sexta-feira, 7 de maio de 2010

Lido: O Menino de Cabul

O Menino de Cabul é um romance de Khaled Hosseini que tem todo o aspeto de ser parcialmente autobiográfico. O protagonista (o menino de Cabul do título) é um rapaz, filho duma personalidade de etnia pashtun, influente e bem instalada na vida durante o período monárquico, que foge com o pai para o estrangeiro quando rebenta a guerra civil e o país se torna palco de um dos períodos menos "frios" da guerra entre os blocos liderados pelos EUA e a URSS, acabando por fixar-se nos Estados Unidos. É esse percurso que o romance segue, acompanhando primeiro uma infância dominada pela amizade com o amigo Hassan, filho de um criado pertencente a uma minoria étnica e religiosa, os hazara, e pela constante desaprovação do pai, depois a vida do agora jovem e de seu pai enquanto imigrantes pouco abonados na costa ocidental dos EUA, e por fim o regresso ao Paquistão e ao Afeganistão dominado pelos talibãs, para tentar resgatar o que resta do seu passado.

O tema principal do livro é a culpa e a expiação. O protagonista, o seu pai, um amigo da família que incentiva o protagonista a pôr em prática e desenvolver o seu talento para a escrita, um jovem rufia, meio alemão, que começa por ser nazi e acaba em talibã, até mesmo o filho do amigo Hassan, todos são consumidos e atormentados pela culpa, todos têm no passado sombras que os perseguem, algumas justificadas, outras nem tanto, e que determinam o modo como vivem a vida e interagem com os outros. Sob esse ponto de vista, no que toca à exploração íntima dos dilemas pessoais das personagens, a história pareceu-me bem sucedida. Isso, o livro faz bem, e quem procure fundamentalmente esse tipo de coisa nos livros que lê tem aqui um belo acepipe.

Mas a mim interessam sobretudo outras coisas.

Ter-me-ia interessado mais a sociedade afegã do que aquele microcosmo familiar, por exemplo. E se é certo que as tensões étnicas estão retratadas no romance com algum detalhe, através da relação entre o protagonista e o seu amigo/criado, e da discriminação e humilhações que este sofre às mãos dos rufias e do próprio protagonista, não há, só para falar de um detalhe que teria sido igualmente interessante ver retratado, quase sinal de mulheres durante os períodos afegãos do romance, nem no primeiro, nem no segundo. Terá sido propositado? Destinado a retratar a mulher como elemento ausente da sociedade afegã? E no entanto, elas sempre lá estiveram, algures.

A parte política também me pareceu deixar muito a desejar. O tempo da monarquia é retratado como um tempo idílico, quando a realidade era que se tratava duma monarquia absolutista, que mantinha a paz social com o recurso à repressão como em qualquer ditadura. A verdade é que o Afeganistão é há muito palco de violentas tensões politico-religiosas, entre uma versão do Islão particularmente conservadora e fundamentalista e forças que pretendem a sua modernização, tanto à esquerda, entre os comunistas, como à direita, entre parte da base de apoio da monarquia e as forças que desencadearam o golpe republicano em 1973 e instauraram no país uma ditadura de direita. Ora, embora seja compreensível que este período seja retratado duma forma mais benigna do que os da guerra civil, da intervenção sovética e do particularmente violento regime taliban, teria sido tão fácil traçar um retrato dessas tensões políticas pré-existentes como foi mostrar as étnicas. Não é esse o caminho escolhido pelo autor, que também escolhe omitir por completo o papel desempenhado pelos EUA no eclodir da guerra civil que precipitou a intervenção soviética. E que escolhe cair no simplismo caricatural de retratar os talibã através de um psicopata pedófilo ex-nazi e meio alemão, quando as raízes daquele fundamentalismo violento são muito mais profundas e muito mais vastas do que isso. E, num livro em que a culpa e a redenção são temas tão importantes como o facto de ter sido escrito por um emigrante afegão e ter protagonistas e ambientes afegãos (mesmo o ambiente americano é fortemente afegão), passar por alto essas culpas deixa um sabor desagradável na boca.

Assim, na parte que mais me interessa o livro deixou-me um forte sabor a falso. A uma certa desonestidade intrínseca. E isso, para o leitor que sou, anula aquilo de bom que a bem conseguida exploração das contradições íntimas das personagens trouxe ao romance. O saldo final é mais negativo do que positivo. E a tradução/revisão nem sempre ajuda. Ninguém sai do Afeganistão levantando voo de Islamabad, caramba. Esta é, tão-só, a capital do Paquistão. Não me parece possível que a origem desse disparate esteja no autor, e ele é suficientemente recorrente para que não possa tratar-se duma troca de nomes casual, duma gralha.

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