... ou, para quem anda mal de siglas, a ficção científica no Infinitamente Improvável.
Sim, o II continua ativo. Sem submissões há bastante tempo, visto que o último conto que foi publicado, em meados de fevereiro, chegou logo a abrir o ano, há três longos meses, mas o site continua ativo. Na expetativa do que possa eventualmente aparecer.
Mas não é disso que quero aqui falar. É de FC.
Quando escrevi a proposta, deixei mais ou menos subentendido que haveria alguma preferência por contos próximos da ficção científica. Fi-lo de propósito, não só por preferência pessoal minha, mas também como desafio aos autores. Porque se é razoavelmente fácil escrever contos mágicos, em que se postulam mundos cujas regras de funcionamento estão limitadas apenas pela imaginação do autor, e se é algo mais difícil escrever contos que projetam para futuros ou outras realidades o que a ciência determinou ser plausível, ou pelo menos verosímil, escrever contos próximos da FC que lidem com o impossível parece situar-se numa estreita inteseção de mundos pouco compatíveis, exigindo bastante de quem escreve.
Foi em parte para despoletar essa exigência, para as pessoas não pensarem que eu só iria querer coisas do género, que procurei estabelecer um intervalo razoavelmente amplo com os contos meus que escolhi para servir de balizas. A Injeção Financeira é um continho absurdista que sorri da linguagem, e Testemunhas também anda por essas zonas, ainda que seja um pouco mais chegado ao surrealismo e à fábula. Ambos tentam fazer humor, e ambos foram buscar inspiração a Mário-Henrique Leiria, que aliás é, também assumidamente, uma inspiração genérica para toda a ideia.
Mas decidi também mostrar mais ou menos que tipo de conto mais gostaria de receber com Pandorama. Este já mete uma criatura de outro universo, cosmologia, um contacto com outra inteligência e as dificuldades que ele acarreta. Tudo temas típicos da ficção científica. E, claro, o infinitamente improvável sob a forma da queda cosmológica, da transição entre universos.
Depois, recostei-me, à espera de ver o que apareceria. À espera de ver se me surpreenderiam. Foi sem grande surpresa que vi aparecer o terror sobrenatural de O Pacto Macabro da Velha Antonha, ou o realismo mágico de A Rapariga de Areia, etc. Contos que respeitam a proposta do II mas se enquadram em géneros ou subgéneros bem estabelecidos. Contudo, já foi com surpresa que vi chegar ficções científicas bastante clássicas, nas quais a improbabilidade infinita da proposta é usada de forma astuciosa pelos autores. Em especial duas.
A primeira foi Variável da Imponderabilidade, de Tibor Moricz, que postula uma sociedade impossivelmente misógina e centra nesse facto o conflito que faz mover o conto, mas depois desenrola a história segundo as regras da solidez conceptual e de verosimilhança típicas da FC pura e razoavelmente dura. A segunda foi ainda mais subtil, a tal ponto que senti necessidade de perguntar ao autor por que motivo achava que o conto se adequava à proposta do webzine — e também foi depois dela me aparecer que comecei a pensar neste artiguito. É que a história em questão, Para Cada Verdade as Suas Consequências, do Miguel Hernâni Guimarães é, toda ela, uma distopia de Lisboa em guerra, bastante sólida e totalmente verosímil no caso de toda esta coisa do euro e da União Europeia dar o berro com violência, uma história de FC de futuro próximo de um tipo que João Barreiros, por exemplo, já produziu algumas vezes. Guimarães respondeu-me que uma das personagens do conto nunca se deixaria apanhar numa situação como aquela, e que aí residia a sua obediência à proposta. E eu sorri, pensei com os meus botões "bem jogado, pá!", e aceitei-o. Mas aceitei-o com a consciência de que estava a aceitar o que é basicamente uma FC clássica, algo distante da minha ideia inicial para o zine. Ajudou eu ter gostado bastante do conto.
Estas histórias, no entanto, não são as únicas em que a ficção científica está presente. Há o já citado Pandorama, há um outro conto meu, Uma História Verdadeira, Segundo Quem a Contou, cuja ideia básica é inverter o velho chavão do bug-eyed monster que tanta escola fez na FC da Golden Age, pondo um insignificante mosquito como piloto aviador regressado duma catastrófica missão de ataque a um horrendo monstro com dois braços, duas pernas, instintos assassinos e uma gruta privativa (e que é baseada em factos reais, comigo no papel de monstro horrendo), há Terra Brasilis do Gerson Lodi-Ribeiro, conto ambientado num planeta Terra que se vê subitamente alterado de tal forma que todos os países, à exceção do Brasil, se esvaziam de homens e civilização e que também se desenrola como FC pura e dura após a infinita improbabilidade que dá o pontapé de saída ao enredo, há Decepções da Paternidade, também do MH Guimarães, que se passa num futuro (embora troce venenosamente do presente) em que a aprendizagem é praticamente instantânea e os professores foram substituídos por androides, há dois contos do João Ventura, que até são os que mais se aproximam do tipo de material que eu contava receber no zine, Sem Maneiras, conto que anda em volta de conceitos tão científicos como a explosão de conteúdos informativos e os buracos negros, e a piscadela de olho a Flatland que é Uma Notícia Geométrica, e há Cientista, de Fernando Soromenho, que recupera outro velhíssimo chavão da FC, o cientista louco, e as consequências imprevistas e altamente nefastas da sua atividade.
Estas sete histórias são as que melhor correspondem ao que eu esperava receber. Eu não chamaria FC a todas, mas a FC é em todas uma componente. Somando-lhes as duas de que falo acima, são nove histórias em que a ficção científica está presente, de um total de 17 histórias publicadas no zine. Basicamente metade, embora bastante mais de metade se em vez de número de histórias pensarmos em número de palavras. É que, para além do mais, são precisamente as histórias próximas da FC que são as mais extensas, o que não deixa de ser curioso.
E eu gosto que assim seja. Gosto de ser surpreendido, gosto de FC, gosto de quem aplica inteligentemente premissas e limites. Só tenho pena de, aparentemente, o poço ter secado. Se é seca provisória ou definitiva só adiante se verá.
Seja como for, é a vida.
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