Os caturras da velha ortografia têm assim uns entusiasmos súbitos com as coisas mais estapafúrdias. Cansados de derrotas, sempre que lhes aparece à frente um artigo de alguém a deitar abaixo a nova ortografia enchem o papo de ar e pavoneiam-se por aí, inchados de orgulho, quais pombos em pleno cio. Um dos casos mais recentes foi o de uma tal Maria Regina Rocha, que dedicou algumas horas do seu tempo livre, decerto, a fazer uma espécie de estudo em que pega no vocabulário da mudança disponível no Portal da Língua Portuguesa e conta o número de casos em que a nova ortografia "unifica" e "desunifica" a ortografia. Pretende com isso provar que o AO é absurdo porque não unifica coisa nenhuma, e blá blá blá e renhónhó.
O problema, claro, é que o que ela faz e diz padece de vários problemas. Problemas tão sérios que, se fossem doenças, dariam direito a internamento.
Em primeiro lugar, a senhora conta os casos em que a ortografia é unificada ou não o é, mas exclui à partida categorias inteiras de palavras, nas quais só muda a ortografia brasileira, e que, certamente por pura coincidência (caso contrário teríamos de concluir má-fé ou desonestidade intelectual, o que seria chato) ficam todas, sem exceção, iguais às portuguesas. Diz que é por serem "residuais". Acontece que o AO altera cerca de 0,5% do léxico brasileiro (contra 1,5% do português), e quase todas as alterações têm a ver, precisamente, com essas categorias de palavras. Pelo menos 0,4% do léxico.
É um resíduo e peras, hã?
Em segundo lugar, afirma coisas extraordinárias como esta: "Em Portugal, altera-se a ortografia fazendo desaparecer as referidas
consoantes e, afinal, no Brasil, essa ortografia de cariz etimológico
mantém-se!" Nem lhe passa pela cabeça (ou se passa voltamos à tal má-fé e desonestidade intelectual, o que volta a ser chato) que a tal "ortografia de cariz etimológico" só se mantém no Brasil quando não se limita a ser uma questão etimológica mas se trata de uma questão de pronúncia. Lá, como cá, as consoantes mantêm-se quando são pronunciadas. Não por a etimologia das palavras ser esta ou aquela, mas por a sua pronúncia ser esta ou aquela. Falar-se aqui de manutenção da etimologia é, como soi dizer-se, atirar areia para os olhos dos papalvos.
Ou distração, vá. Se calhar foi só distração.
Mas o mais importante nem é isto. É a confusão em que os caturras tantas vezes mergulham quanto ao significado da expressão "unificação ortográfica". Confundem unificação com uniformização e dizem disparates sobre o acordo não fazer o que diz que faz porque não uniformizou a ortografia da língua.
Acontece que nunca foi esse o objetivo.
Querem que eu repita?
Nunca. Foi. Esse. O. Objetivo.
O objetivo, conforme expresso em documentação oficial (um anexo ao texto legislativo que contém o acordo aquando da sua publicação em Diário da República, mais precisamente), sempre foi, desde o início, e cito, "consagrar uma versão de unificação
ortográfica que fixe e delimite as diferenças actualmente existentes e
previna contra a desagregação ortográfica da língua portuguesa." Quem saiba ler português, em qualquer das ortografias em que a língua se possa expressar (e esta é a antiga portuguesa, boa para caturras), facilmente compreenderá que o que aqui está em causa não é uma uniformização ortográfica, mas uma unificação no sentido em que passa com o AO a haver um documento único, válido para todos os países lusófonos, a definir a ortografia do português.
Um documento único, portanto unificado, a substituir os dois até aí existentes e a possibilidade muito real de passarem a haver mais a curto ou médio prazo.
Isto, é bom dizê-lo, podia ter sido feito deixando tudo como estava. Podia ter-se simplesmente criado um documento único que elencasse todas as variantes tal como existiam nas ortografias pré-AO, e o resultado em termos de unificação ortográfica seria o mesmo. Passaria na mesma a haver um único documento a definir a ortografia da língua portuguesa, e esta, portanto, ficaria unificada. Não uniformizada, mas unificada.
Mas os caturras não percebem isto. A mim parece coisa simples de entender, mas eles não entendem.
Mistérios do raciocínio caturreiro.
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