(São sete os textos anteriores a este: este, este, este, este, este, este e mais este.)
É comum pensar-se que a evolução tecnológica e cultural é uma questão de substituição. Que as novas tecnologias, que as novas tendências, que os novos ramos de conhecimento ou cultura, que as novas formas de produzir e divulgar o que se produz, surgem, implantam-se, suplantam as anteriores e levam ao seu desaparecimento.
E é verdade que por vezes é isso que acontece. No entanto, normalmente não é.
A evolução das coisas humanas, em geral, acontece em camadas. O rádio não causou o desaparecimento dos jornais, a televisão não levou ao desaparecimento do rádio, os livros encadernados não fizeram desaparecer os documentos armazenados (ou armazenáveis) em rolo, os carros não causaram a extinção do cavalo doméstico, o rock não matou os blues, a música popular não assassinou a clássica e por aí fora.
O que o aparecimento de novidades causa invariavelmente é adaptações naquilo que as antecedeu. Quando a televisão se popularizou, as radionovelas praticamente desapareceram das grelhas radiofónicas, que se viraram muito mais para a música deixando para a televisão a programação mais generalista. De igual forma, a invenção da encadernação relegou para os rolos de papel certos tipos de documentos muito específicos, como os mapas, as obras gráficas ou as plantas arquitetónicas. Os exemplos possíveis seriam quase infindáveis, mas não vale a pena perder tempo com eles. Vocês já perceberam a ideia.
Mas esta ideia tem um corolário: a criação de novas tecnologias só não leva à substituição das antigas quando nova e antiga conseguem potenciar as respetivas vantagens, transformando-se em media diferentes não só na tecnologia que têm por base, mas também nos objetivos que pretendem atingir.
Ora, é preciso compreender estas ideias para se poder pensar com alguma propriedade no futuro da edição num momento em que se está em plena revolução digital. Quanto mais não seja para evitar cair-se na armadilha de julgar que o digital vai levar ao desaparecimento da edição em papel.
Não vai.
Mas vai, sem dúvida, levar à sua adaptação.
De resto, isso já está a acontecer. Há setores inteiros do antigo mercado livreiro que já praticamente se mudaram de armas e bagagens do velho substrato celulósico para o novo substrato informático, em especial aquela parte da edição que lida com dados em estado mais ou menos puro. Enciclopédias, por exemplo. Dicionários, até certo ponto. Uma panóplia de relatórios disto e daquilo. E, em breve, os livros didáticos. Essa migração corresponde a setores que encontram no digital vantagens de monta relativamente às antigas edições em papel, em especial na facilidade e rapidez com que se fazem correções e atualizações e na possibilidade de integração de conteúdos que não se limitem a texto e material gráfico.
A saída deste tipo de material do conjunto da edição em papel é a primeira fase de um processo razoavelmente longo de reordenação, adaptação e ajuste. Quando este terminar, teremos um mercado de edição eletrónica não só bastante diferente do que existe hoje, como fundamentalmente distinto do mercado de edição em papel que continuaremos a ter (e que por sua vez também será bastante diferente do que temos hoje). Mesmo com o entrecruzamento que mencionei no artigo anterior.
Fazer previsões acarreta sempre o risco de saírem furadas e, passados anos, nos virem apontar os erros crassos no meio de abundantes quantidades de galhofa. Mas que se lixe: vou corrê-lo.
Vejo o futuro mais ou menos assim:
No digital ficará praticamente toda a edição que faz uso intensivo de dados e toda a edição barata mais ou menos massificada, aquela que noutros tempos se recolhia às edições de bolso. É provável que também fique aí aquela edição em que a distância é fator de monta a ter em conta, embora seja possível que, se se concretizar a promessa das impressoras individualizadas em livrarias, o digital se torne, nisso, mais meio de transmissão do que de consumo. Ficará certamente no digital toda a edição que misture outras coisas ao bom e velho texto, com ou sem imagens estáticas. E a interatividade.
A passagem de parte destas coisas para substrato digital vai depender da capacidade que este mostrar para gerar rendimentos. Se a mostrar, muito bem, tudo isto passará ao formato digital, e provavelmente outras coisas também; se não a mostrar, alto e para o baile. Sem haver forma de sustentar financeiramente a indústria, esta resistirá com todas as suas forças a digitalizar-se. É fácil compreender porquê: embora parte dos fluxos financeiros associados aos livros em papel deixe de fazer sentido no mundo digital (a distribuição ou o armazenamento de stocks são as primeiras coisas a vir à mente), outros mantêm-se tal e qual. O que é preciso para procurar conteúdos, ler conteúdos para avaliar o seu potencial de publicação, traduzir conteúdos ou até paginar (ou, no caso, formatar) e encapar conteúdos, entre alguns eteceteras, basicamente não muda. E os profissionais que executam esses trabalhos pretendem, obviamente, continuar a ser pagos.
