(Quem vem seguindo isto, já sabe. Para os outros, este texto vem na sequência de outros seis: este, este, este, este, este e ainda este.)
O digital surgiu como uma enorme promessa. É escusado explicar porquê pela enésima vez; os motivos são múltiplos e de monta, desde o embaratecimento radical do processo de divulgação do que se faz a obter-se instantaneamente uma audiência potencial do tamanho do planeta, ou pelo menos da parcela do planeta que está interconectada digitalmente e compreende a língua que o autor usa, passando pela imensa abreviação do tempo que pode decorrer entre escrita e leitura e por muitos outros eteceteras que já foram dissecados até à exaustão por centenas de outros escribas.
Também os problemas que o digital pode gerar ou amplificar foram já discutidos até ao adormecimento, ainda que nem sempre de forma inteligente. É verdade demonstrável, por exemplo, que o digital potencia a pirataria de obras literárias, mas afirmações de que ler em aparelhos digitais não é ler, entre outras, já caem no campo da parvoíce pura e simples. Vale a pena, portanto, refletir sobre as questões relacionadas com a pirataria, mas afirmações parvas como a exemplificada acima não devem merecer mais que um encolher de ombros, um suspiro e um abanar de cabeça.
Pessoalmente, tenho, desde o início, grandes esperanças no digital. Por isso, depressa comecei a editar online, primeiro com o E-nigma, depois com outros projetos. Mas foi com igual rapidez que fui confrontado com algumas das características perversas deste admirável mundo novo, tanto enquanto autor, como enquanto editor.
O primeiro grande choque foi um caso de pirataria envolvendo os textos publicados no E-nigma, textos de cópia livre e venda proibida, assim mesmo identificados com toda a clareza, que não obstante andaram a ser vendidos em CD-ROM no Brasil, em conjunto com uma quantidade elevada de outros textos obtidos quer da web, quer de livros em papel. Foi em parte esse choque que levou primeiro à perda de ânimo e depois à paralisação do trabalho no site.
O segundo grande choque deu-se mais tarde, com a forma como um par e meio de grandes empresas abarbataram praticamente todo o mercado de edição digital, esmagando tudo à sua passagem, fazendo uso de táticas comerciais no mínimo duvidosas e criando um padrão de relacionamento entre os leitores e a tecnologia digital de leitura que na prática exclui tudo o que não lhes passe pelas mãos. Aquilo que a princípio mais me atraiu para o digital — a enorme liberdade que ele deveria proporcionar — é posto em causa com todos os sistemas de digital rights management (que na prática fazem com que as pessoas não comprem realmente as obras, mas as aluguem, por mais que julguem o contrário), com todos os formatos exclusivos de determinados aparelhos, com todas as capelinhas geradas na procura de conteúdos, com todas as alterações unilaterais de condições, de preços, de relação autor-editor, etc., e etc., e etc.
Como consequência, hoje o meu entusiasmo pelo digital está bastante atenuado. Vejo a edição digital não como uma substituição da edição tradicional, como cheguei a ver em tempos, mas como um complemento, com objetivos fundamentalmente diferentes. Para mim, hoje em dia, e tal como se tem vindo a apresentar, o digital é o lugar das experiências descomprometidas e da divulgação, das ideias mais ou menos em bruto, das obras raras ou fora do mercado, da ficção curta e ultracurta, das coisas para ler em viagem mas não necessariamente para guardar, daquilo que, de outra forma, se torna demasiado difícil, ou impossível, de encontrar.
E do que é gratuito.
Porque me recuso a pagar por coisas trancadas em DRM. Porque não aceito estar a gastar dinheiro em ebooks que depois podem desaparecer dos meus dispositivos de leitura porque uma empresa sem rosto, algures, decide de repente mudar as regras. Ou um autor, com rosto mas também com pouco respeito pelos leitores. Porque não acho que seja assim que as coisas devem funcionar. Porque não acho que seja essa a melhor forma de transferir para os criadores alguma compensação financeira pelo seu trabalho.
