sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Lido: História do Futuro

A História do Futuro, do Padre António Vieira, é um livro incompleto, escrito pouco depois do fim do domínio filipino, numa época em que Portugal procurava reafirmar a sua independência contra as pretensões castelhanas (que subsistiram durante muito tempo e tomaram por várias vezes a forma de invasões e guerras), embora só publicado quase 20 anos depois da morte do autor, após ser atentamente examinado — e talvez amputado — pela Inquisição, e que consiste de um longo exercício de retórica destinado a defender a tese de que está profetizado em vários textos sagrados para a Igreja Católica que o futuro a deus pertence e que o agente de deus nesse futuro é, precisamente, Portugal.

Removendo a densa camada religiosa, é fácil ver neste livro o que ele é: uma ardente defesa do direito à existência do reino de Portugal, destinada àquele que à época ainda era o mais poderoso poder político da Europa ocidental, apesar de já ter perdido o controlo sobre os territórios protestantes: o Papa. E, por extensão, todo o clero católico, extremamente influente em ambos os reinos envolvidos na disputa, o português e o castelhano. Para esse fim, Vieira vai vasculhar nos textos sagrados em busca de trechos que possam ser interpretados de forma favorável à sua tese: a de que foi profetizado que no mundo haverá cinco grandes impérios, e que o último é o império de Cristo, indistinguível do império de Portugal.

A minha motivação para ler este livro foi bastante peculiar em relação ao que é típico nos seus leitores. É que tem vindo a ser defendida a tese de que a História do Futuro é o primeiro texto utópico escrito em língua portuguesa, e que por conseguinte se trata de um percursor de alguma da literatura fantástica posterior, nomeadamente a ficção científica, a qual sempre incluiu uma vertente de obras utópicas. Depois de o ter lido, contudo, parece-me que esta ideia é seriamente equivocada. E explico porquê:

Na obra que deu o nome à literatura utópica, Utopia, Thomas More inventa uma ilha com o mesmo nome, cuja sociedade se organiza da forma que a More parece mais certa. Embora o seu objetivo fosse primariamente político e o livro de More seja no fundamental um tratado filosófico, estão nele presentes muitas das características da ficção fantástica posterior: a criação de uma espécie de mundo secundário, que reflete e contrasta com o do autor e dos seus leitores, a criação de uma sociedade cujas diferenças com a do autor são exacerbadas para que melhor se compreendam as insuficiências desta última, e até algo de semelhante a uma história.

Na História do Futuro, por outro lado, o Padre António Vieira não faz nada disso. Sustenta-se numa tradição profética católica e procura criar a sua própria profecia. É através desta que pretende conseguir a sua influência política com um único argumento: o de que "está escrito". Está escrito que Portugal é o país do futuro, está escrito que o Quinto Império, o império de Cristo, chegará através de Portugal, está escrito. Portanto para que vos esforçais, ó senhores de outros domínios, se os vossos esforços serão frustrados pelo destino? Acalmai-vos, reduzi-vos à vossa insignificância, pois por mais problemático que o presente se nos afigure, o futuro será nosso. Vieira não descreve qualquer espécie de utopia, não fala de como será a sociedade nesse fabuloso quinto império, limita-se a dizer que ele acontecerá e que será bom. Como pode não o ser, se se está a falar do império de Cristo?

Ora uma utopia, para que o seja de facto, não pode ficar-se por dizer que o futuro será (ou o presente ou o passado, algures, é ou foi) radioso. Tem de explicar como, tem de mostrar essa radiância, que formas ela toma, tomou ou tomará. E, embora talvez fosse essa a intenção de Vieira para este livro, a verdade é que aquilo que dele nos chegou não inclui nada do género. Portanto não, não me parece que se trate de um exemplar de literatura utópica e muito menos que seja percursor de qualquer ramo da nossa literatura fantástica. É um texto teológico e político, nada mais. Vieira tem muito mais a ver com Bandarra do que com More.

Questão diferente é analisá-lo enquanto influência. Aí, sim, trata-se de um texto bastante influente, porque criou ou impulsionou alguns dos mais duradouros mitos da cultura portuguesa (e também brasileira), que foram mais tarde integrados por uma miríade de outros autores nas suas obras, fantásticas ou não. Embora inclua poucas referências a D. Sebastião, e nenhuma declaradamente sebastianista, é um texto indissociável do sebastianismo enquanto filosofia; na verdade é um dos principais textos dessa filosofia. O futuro radioso que "está escrito" está intimamente ligado ao futuro radioso que depende de um rei que "regressará num dia de nevoeiro". E o sebastianismo permeia toda a cultura portuguesa, e as que por ela foram influenciadas ou dela se originaram; consequentemente também permeia todas as literaturas lusófonas, quer haja nelas algo de fantástico, quer não haja.

Faço um parêntesis para dizer que o sebastianismo é, aliás, um dos principais motivos do nosso reiterado fracasso enquanto nação, porque gerou ou incentivou uma atitude de daixa-andar que faz com que fiquemos para trás. O mesmo argumento que Vieira utiliza para levar os príncipes estrangeiros a abandonar os seus esforços para conquistar Portugal, serve para levar os próprios portugueses a baixar os braços. Se o futuro é nosso, faça eu o que fizer, para que me vou esforçar? O destino encarregar-se-á de se fazer cumprir, como é evidente. Onde esta atitude leva é fácil compreender: à estagnação bocejante e indiferente. E o país do futuro permanecerá para sempre país do futuro. É algo que se costuma dizer do Brasil, mas que se aplica como uma luva ao Portugal que Vieira descreve e em que os sebastianistas acreditam. Ou não fôssemos, brasileiros e portugueses, um só povo separado por um oceano.

Voltando ao curso desta opinião, sim, a História do Futuro é sem dúvida um texto muito influente. Mas influência é diferente de percurso; será quanto muito o relevo que obriga o percurso a seguir um determinado caminho. E se formos chamar percursores a todos os textos que influenciaram algum aspeto das literaturas da imaginação, teríamos de afirmar que só há dois tipos de literatura: a que já é fantástica e a que ainda só é sua percursora, o que é manifestamente absurdo.

OK, mas gostei do que li? Nem por isso, não. Vieira era um grande retórico e um bom escritor, é certo. Mas os grandes retóricos tendem a construir grandes edifícios retóricos, cheios de floreados e decorações barrocas, mas muito vazios de conteúdo. E eu detesto isso. Figadalmente. E entre as ideias que ele defende, poucas são as que não acho profundamente erradas, quando não mesmo daninhas. Portanto não, não foi leitura que me tivesse agradado particularmente. Mas foi instrutiva, isso foi.

Este livro foi obtido na internet há mais de 10 anos. Li uma edição brasileira, em PDF, com bastantes erros de reconhecimento de caracteres, preparada pela Universidade Federal do Amazonas. Procurando, julgo que ainda se conseguirá encontrá-la, algures, mas há outras disponíveis. Incluindo esta, do Wikisource.

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