Claro que há sempre a possibilidade de substituir esses profissionais por formas diferentes de fazer as coisas. Um dia, talvez haja inteligências artificiais capazes de tornar-nos a todos obsoletos e suficientemente baratas para valerem o investimento e os custos de manutenção, mas esse dia ainda vem distante. É bom não esquecer que estamos aqui a falar, em grande medida, de arte, e esta é bem capaz de ser a criação humana mais difícil de ser mecanizada. Provavelmente não impossível. Mas difícil.
(Um breve parêntesis para dizer que é também este um dos principais motivos do meu crescente ceticismo perante as formas mais ou menos mecanicistas de abordar a escrita que tendem a dominar as receitas dadas nos artigos com conselhos a jovens candidatos a escritores e nos ateliês de escrita criativa: escrita mecanizada facilmente se mecaniza; ou a individualidade do autor transparece no que ele produz, ou pouco valor a coisa acaba por ter.)
Mas pondo agora de parte a ficção científica mais futurista e regressando a um futuro mais próximo, o facto de uma parte, maior ou menor, da edição se transferir para suporte digital não implica que o mesmo aconteça com toda.
Porque há uma parte da bibliofilia que consiste numa adoração, por vezes quase fetichista, pelo objeto livro. É comum ler-se e ouvir-se falar do prazer que dá abrir um livro a cheirar a novo, ou desfolhá-lo, ou saltitar ao calhas para trás e para a frente (esta ouve-se principalmente entre os amantes de poesia e/ou de ficção ultracurta), etc. Isso não desaparecerá, e é algo que o digital provavelmente não poderá nunca substituir. Tampouco poderá substituir o livro físico enquanto obra de arte em si mesma, e cuidados especiais com toda a arquitetura do livro podem ser uma das melhores formas de resistir à passagem para o digital. Um bom exemplo é a antologia Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa, que simula fac-similes de edições antigas. Mesmo sendo mais ou menos possível fazer algo de semelhante em digital, falta a um fac-simile digital a credibilidade de um físico, e não é fácil fazê-lo de forma a tornar a leitura descomplicada (ou até possível) em todos os dispositivos.
Porque outra parte da bibliofilia se alimenta da personalização dos exemplares, através de autógrafos e de outros detalhes. Sim, é certo que já existem experiências de autografia digital, mas têm pouca popularidade, e por um motivo simples que nada tem a ver com insuficiências tecnológicas: soam a falso. É muito diferente estar em frente de um autor a assistir enquanto ele assina um livro (ou mesmo que não se assista, desde que haja alguma prova de que foi realmente ele a fazê-lo naquele exemplar em concreto), e ter um ebook decorado com uma assinatura que o autor fez uma vez e depois ficou guardada num ficheiro algures, pronta a ser reutilizada quantas vezes for preciso.
O futuro que eu vislumbro, portanto, é feito de edição digital barata e relativamente banal em termos de formatos, a par de edição digital mais cara (porque mais exigente tecnicamente), que aproveita aquilo em que a tecnologia digital permite ultrapassar a experiência de leitura em papel, e livros físicos, entre os quais a edição barata praticamente desaparece e há uma aposta clara na qualidade de design e na personalização. Para a personalização, tecnologias como o print on demand serão provavelmente fulcrais, pois o print on demand, embora com um custo unitário que deverá ser sempre bastante superior ao da impressão tradicional (por causa das tais economias de escala; quão superior, ao certo, depende portanto das tiragens desta última, para livros de qualidade semelhante), permite fazer com alguma facilidade coisas como impressão nos locais de venda de livros que podem ser preparados até fora do planeta, numeração de exemplares e outras formas de personalização, como inserção de imagens ou até de palavras e frases específicas de um exemplar em concreto (ou, por outro lado, de anúncios personalizados — nem tudo é bom).
E, como é óbvio, também a relação dos autores com toda a indústria tenderá a mudar. Tempos houve em que os autores dependiam quase por completo das editoras para conseguirem chegar ao público. Hoje já não é assim, e tenderá a sê-lo menos ainda no futuro. A panóplia de plataformas, gratuitas ou quase, de que os autores podem dispor para contactar diretamente com os seus leitores faz com que a relação entre autores e editoras tenha tendência a tornar-se bastante mais equilibrada. Julgo que sempre haverá vantagens nessa relação para determinados tipos de conteúdo, muito em particular os que têm um público potencial mais amplo ou aqueles que requerem uma multidisciplinaridade mais elevada, mas para outros tipos os autores tenderão a passar cada vez melhor sem editoras, fazendo as coisas sozinhos ou com o auxílio de fornecedores de serviços, diferentes das editoras atuais.
