Crónicas Marcianas (bib.) é um dos livros clássicos de Ray Bradbury. Conta a história fragmentária da exploração inicial de Marte, sua posterior colonização e seu abandono porque na Terra rebenta a guerra, e conta-a conto a conto, nem sempre de um modo inteiramente coerente, mas sempre com o estilo poético caracteristicamente bradburiano. Os contos maiores fornecem a espinha dorsal do livro e da história que ele conta, e são intercalados por contos mais pequenos, alguns tão pequenos e interligados com o resto da estrutura do livro que funcionam mal enquanto contos independentes. Uma das consequências deste tipo de estrutura é permitir que este livro tenha conhecido várias versões, que diferem em alguns dos contos que delas constam, o que cria subtis diferenças no ambiente e na própria história global do livro. Mas seja qual for a versão, o livro é muito mais do que uma soma dos contos que o constituem, mesmo tendo em conta que alguns deles são obras-primas da ficção científica do século XX.
A história é profundamente americana como, aliás, é bastante típico do autor. Em Marte só põem pé americanos, e toda a história da exploração e colonização do planeta desértico, expulsando e acabando por aniquilar os últimos e moribundos marcianos, espelha com bastante fidelidade a história da expansão dos EUA para os seus territórios do Oeste. Mas vai além disso. No fundo, é um livro sobre o impulso destrutivo do homem, sobre o modo como, mesmo quando julgamos estar a construir alguma coisa, estamos na verdade a destruir outras coisas, quiçá bem mais valiosas do que as que construímos. A guerra que cai no fim sobre a Humanidade é disso espelho fiel, e o livro também é sobre isso, sobre a guerra, apesar de esta estar quase sempre ausente ou longínqua. Não surpreende, se tivermos em conta que o primeiro dos contos foi escrito em 1945 e os últimos em 1950, ano em que a primeira versão do livro viu a luz do dia.
Essas datas também explicam o Marte bradburiano. Não tem quase nada a ver com o Marte real, que tal como eu já disse noutros sítios é ao mesmo tempo mais alienígena e bastante mais interessante do que o mundo que Bradbury imaginou. Mas na época em que os contos foram escritos, os conhecimentos sobre o planeta era muitíssimo limitados, e a visão bradburiana de uma civilização moribunda à míngua de água, fortemente influenciada por obras anteriores de ficção científica e pela célebre tradução errada dos canalli de Schiaparelli, era inteiramente plausível. A realidade só colidiu com as visões da ficção científica quando as primeiras naves espaciais foram enviadas ao planeta, nos anos 60.
É esse o drama da ficção científica. Com as ideias que a inspiram a ser continuamente ultrapassadas pelos factos, a ficção só resiste se for mais do que ideia. Se, como neste caso, incluir também literatura. Se, como neste caso, for também sobre coisas que transcendem em muito a mera ideia futurista. Se este livro tivesse sido apenas sobre a exploração e colonização de um Marte vivo, estaria hoje morto e enterrado. Sendo como é sobre o impulso humano para a destruição, no momento em que a ideia científica morre, tem a metáfora a servir-lhe de sistema de suporte de vida. E assim sobrevive, mantendo a qualidade original praticamente intacta. E assim sobrevive como um clássico da FC.
Livros como este estão sempre ansiosos por ensinar-nos algumas coisas de grande relevo. A nós cabe aprender, se tivermos capacidade para isso.
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