Mas acho, por outro lado, que essa compensação financeira é necessária. É em parte uma questão moral, a eterna justiça que existe em ser-se pago por um trabalho de que outros desfrutam. Mas não é só isso; O profissionalismo, mesmo aquele profissionalismo mais imaginário que real dos escritores que vendem um conto de vez em quando e conseguem com essas vendas obter no máximo umas dezenas de euros por ano (ou por década), é necessário para haver uma produção de conteúdos ao mesmo tempo regular e razoavelmente bem trabalhada. É uma questão de estímulo, mas não é só uma questão de estímulo. É também uma questão de responsabilização do autor. Produzir para um público que não paga é, queira-se ou não, goste-se ou não, diferente de produzir para um público que paga, tal como produzir apenas para o próprio umbigo é diferente de produzir para o umbigo e um público, seja este qual for.
Além disso, como também acabei por ir descobrindo aos poucos, o próprio público dá mais valor àquilo que tem de pagar do que ao que obtém gratuitamente, por mais invertida que a relação de qualidade por vezes seja. Por vezes, dar tudo de mão beijada é contraproducente. Para obter reações realmente equilibradas, faz-se também necessário um certo equilíbrio entre a facilidade e a dificuldade (em sentido lato, incluindo nela coisas como o preço) na obtenção das obras. E também se dá mais valor ao que é palpável, ao que tem a solidez de um objeto tridimensional que se pode manusear, do que ao imaterial, à simples informação contida em dispositivos eletrónicos, mesmo quando o conteúdo é nestes bem mais elaborado e completo do que naqueles. É em boa parte daí que vem a persistente má fama de iniciativas como a wikipédia, por contraponto às enciclopédias tradicionais (apesar destas serem as primeiras vítimas reais do digital no que toca aos livros), mesmo havendo abundância de estudos que não encontram diferenças significativas no rigor factual entre uma e as outras.
A psicologia, provavelmente, explica.
É na questão financeira que o digital mais falha, porque não se arranjou ainda nenhuma forma genérica de o financiar de forma sustentada sem recorrer a coisas como o DRM, que violam alguns direitos básicos de quem consome. Há experiências com algum sucesso em certos casos, mas nenhuma delas é aplicável a tudo, ou sequer à maioria dos casos. Experiências de serialização, de crowdfunding, de disponibilização parcial de conteúdos, de publicação atrás de paywalls, etc., etc., etc. Todas resultam às vezes, nenhuma resulta sempre, e todas trazem consigo problemas que por vezes são suficientemente sérios para as porem em causa.
E tudo isto (aqui tratado assumidamente pela rama, porque se fosse aprofundar teria tanto ou mais pano para mangas como o que tenho gasto ao longo destes artigos) é suficiente para me levar a continuar a preferir a edição em papel à digital, seja como leitor, seja mesmo como autor (o que é algo paradoxal, bem sei, tendo em conta que publiquei mais material digitalmente do que em papel). Tenho um tablet, e leio no tablet. A minha experiência diz-me que não existe nenhuma diferença de monta entre a experiência de leitura no tablet ou em papel, a não ser o facto de ser possível, com o tablet, ler à noite e às escuras. Mas continuo não só a ler mais livros tradicionais como a preferir fazê-lo.
Por outro lado, tecnologias como o print on demand e a sua evolução lógica, máquinas de impressão e venda a pedido para instalar em livrarias, bem como sistemas de leitura eletrónica cada vez mais próximos da experiência da leitura em papel, estão a tornar crescentemente difusa a fronteira entre o papel e o digital. Não me custa nada, portanto, a imaginar um futuro relativamente próximo em que as duas coisas estejam praticamente fundidas. Mas aí já estamos a falar do futuro, e o futuro fica para amanhã.
Como é, aliás, da sua natureza.
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