No futuro que entrevejo, a relação autor-editora será mais simbiótica do que é hoje, e a maior parte dos autores que leva a sério o que faz editará de formas variadas aquilo que produzir. Umas vezes com recurso a editoras, em especial àquelas com dimensão suficiente para lhes poderem ser realmente úteis, outras vezes sem recorrer a elas, umas vezes digitalmente, outras em livro físico. Não só porque têm mais opções disponíveis na hora de decidir o que fazer, como até porque para fazer certas coisas certas formas de edição têm vantagens claras relativamente à edição tradicional através de editoras.
Eis um exemplo do que acabo de dizer:
Como escrevi acima, uma das tendências que vejo para o futuro da edição é a personalização. Esta pode ser em parte automática, mas para ter realmente valor deverá ser coisa feita à mão. Podemos encontrar um exemplo do que digo nas artes plásticas. Além dos quadros, pintados manualmente pelos pintores, terem um valor incomensuravelmente superior às reproduções desses quadros, o mesmo acontece com formas artísticas em que alguma reprodução já está implícita, como a serigrafia. Séries limitadas de serigrafias, assinadas pelo autor, têm um valor muito superior a reproduções executadas mais tarde. De igual forma, o livro personalizado pessoalmente tem algo de original e único que falta por completo aos automatismos.
Ora, hoje em dia, quando se personalizam livros, isso geralmente acontece em eventos específicos com local específico porque só assim é possível juntar o autor a livros produzidos em série e ao público que os comprou. Mas se um autor pretender personalizar toda uma edição com mais que um rabisco, isto é, personalizar cada livro para cada comprador em particular, depara com dois problemas: não pode usar o sistema de vendas normal, que está concebido para uma relação inteiramente anónima e distante entre autor e consumidor, e só o poderá fazer se toda a edição lhe passar pelas mãos. O primeiro problema implica a necessidade de vendas diretas, o segundo impede na prática lidar com qualquer editora que não esteja sedeada perto do lugar onde o autor vive. Noutros tempos, seria quase impossível fazer-se algo deste género. Ainda hoje é muito difícil fazer algo do género se se optar pela edição tradicional, em especial se não se encontrar nas imediações de onde se reside nenhuma editora disposta a pegar na obra. Mas agora há forma de o fazer: a autoedição com impressão em print on demand torna a ideia muito possível. Até porque para se personalizar uma edição inteira esta não poderá ser muito grande, e o POD está otimizado precisamente para pequenos volumes de edição.
Não me custa nada a imaginar, portanto, situações em que a mesma obra seja editada ao mesmo tempo (ou sucessivamente, como acontece no mercado americano com as edições em capa dura e em capa mole) em edição barata e digital, em edição física, industrial e mais elaborada, e em autoedição personalizada vendida em venda direta.
Outra coisa que não me custa nada a imaginar é autores de sucesso montarem estruturas próprias que ultrapassem o simples binómio autor-agente que tem sido tradicional em mercados desenvolvidos. É algo que tem vindo a acontecer no mundo da música de há uns anos a esta parte, e a música, não sendo um guia perfeito para o que poderá acontecer com a literatura porque possui uma componente performativa que falta à escrita, é um bom lugar onde ir buscar ideias sobre o impacto que as novidades tecnológicas poderão ter na indústria porque sentiu esse impacto mais cedo e portanto lhe respondeu também mais cedo.
No fundo, e em resumo, que isto já vai bastante longo, o que julgo que vai acontecer no futuro é uma substituição do modelo quase único que foi característico da era industrial por uma multiplicação de formas de edição, em que esse modelo industrial continua a existir mas convive num pé bastante mais igualitário com uma série de outros modelos, cada um com as suas próprias vantagens e desvantagens, cada um razoavelmente especializado em tipos de edição ligeiramente (ou algo mais que ligeiramente) diferentes uns dos outros. Será um futuro talvez algo confuso, mas interessante.
E vem a caminho. Quer eu acerte nas previsões, quer me engane, uma coisa é certa: ele vem aí com todas as respostas.
E pronto. Esta série chegou ao fim. É mais ou menos isto que eu penso agora sobre edição, livros, editoras, essas coisas boas de que a gente gosta. Sublinho o agora. Não há nenhuma garantia de que o que penso esteja certo — continuo a aprender todos os dias, e pretendo continuar a fazê-lo até ao dia em que ceder a outra coisa qualquer os 0,1 metros cúbicos de universo que ocupo.
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