A Esfera de Cristal (bibliografia) é mais um conto fantasmagórico de Hugo Rocha que funciona de certo modo como contraponto a O Retrato do «Quimbanda». Desta feita, o protagonista da história é um abastado colecionador de arte, tão abastado, na verdade, que não precisa de trabalhar, passando a vida em busca de novos tesouros para enriquecer a sua coleção/museu particular. Um dia, em viagem pela Índia, decide num impulso comprar uma esfera de cristal, daquelas que são costumeiramente usadas como adereços nas artes divinatórias, permitindo a quem as manuseia ver locais distantes no tempo ou no espaço. Cético, mas interessado, o protagonista leva a esfera para o seu palacete, põe-na em exibição junto dos outros objetos que fora recolhendo e basicamente esquece-a.
Até uma noite de tempestade, em que, entre trovões e relâmpagos, vê imagens dentro da esfera.
Em que faz isto o contraponto à outra história a que me refiro acima? É que este conto foi inspirado pelo violentíssimo massacre da UPA no norte de Angola em março de 1961, que para os portugueses marca o início da guerra colonial (escrevo "para os portugueses" porque antes desse ataque houve outros incidentes, alguns reprimidos de forma quase igualmente bárbara pelas tropas coloniais, e é um deles que os angolanos encaram como início da sua guerra de independência). E Rocha descreve o ataque, ainda que brevemente, não poupando na selvajaria. Não existe aqui nenhuma da dignidade de que o quimbanda dá mostras no outro conto; existe apenas o frenesi da violência sem limites. Que existiu mesmo.
Os dois contos em conjunto dão bem conta da perspetiva portuguesa contemporânea sobre o conflito em África, uma perspetiva parcial e contraditória que, se por um lado compreende a revolta perante as injustiças da opressão colonial (das quais, diga-se de passagem, só tem uma pálida consciência), por outro não aceita a brutalidade da violência que é usada contra elas.
Não esperava encontrar isto neste livro. É um ponto a seu favor.
Contos anteriores deste livro:
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