segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Lido: Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde

Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde é um romance de Mário de Carvalho que o autor afirma não ser histórico. E não o é, no sentido de se passar numa cidade da Lusitânia romana que nunca existiu, Tarcisis, e não descrever nem ter como pano de fundo acontecimentos historicamente comprovados. Ou seja: em sentido estrito, não se trata, de facto de um romance histórico.

O que aqui temos é, basicamente, uma história sobre o poder e aquilo de que ele depende, e, nisso, trata-se de uma obra intemporal. Decorre nos tempos romanos, mas poderia igualmente decorrer ontem, alterando-se nela apenas uns pormenores de ambientação e de circunstância institucional. A Tarcisis romana de Mário de Carvalho podia ser Portugal, como podia ser um partido político, um clube de futebol, uma sociedade recreativa, um simples grupo de amigos e conhecidos.

Só que os pormenores são abundantes e detalhados. Nota-se, em especial no início do romance, um profundo trabalho de pesquisa sobre os usos e costumes dos cidadãos de Roma — a sua cultura, afinal — a arquitetura e organização urbana de uma Urbe do Império, e os tempos conturbados em que uma certa seita oriental nascida entre os judeus se ia espalhando pelo Império. E isso faz com que eu, que nunca fui grande fã de sentidos estritos, veja este livro como um romance histórico em sentido lato. Se é certo que não obedece à realidade histórica nas minúcias de que esta se compõe, obedece-lhe nos traços largos que a caracterizam. Se altera detalhes é para melhor apresentar a imagem completa.

Contraditório?

Não propriamente. É raro que uma obra literária — ou qualquer outra, na verdade — seja apenas uma coisa, em especial quando se trata de algo tão complexo como um romance. E este livro, sendo um romance sobre o poder e a política, como já se disse, é também sobre a história de Portugal anterior a haver Portugal, é sobre a religião ou sobre até que ponto se torna impossível dialogar com o fanatismo (e talvez mesmo sobre o fascínio que este exerce), e também sobre o amor ou algo que se lhe pareça, além de muitas outras coisas.

A história nem parece lá muito complexa à primeira vista, mas essa complexidade surge assim que se cava um bocadinho. O protagonista e narrador é um tal Lúcio, destacado cidadão romano, que, na sua villa, escreve as memórias da sua ascensão e queda na liderança de Tarcisis, num período particularmente conturbado em que os demais cidadãos de qualidade se alheiam da coisa pública e Lúcio se vê forçado a lidar praticamente sozinho com um ataque de mouros (não os mouros islâmicos, entenda-se; os habitantes da Mauritânia dos tempos romanos, que corresponde grosso modo ao atual Magrebe) e com as perturbações internas causadas por um bando de fanáticos cristãos e pela reação dos cidadãos não-cristãos contra eles, habilmente manipulada por um taberneiro que ambiciona ascender à liderança da cidade. Para piorar as coisas, Lúcio apaixona-se pela mais fanática de todos os cristãos, Iunia Cantaber, uma mulher relativamente jovem, filha de um seu amigo, que o desafia abertamente. E para piorar ainda mais as coisas, Lúcio é um desastre como político.

Mário de Carvalho joga bastante bem com tudo isto. O romance é bastante bom, ainda que me pareça que a relação de Lúcio com Iunia ocupa nele demasiado espaço. Por um lado percebe-se: quando um homem está apaixonado, o alvo dessa paixão ocupa-lhe com persistência os pensamentos, e o romance é contado na primeira pessoa. Se Lúcio não falasse de Iunia como fala, não estaria apaixonado. Mas, por outro lado, essas divagações sentimentais, sempre plenas de dúvidas, hesitações e irritações, fazem com que o fim do livro perca um pouco o ritmo, submergem um pouco em demasia tudo o resto.

Mas isso foi o que me pareceu menos bem conseguido. Tudo o resto é muito bom.

Só uma nota final, pondo agora por um momento o capacete espacial do leitor — e escritor ocasional — de ficção científica. Uma das coisas em que pensei várias vezes no decorrer do romance foi no quanto esta sociedade que Mário de Carvalho aqui descreve, uma sociedade antepassada direta da nossa, vivida por antepassados nossos, nos é tão mais alienígena do que tantas das sociedades pretensamente alienígenas que nos têm sido dadas pela FC anglo-americana. Este foi, para mim, um dos fascínios deste livro.

Este livro veio da biblioteca do meu pai; suponho que tenha sido comprado.

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