(Este texto vem na sequência de outros quatro: este, este, este e ainda este.)
O chato de se fazerem alterações a meio de um texto longo é elas exigirem muitas vezes fazer-se também alterações no resto do texto. E nem sempre há tempo para isso, o que também é chato. A consequência é deixar-se para "amanhã" o que só fica pronto dias depois. Como este artigo.
Mas ficou pronto. No fundo, é o que realmente importa. Vamos lá a ele.
Se pedissem aos intelectuais portugueses uma lista dos dez escritores mais importantes do século XX, muitos incluiriam nessa lista o nome de Miguel Torga. Quando andei na escola, ler os seus Novos Contos da Montanha era obrigatório, e eu, que sempre resisti com toda a determinação a leituras obrigatórias (Os Maias, Os Lusíadas, Viagens na Minha Terra, etc. só muito mais tarde foram lidos de fio a pavio, e tenho vagas recordações de outras leituras teoricamente obrigatórias que até hoje não fiz), até li esse livro sem grande ranger de dentes. Não foi essa a leitura obrigatória que realmente me deu prazer — esse proeza coube a Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes — mas foi a segunda menos desagradável. Acho até que gostei, embora a contragosto. Eu, que odiava ler por ser a isso obrigado, e que abominava qualquer leitura obrigatória por uma questão de princípio, não me cheguei a render a Torga, como rendi a Pereira Gomes, mas não faltou muito.
Torga foi um grande escritor.
E editou toda a sua obra em edições de autor.
É provável que o principal motivo para isso tenha sido a recusa em submeter previamente os seus livros à censura, mas julgo que Torga nunca o esclareceu inequivocamente. Uma coisa é certa: escritores do nível de Torga, mesmo num momento como este, em que os condicionalismos económicos fazem com que na hora de decidir o que publicar a qualidade perca em toda a linha para o potencial comercial, não têm problemas em encontrar editoras. A razão para Torga enveredar pela autoedição, portanto, não foi não encontrar editoras interessadas em publicá-lo.
Este é o velho cliché que se associa sempre às edições de autor. Se alguém se autoedita, pensa quem pouco sabe, é, tem de ser, porque ninguém quer editá-lo. Mas a verdade, como sempre acontece, é bem mais complexa do que isso, e existe uma multiplicidade de motivos possíveis para se virar as costas às editoras e tratar de tudo sozinho ou com alguns amigos.
Obviamente que muitos o fazem por serem sido recusados. Contudo, no ponto em que as coisas estão hoje em dia, só não edita por uma editora (ou “editora”) quem não quer. Ainda que nem sempre assim tenha sido, hoje em dia há no mercado tantas empresas prestadoras de serviços editoriais (o que dá a sigla de EPSE… olhem… e se lhes chamássemos epses em vez de vanities?) disfarçadas de editoras que só fica de fora quem quer ficar de fora. E motivos para isso cada um sabe dos seus.
Pode ser por não se querer interferências editoriais na obra, mesmo que em Portugal não haja grande tradição de editores que trabalham os textos com os autores, melhorando-os, pelo menos segundo o que do seu ponto de vista é melhorar.
Pode ser por não se querer que todos ganhem com a edição mais do que o autor, o qual, mesmo quando alcança um contrato vantajoso, raramente consegue reclamar para si mais do que 10% do preço de venda ao público, e, se não é nome sonante, normalmente tem de contentar-se com muito menos, ou até com exemplares da obra gratuitos em vez de pagamento. Isto, claro, quando não lhe pedem que os pague do seu bolso.
Pode ser por se recusar a pactuar com a atividade das epses e nenhuma editora a sério ver no que escreveu potencial comercial, o que pode dever-se praticamente a qualquer coisa, desde qualidade a menos a qualidade a mais, passando por mil e um outros motivos. Um deles, em especial, é interessante: a inapetência do mercado por determinadas abordagens ou até por géneros inteiros, quer essa inapetência seja real (geralmente até é), quer seja apenas questão de perceção. É bem sabido, por exemplo, que há já muitos anos a edição de poesia vive basicamente de edições de autor, assumidas ou encapotadas. O que é irónico, tendo em conta não só que toda a gente diz à boca cheia que somos um país de poetas (poetas esses que, aparentemente, e apesar de o serem, não leem poesia), mas até porque antigamente era a poesia, não a prosa, a literatura considerada verdadeiramente nobre. Um escritor a sério era alguém capaz de desarrincar uns versos bem concebidos, não quem se dedicasse a esse ofício menor de escrever historietas em (pfff!) prosa.
Para dar um exemplo, António Ramos Rosa, outro nome de vulto nas letras portuguesas do século passado (e que perdemos há um par de meses apenas), iniciou a sua carreira em 1958, ao publicar um livro de poemas intitulado O Grito Claro. Há mais de meio século. Editora? Nenhuma. O livro foi editado por Casimiro de Brito, outro poeta algarvio, que resolveu tratar ele mesmo da edição de livros de poesia, seus e de outros poetas. Juntou-os numa coleção a que deu o título de “A Palavra”, e cujo primeiro número foi precisamente o livro de Ramos Rosa mencionado acima. A coleção foi saindo ao ritmo de menos de um livro por ano entre 1958 e 1964. O segundo volume foi Telegramas, de… Casimiro de Brito, o editor. Mais edição de autor do que isto não é possível. A esses dois livros e ao número 5, também de Casimiro de Brito, acabaram por fazer companhia obras de Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e… Candeias Nunes, meu pai, e o único dos cinco a que se pode chamar com propriedade obscuro.
Podia continuar a discorrer sobre exemplos de autoedição de alto nível, mas creio que não vale a pena. O ponto é: os motivos possíveis para se optar pela autoedição são múltiplos, muito mais do que esta breve lista enumera. A maior parte das obras autoeditadas é má ou amadora? Sim. Mas são-no todas? Não. Por isso reduzir um tipo inteiro de edição aos seus piores exemplos, como tantas vezes se vê fazer por aí, não é propriamente aquilo a que se poderá chamar inteligente.
E isto é especialmente verdadeiro em momentos em que é a contração do mercado que empurra quem se dedica a certas áreas literárias para a autoedição, por melhor que seja o que produz. Aconteceu com a poesia, mas está longe de só ter acontecido com a poesia. Aconteceu também, nos últimos anos (desde finais dos anos 90, mais precisamente), com algo que me toca bem mais de perto: a ficção científica, especialmente em forma de ficção curta. Mas se os escitores de FC tivessem continuado a escrever, autoeditando-se, estarímos bem. Infelizmente, não foi o que aconteceu. Muitos preferiram deixar de escrever e publicar a continuarem a fazê-lo através de edições de autor, as quais praticamente não têm existido. Não só porque autor que não escreve é autor que vai aos poucos deixando de saber escrever (a escrita exige um exercício constante), mas também, ou se calhar principalmente, porque só é possível ganhar e conservar um público quando se está presente no mercado, por mais que essa presença seja marginal.
E sim, também tenho culpas nesse cartório. O que nos leva à fase seguinte desta série de artigos: que perspetivas vejo eu, enquanto autor, na edição atual? Ou por outra: como e por que vias deverão os autores tentar publicar nos dias que correm?
Mas isso será amanhã, se houver tempo. Ou depois, se não houver.
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