredor. Este é curvo desde o início, uma curva larga e suave para a direita, iluminada com uma luz muito forte cuja origem Henrique não consegue ver dali.
Percorre lentamente o corredor, cada vez mais ofuscado. Para por um instante. Procura nos bolsos os óculos de ajustamento de frequência, amaldiçoando-se por só agora se ter lembrado deles, e leva-os à cara. Assim que os põe, o corredor como que ganha vida. A luz, que parecia tão simples e potente como a dum projetor, dissolve-se em subtileza, e as paredes cobrem-se de desenhos realistas de animais e plantas, cenas de um mundo natural que lhe é estranho. Grandes animais voadores com quatro asas, minúsculos seres carnudos que parecem ser propulsionados a jato, milípedes gigantescos de corpo achatado, saltitões assentes num único pedúnculo semelhante a um caule e com uma coroa de apêndices a rodear aquilo que provavelmente será uma cabeça, plantas de folhas gigantescas e esburacadas, inflorescências de formas bizarras. Uma janela aberta para um mundo alienígena que Henrique só conhece muito vagamente. Demora-se, maravilhado, mas por fim arranca-se àquela contemplação e continua a avançar. À frente, ouvem-se ruídos, uma espécie de frufru, estalidos musicais. No fim do corredor, uma nova cortina de filamentos de seda define o início duma nova sala. Henrique atravessa-a e estaca.
O tórax do alienígena roda sobre si próprio, perfazendo cento e oitenta graus com uma velocidade excessiva, brandindo dois braços numa grande agitação. O abdómen em forma de pêra, de onde saem quatro patas carnudas com três articulações cada termina em mais dois apêndices, muito mais curtos do que os restantes, que trabalham num frenesi a seda que sai duma glândula bolbosa situada entre eles, um pouco mais abaixo. Trabalham-na dando-lhe a forma de cordões ou fitas, e vão adicioná-la a um objeto qualquer que Henrique não consegue ver dali por estar escondido pela parte mais larga da pêra. Através dos óculos de ajustamento de frequência, o alienígena parece tão colorido como uma arara ou um peixe-dragão. Henrique pega no pictogramógrafo, carrega na combinação de teclas que faz apresentar o pictograma de saudação interespecífica e apresenta-o ao alienígena. Este, sem nunca deixar de trabalhar a seda com todo o afã, dispara um braço articulado em quatro pontos e em menos de um segundo faz suceder no pictogramógrafo um conjunto de imagens que se atropelam com demasiada rapidez para que Henrique as consiga captar. O auricular ligado ao aparelho vem em seu socorro, traduzindo-as para áudio, a uma velocidade mais adequada.
— Saudação-interespecífica / resposta-enfática.
— Aguardar / caro-amigo / quase-feito / escultura-homenagem.
— Pronto-pronto.
E de novo o rodopio de tórax. Henrique espera, sentindo curiosidade de saber o que faltará para concluir aquela obra de arte, mas sem que essa curiosidade seja suficiente para o levar a cometer a provável indiscrição de se aproximar ou de espreitar. Mas não tem de esperar muito. Minutos mais tarde, o tórax do alienígena volta a rodopiar com grande rapidez e sem aviso prévio, e o seu abdómen desvia-se para o lado, com tanta velocidade que é como se num momento estivesse parado num sítio e no instante seguinte se encontrasse noutro, igualmente parado. Os braços teclam no pictogramógrafo uma breve sucessão de pictogramas, e o auricular traduz:
— Feito-feito / escultura-homenagem.
Henrique aproxima-se, já a introduzir no pictogramógrafo os pictogramas de admiração e elogio que sabe serem adequados. Mas é com dificuldade que os conclui, com mãos que começaram a tremer e braços cuja pele se enruga num arrepio. De repente, toda aquela sucessão fantasticamente bela de grutas de seda como que se transforma num túmulo. Pois na sua frente está uma representação humana em tamanho natural, uma representação humana com feições que não tem qualquer dificuldade em reconhecer como suas, e Henrique sente o coração na garganta porque essa representação humana tem os olhos fechados e a coloração uniformemente branca duma mortalha.

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